Conhecido como “Pacote do Veneno”, o Projeto de Lei (PL) 6299/2022 voltou a rondar os corredores e discussões do Congresso Nacional. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados, em 2022, o PL seguiu para ser debatido e votado no Senado. Agora, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – que possui 47 dos 82 senadores – se articula para pressionar e avançar o trâmite legislativo. Isso sem realizar um amplo debate popular, com transparência, à altura do risco da medida para a saúde e o meio ambiente. Caso aprovado, o Projeto de Lei deve flexibilizar as regras para aprovação, venda e uso de agrotóxicos.
Os parlamentares vinculados ao setor buscam incidir para garantir maior isenção fiscal aos agrotóxicos, por meio da reforma tributária que está em debate nas casas legislativas. Atualmente, o mercado de agrotóxicos é beneficiado com redução de 60% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para determinados tipos de agrotóxicos. A isenção fiscal tem sido, inclusive, objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553, com julgamento suspenso no Supremo Tribunal Federal (STF).
A partir da demanda de várias entidades engajadas na defesa da cidadania fiscal, da alimentação saudável e da agroecologia, os benefícios fiscais para agrotóxicos e a violação de direitos humanos chegaram a ser pautados em uma audiência pública, realizada na última quinta-feira (10/08), pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado.
Segundo estimativa da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, somente em 2021, os cofres públicos deixaram de arrecadar mais de 13 bilhões de reais devido à isenção fiscal de agrotóxicos. Por outro lado, o ônus em decorrência da intoxicação pelos agrotóxicos é bastante alto para o Estado. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o tratamento de pacientes com câncer, uma das doenças causadas pela intoxicação por agrotóxicos, onerou o Estado em cerca de R$ 4,5 bilhões, em 2017. Como o registro de casos de intoxicação por agrotóxicos é subnotificado, o impacto deve ser ainda maior; e não apenas na saúde.
Para entendermos os motivos que levam a esse quadro de subnotificação, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) entrevistou Karen Friedrich, servidora pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Além de apontar os principais obstáculos enfrentados pelos profissionais e serviços de saúde, Karen indica quais medidas devem ser adotadas para qualificar os sistemas de registro e notificação e qual o papel da sociedade nesse contexto.
Como você avalia os atuais procedimentos de notificação de intoxicação por agrotóxico no Brasil?
A notificação de intoxicação por agrotóxicos é obrigatória e deve ser feita tanto pelos serviços de saúde públicos quanto privados. A portaria que determina essa obrigatoriedade aponta que a notificação deve ser feita também nos casos suspeitos, ou seja, ainda que não se tenha uma prova cabal de que a pessoa está com agrotóxico no corpo, o caso suspeito já deve ser notificado. O problema é que isso é pouco compreendido, e executado, pelos serviços de saúde. Então, a gente tem uma grande subnotificação desses casos de intoxicação por agrotóxicos.
Outra questão importante é que a maior parte dos casos notificados é de intoxicação aguda, que é aquela onde os sintomas aparecem em até 24 horas após o contato com o agrotóxico. Ela é mais fácil do médico do serviço de saúde fazer a associação e aí notificar. Mas existe também um monte de outras doenças que vão aparecer tempos depois da exposição, que são as doenças crônicas. E quando a gente olha para os dados, vemos que esses casos quase não são notificados.
Você avalia que os sistemas de saúde estão preparados para cumprir as obrigações de notificação?
Olha, eu acredito que não, porque senão a gente não veria tantas falas públicas, relatos de médicos e relatos de pessoas que foram intoxicadas e, quando a gente pergunta se foram notificadas, as pessoas dizem que não, porque o médico ou a enfermeira disse que não tem prova. Já ouvi relatos de médicos, até com boa vontade, que não sabem que os casos suspeitos devem ser notificados. Então, isso é algo que precisa ser mais disseminado, pois se os serviços de saúde tiverem essa compreensão de que um caso suspeito deve ser notificado, a gente já avança muito.
Por que você avalia que ocorre essa subnotificação dos casos de intoxicação por agrotóxicos?
Às vezes, um trabalhador ou uma pessoa chega no serviço de saúde e relata, por exemplo, que depois que passou um avião (pulverizando agrotóxico) começou com uma coceira, uma ardência nos olhos e que acha que foi por causa do agrotóxico. Muitas vezes, o médico diz que não tem como provar. Só que essa prova que o médico exige para notificar, não é necessária. Como eu falei, se o caso é suspeito, deve ser notificado, e depois a Secretaria de Saúde ou o Cerest (Centros de Referência em Saúde do Trabalhador) vai proceder uma investigação. Só isso já venceria essa questão.
Mas a gente ouve muitos relatos assim. Então, podemos partir de dois pontos: ou não estão informados sobre a obrigatoriedade e sobre o texto da portaria que diz sobre caso suspeito; ou existe uma intencionalidade ou até uma pressão do setor econômico local para que esses serviços de saúde não deem visibilidade para os casos de intoxicação. Isso também pode ocorrer.
O que poderia ser feito para qualificar os protocolos de avaliação e atendimento nos serviços de saúde?
