Pesquisa realizada pela Fiocruz e pelo Coletivo Nacional de Agricultura Urbana demonstra o papel preponderante das mulheres nas iniciativas de agricultura que acontecem em cidades brasileiras

Representantes de experiências de agricultura urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ) e participantes de pesquisa coordenada pela Fiocruz e pelo CNAU. Foto: Paolo Martins

Os resultados preliminares do estudo que vem sendo desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU), iniciado em janeiro de 2022 e com previsão para terminar no final deste ano, demonstraram as fortes conexões das práticas de agricultura urbana com a promoção da saúde e com o direito à cidade.

Entre as ações da pesquisa, está a análise de experiências desenvolvidas por redes e grupos de agroecologia nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte (MG), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e Vitória (ES) e nos municípios de São Paulo (SP) e Florianópolis (SC). Nesses territórios, foram identificadas 14 ações que já mapearam cerca de 2400 experiências de agricultura urbana. 

A participação predominante das mulheres nas iniciativas de agricultura urbana é um dado que chama a atenção. Para se ter uma ideia, das 208 pessoas que permaneceram nas oficinas presenciais da pesquisa, e que são representantes das experiências de agricultura urbana dos seis territórios, mais de 80% eram mulheres. 

De acordo com a pesquisadora Lorena Portela, uma das coordenadoras do estudo, nem sempre está explícito que o protagonismo é das mulheres, porque, em alguns mapeamentos, essa questão não é colocada. “Mas estamos a demonstrar, através do diálogo com as iniciativas, que as lideranças populares das experiências de agricultura urbana, principalmente nas áreas mais vulnerabilizadas, geralmente são as mulheres”, avalia Portela.

Ela acredita que o maior envolvimento das mulheres acontece devido aos tipos de atividades relacionadas à agricultura nas cidades. “A agricultura urbana, na forma como ela acontece hoje, vem muito da cultura do cuidado e da ação em coletividade. E quem cuida da comida, quem cuida da saúde, quem cuida do preparo de alimentos, ativando as redes de apoio necessário, geralmente, são as mulheres”, reflete a pesquisadora.

Para Gerlúcia dos Santos, coordenadora do Centro de Educação e Formação em Medicina Popular (Cefomp), de Paulista (PE), a dimensão do autocuidado é outro fator que estimula o envolvimento das mulheres nas ações de agricultura urbana, como no manejo da horta e nas oficinas práticas sobre agroecologia, medicina popular e segurança alimentar e nutricional. 

Santos acredita que, mesmo que de forma involuntária, as mulheres participam das ações promovidas pelo Centro para aliviar a sobrecarga do trabalho doméstico. “Muita mulher já vem com uma carga muito grande de trabalho nos seus lares e está buscando algo para o escape. Quando elas chegam, querem conversar, desabafar essas questões de casa. Imagina que quer uma fuga pra tomar um gás”, diz Santos.

Em São Paulo (SP), no bairro União de Vila Nova, a agricultora urbana Aldineia Pereira da Silva, mais conhecida como Leia, também reforça a importância das práticas agrícolas para a saúde mental das pessoas que participam das atividades. “Quando estamos na roda de conversa, a gente costuma dizer que nosso espaço é um espaço de terapia. É um instrumento de saúde física e de saúde mental. A gente tem depoimentos de mulheres que tratam de depressão nas atividades da horta”, relata.

Na avaliação de Leia, as ações realizadas pelo grupo Mulheres do Gau, do qual ela faz parte, não se tratam apenas da produção de alimentos sem veneno. “Nosso trabalho abre um leque muito grande de incentivos às questões sociais, à igualdade de gênero. É um espaço onde as mulheres se unem”, analisa a agricultora.

Benefícios da agricultura nas cidades

O fato de ter mulheres à frente das ações de agricultura urbana converge com a dura realidade apresentada no final do último mês de junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Segundo os dados divulgados pela pesquisa VIGISAN, de 2022, a falta de comida nos lares brasileiros está ligada à representação racial e de gênero: 22% das famílias chefiadas por mulheres autodeclaradas pardas ou pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação aos lares comandados por mulheres brancas (13,5%). Esses dados são um recorte dos números apresentados pela Rede PENSSAN no ano passado, que revelou que a fome atingiu 33,1 milhões de pessoas em 2022.

