Por Eduardo Sá / Mídia Ninja
Como parte de sua estratégia de incidência política, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) tomou a iniciativa de identificar políticas, programas, legislações e outras ações públicas em execução ou já executadas em municípios do Brasil em coerência com suas pautas propositivas. A partir de uma pesquisa-ação desenvolvida em todos os estados e que integra a campanha Agroecologia nas Eleições, foi possível identificar mais de 700 iniciativas em pouco menos que dois meses. Apesar do foco nas eleições municipais, a estratégia não se restringe ao calendário eleitoral. Além de cobrar o compromisso assumido por centenas de candidatos e candidatas às prefeituras e câmaras municipais ao assinarem a carta programática preparada pela ANA, a iniciativa tem por objetivo criar ou fortalecer espaços de participação democrática para que as políticas públicas sejam formuladas, executadas e monitoradas com ativo envolvimento de organizações da sociedade civil.
Para apresentar os objetivos e sentidos da Campanha, entrevistamos Paulo Petersen, Coordenador Executivo da AS-PTA, integrante do Núcleo Executivo da ANA e ex-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia). Na conversa com a NINJA, ele explica a metodologia adotada para levar as pautas do campo agroecológico para a agenda pública no contexto das eleições municipais. Para Petersen, este processo desencadeado pela ANA está voltado prioritariamente a promover o direito humano à alimentação adequada e saudável por meio da agroecologia. Desse ponto de vista, contribui para enfrentar a ascensão dos valores conservadores e autoritários, em um processo de acumulação de forças do campo democrático a partir de propostas muito concretas para melhorar a vida do povo. Disputar essas ideias nos municípios neste momento é condição essencial para que sejam construídas melhores condições para uma efetiva disputa de projetos no futuro, inclusive nos pleitos eleitorais nos estados e na federação daqui a dois anos.
Por que lançar uma campanha chamada Agroecologia nas Eleições?
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que essa campanha é coerente com o que sempre fizemos na ANA. Partimos da constatação de que a agroecologia está muito mais disseminada no país do que normalmente se imagina. Nosso esforço é o de identificar e sistematizar experiências práticas coerentes com os fundamentos da agroecologia, para em seguida dar visibilidade aos seus resultados e promover o intercâmbio entre as pessoas nelas diretamente envolvidas. São iniciativas muito heterogêneas e específicas, surgidas em lugares e processos diferentes. Por essa razão, muitas vezes elas encontram dificuldade de se identificar mutuamente. O que tem a ver um acordo de pesca em uma comunidade ribeirinha na Amazônia com um sistema participativo de garantia da produção agroecológica no Sul do Brasil? Aparentemente nada. Mas experiências como essas, aparentemente díspares, são orientadas por princípios e valores comuns.
Nossos encontros nacionais sempre são realizados a partir dos ensinamentos extraídos das experiências que brotam nos territórios movidas por esses princípios e valores. Na campanha Agroecologia nas Eleições, aplicamos o mesmo enfoque para conhecermos as ações públicas já executadas em nível local. Sabíamos que em muitos municípios do Brasil, e até mesmo em arranjos entre municípios, existem muitas iniciativas importantes, sendo a imensa maioria delas muito pouco conhecidas. Em vez de elaborarmos de nossas cabeças um conjunto de proposições sobre como deveriam ser as políticas das futuras prefeituras, o nosso caminho foi o de dar visibilidade ao que já vem sendo colocado em prática com sucesso. Dessa forma, abandonamos o campo da idealização do que poderia vir a ser para entramos no campo da realidade concreta, daquilo que já existe e que é plenamente possível ser replicado ou adaptado em diferentes contextos.
Esse foi o sentido do grande mutirão realizado para mapear experiências, políticas, programas e iniciativas de promoção da agroecologia nos municípios brasileiros. Vimos em que medida as prefeituras têm tomado a iniciativa, muitas vezes em conjunto com organizações sociais locais, de construir sistemas locais de produção, distribuição e consumo de alimentos. As experiências mapeadas são coerentes com os princípios da agroecologia já que apontam para o fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, da produção diversificada, para a valorização da biodiversidade e das culturas alimentares, para o protagonismo das mulheres e da juventude e de suas organizações locais, para o consumo de comida de verdade e, em contrapartida, para a luta contra os ultraprocessados impostos pelas multinacionais do ramo da alimentação.
Nesse material é possível identificar temas ou situações mais recorrentes?