A gente deveria ter uma vigilância mais permanente das populações expostas aos agrotóxicos, o que poderia facilitar a identificação das doenças crônicas que levam muito tempo para aparecer, como câncer, problemas reprodutivos, alterações dos hormônios, diabetes, e que são efeitos já associados aos agrotóxicos. A gente tem registro de municípios e estados que fazem isso muito bem, mas outros, não. De fato, precisa ter recursos para estruturar esses órgãos, como as áreas de vigilância em saúde dos municípios, dos estados e também os Cerest. Nem todos os municípios têm Cerest, mas tem órgãos de saúde municipais que deveriam dar conta dessa questão, principalmente se o município tem uma utilização de agrotóxicos intensa.
Quais outras medidas poderiam ser adotadas?
É muito importante reforçar a necessidade de publicizar quais agrotóxicos são consumidos em cada município e o quanto desses agrotóxicos é utilizado. Essa é uma informação que poderia ajudar os órgãos locais – e aqui estamos falando não só da questão de saúde, de notificação, mas até dos órgãos ambientais –, porque se o poder público souber quais agrotóxicos são mais usados, é possível até antecipar que tipos de efeitos e doenças vão aparecer mais naquele município. Por exemplo, se em um determinado lugar se utiliza muito organofosforado (grupo de compostos químicos utilizados como inseticidas), vai se esperar efeitos desse agrotóxico sobre o sistema nervoso, efeitos cardiológicos. Ou se os agrotóxicos mais utilizados no município estiverem associados a problemas reprodutivos, é possível fazer um acompanhamento e investigar se estão sendo observados problemas no parto, se tem muitas pessoas tentando ter filhos e não estão conseguindo, se tem casos de impotência sexual. Então, dá para estruturar melhor não só quem vai acompanhar a saúde dessa população, numa estrutura de vigilância, de acompanhamento permanente, mas também estruturar o serviço de saúde para atender melhor àqueles casos.
Até do ponto de vista da gestão municipal, da utilização de recurso público, é possível focar onde é mais importante, abrir especialidades médicas que são mais necessárias, evitar que pessoas se aposentem cedo por questões de saúde, evitar que pessoas tenham agravamento de saúde e depois onerem o SUS (Sistema Único de Saúde). Para quem faz a gestão dos recursos financeiros, isso também é importante.
Como é possível saber quais agrotóxicos e a quantidade que é consumida em cada município?
Deveria ser informado pelas empresas, porque a comercialização tem receituário agronômico, que é obrigatório, tem como rastrear. E deveria ser divulgado para a população e serviços locais, como os serviços públicos de saúde e de meio ambiente também, porque assim daria para acompanhar se está tendo a queda da população de abelhas, de sapos, de cobras, de pássaros, de acordo com o veneno mais utilizado ali.
A partir dessas informações, é possível ter outras coisas mais refinadas ainda, como laboratórios públicos regionais que conseguem identificar agrotóxicos no solo, na água, nos alimentos consumidos pela população, na urina, nas fezes, no sangue das pessoas. São dados que ajudam a fazer o acompanhamento. Por exemplo, será que o equipamento de proteção que as pessoas usam está sendo eficaz ou o agrotóxico continua sendo absorvido pelo corpo humano? Tem questões de acompanhamento que poderiam ser fortalecidas. Os laboratórios estaduais poderiam se estruturar para atender a essas demandas.
Como a sociedade pode participar e incidir para qualificar os serviços de saúde e o controle do uso de agrotóxicos?
Tem várias organizações da sociedade civil que estão imbuídas nessa luta contra os efeitos dos agrotóxicos. Tem, por exemplo, a Campanha Contra os Agrotóxicos e os fóruns do Ministério Público. Também no âmbito dos Conseas (Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional) e dos conselhos municipais e estaduais de Saúde essas questões devem ser levadas como importantes. Deve-se exigir do poder público o monitoramento (da presença de agrotóxicos) nos alimentos e na água. A análise de água, por exemplo, deve ser feita pesquisando a presença de 40 agrotóxicos, que são obrigatórios de serem pesquisados. Isso é obrigação do poder público e tem que ser exigido.
É muito evidente a necessidade dos órgãos públicos terem orientações bem definidas, a nível municipal e estadual, sobre o que fazer no caso em que uma central de armazenamento ou uma central de recebimento de embalagem sofre um acidente, um incêndio, um desabamento, um alagamento; e essa contaminação dissemina. O que fazer com a população que mora perto, o que fazer com os trabalhadores dessas empresas, como segurar essa contaminação para ela não se ampliar para outros lugares? Acho que para a questão da contaminação química, principalmente, de agrotóxicos, que é muito disseminado pelo país inteiro, essas orientações devem estar bem definidas também e que a população esteja bem informada sobre essas medidas.
Outra questão é a qualidade dos alimentos para merenda escolar. É importante destacar que as crianças e os adolescentes estão numa fase do desenvolvimento onde são mais suscetíveis aos efeitos dos agrotóxicos. Então, deve-se priorizar as aquisições públicas de alimentos orgânicos e agroecológicos. E os órgãos de orientação técnica também devem sempre privilegiar formas de produção que não utilizam substâncias químicas, que este seja o último dos últimos dos recursos, como prevê a legislação no Brasil e como outros países determinam também. Então, é cobrar. Cobrar do poder público e votar em candidatos que têm essas pautas no seu programa.
* Texto de Marcelo Almeida, da Articulação Nacional de Agroecologia, e Lizely Borges, da Terra de Direitos. Publicação original da Mídia Ninja. Para acessar, clique aqui.