Inseridas nesse contexto, as iniciativas identificadas pelo estudo da Fiocruz e do CNAU reforçam como as atividades de agricultura urbana fazem parte do dia a dia de moradoras e moradores das cidades, especialmente nas periferias, e podem gerar vários benefícios para a sociedade.

Associada à produção e ao consumo de alimentos saudáveis ​​e sem veneno, seu impacto pode ser percebido na mitigação da fome e promoção da segurança alimentar e nutricional, principalmente em momentos de crise, como ocorreu no período mais crítico da pandemia de covid-19. 

O pesquisador Douglas Lopes, que também faz parte da coordenação da pesquisa, ressalta que existem ainda várias outras ações e benefícios associados à agricultura nas cidades. Ele conta que em uma única iniciativa é possível identificar impactos positivos relacionados à produção e ao beneficiamento de alimentos agroecológicos, ao cultivo de plantas medicinais, ao preparo de medicamentos, à geração de renda, à melhoria da saúde e à promoção da segurança alimentar e nutricional. “Tem outras dimensões também, como a questão do saneamento, que é um serviço ambiental muito importante. Tem a recuperação de áreas degradadas ou de espaços que eram usados ​​para depósito de lixo e que se transformavam em locais de cultivos, além da compostagem. É muita coisa”, afirma o pesquisador.

Redes de Agricultura Urbana

Outra característica marcante da agricultura urbana é a sua abrangência. Lopes explica que sempre houve agricultura nas cidades, mas, de alguns anos pra cá, o que mudou foi o fato de várias experiências se conectarem em redes e as pessoas passarem a se reconhecer enquanto agricultor ou agricultor urbano.

Quando essas pessoas conhecem uma rede ou um grupo de agricultura urbana, elas passam a ter essa visão de que o que elas fazem é agricultura. “E tem vários fatores que podem configurar a pessoa como agricultora urbana, já que ela pode ser uma raizeira, uma benzedeira ou uma guardiã de semente”, argumenta Lopes.

Algumas pessoas que fazem agricultura urbana vêm de áreas rurais após terem sido expulsas de suas terras ou terem saído em busca de trabalho na cidade. “Ao se reconhecerem agricultoras, elas acabam se sentindo próximas da ancestralidade delas também”, analisa a pesquisadora.

Para Portela, a articulação em redes também fortalece cada experiência individual. Ao se organizarem e perceberem que existem outros grupos desenvolvendo ações empreendedoras e enfrentando desafios semelhantes, pois passam a produzir conhecimento coletivo e se comunicar melhor, isso favorece as ações de mobilização social e incidência política.

Agricultores e camponeses urbanos participam de oficina para análise das iniciativas de agroecologia na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). (Foto: Danúbia Gardênia)

Processos de institucionalização

Além da análise coletiva sobre as iniciativas de agroecologia nas cidades, a pesquisa da Fiocruz e do CNAU identificou, até o momento, 65 grupos de pesquisa e mais de 400 documentos relacionados à temática, como livros, artigos, teses, entre outros trabalhos acadêmicos. 

Este material, que também é composto pelo mapeamento de 65 leis e políticas públicas que tratam desse assunto, demonstra como a agricultura urbana tem sido conquistada no espaço acadêmico, nas casas legislativas e nos órgãos da administração pública.

Segundo Lorena Portela, a agricultura urbana é uma prática tão antiga quanto o empreendimento das primeiras cidades, mas o olhar institucional sobre essa atividade intensificou-se nas últimas décadas. “O que a gente vê, olhando para o histórico institucional da agricultura urbana, é que essa conquista de pesquisas e políticas públicas é produto, nos últimos 15 a 20 anos, da luta e do engajamento das organizações e dos movimentos sociais, mais especificamente do movimento agroecológico e da agricultura urbana”, contextualiza.

Para Portela, a pesquisa contribui para aprofundar a compreensão da trajetória de redes de agroecologia em regiões metropolitanas e para construir um panorama da agricultura urbana no Brasil. A previsão é que, até o final de 2023, as análises e os documentos sejam organizados em uma biblioteca virtual de agricultura urbana e estejam disponíveis para acesso da população. 

“Esperamos que esse processo ajude a dar visibilidade às agriculturas que acontecem em territórios metropolitanos. E que o conhecimento gerado nos estudos e nas análises coletivas pode servir de autoridade para novos debates e para a construção de políticas públicas que fomentem a agricultura urbana”, projeta Portela.

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