Em um documento lançado recentemente foi apresentada uma síntese das iniciativas identificadas por região e por campos temáticos. A primeira coisa a ser ressaltada é que o que levantamos é uma amostra de um universo muito mais amplo. As 720 experiências identificadas nesse curto período indicam que existem muito mais iniciativas pelo Brasil afora. Iniciativas que resultam de conquistas locais e que precisam ser reconhecidas e valorizadas para que tenham continuidade e sejam amplificadas e multiplicadas.
O contexto das eleições é muito favorável para comprometer não só as candidaturas e os partidos políticos, mas também a opinião pública. Não estamos a favor de uma candidatura ou de outra, de um partido ou de outro. Defendemos uma agenda política propositiva. Nossa pauta de proposições é claramente vinculada às lutas pela democratização e pela sustentabilidade.
A partir do foco da agroecologia e da alimentação saudável, tocamos em um ponto sensível da agenda pública, sobretudo nesse momento histórico em que a fome e a insegurança alimentar severa voltam a figurar como uma trágica realidade no cotidiano do povo. Voltamos a esse quadro após termos saído do mapa da fome da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] por um breve período, como resultado de políticas públicas claramente orientadas à superação da fome e da miséria. Infelizmente, muitas das boas políticas federais nessa direção foram desativadas, sobretudo a partir do golpe institucional de 2016. Mas muitos aprendizados dos períodos anteriores seguiram em prática em alguns estados e em muitos municípios.
Um dos ensinamentos do passado é que a retirada do país do mapa da fome não significou, necessariamente, a promoção da segurança alimentar e nutricional. A generalização da má alimentação com ultraprocessados foi a razão que motivou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) a organizar uma Conferência Nacional com o lema “Comida de verdade no campo e na cidade”. A noção de comida de verdade ressalta que o foco das políticas públicas para a segurança alimentar e nutricional deve ir além da dimensão quantitativa da alimentação. Em outras palavras, ir além do “encher a barriga” para nutrir o corpo e a alma com alimento saudável e adequado.
É esse o sentido da noção de “democratização dos sistemas alimentares” que defendemos. Fortalecer a agricultura familiar camponesa, aquela que produz comida de verdade, promovendo circuitos curtos de distribuição entre a produção e o consumo, assegurando remuneração justa para quem produz e preços adequados para quem consome comida de verdade e não “enchimento” industrializado.
Apesar do desmonte das políticas públicas federais, os municípios podem fazer muita coisa. São as administrações municipais que implementam localmente políticas federais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Mas, independente do governo federal, há muita margem de manobra para a ação autônoma das prefeituras ou dos legislativos locais. Como pudemos identificar, várias dessas iniciativas podem ser executadas com orçamentos restritos. O envolvimento ativo das organizações da sociedade civil também são características recorrentes.
Fortalecer a produção e o pequeno varejo, facilitar equipamentos para a comercialização, como feiras e mercados locais, prestar serviços de assessoria técnica, criar campanhas de informação sobre alimentação saudável, moedas locais para incentivar a comercialização dos alimentos produzidos no município são algumas dentre as inúmeras formas de atuação identificadas.
Passadas as eleições, teremos mais capacidade de cobrar das prefeituras e câmaras de vereadores. Será necessário também seguir aprendendo com essas experiências de políticas locais, inclusive com a possibilidade de estimularmos a criação de redes de municípios comprometidos com a agricultura familiar e com a agroecologia, um tipo de iniciativa já existente na Espanha e na Argentina. Precisamos avançar nessa direção por aqui também. Se temos tantas iniciativas interessantes nos municípios, por que gestores públicos não trocam experiências entre si com a participação das organizações da sociedade civil? Ao tirar essas experiências da invisibilidade, esperamos que esse movimento se desdobre após as eleições.
É preciso ter claro que a agroecologia é uma construção local. Portanto, não virá de cima para baixo. O Brasil foi o primeiro país a ter uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Sempre dizíamos na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) que a política só ganharia consistência e efetividade quando conseguisse se enraizar nos territórios e municípios. Em nosso pacto federativo, uma política nacional é essencial no sentido de fortalecer as experiências que estão sendo realizadas nos municípios e territórios. Nesse sentido, o governo federal pode apoiar, induzir e legitimar iniciativas coerentes com a agroecologia. Mas a construção efetiva da agroecologia é feita pelos sujeitos que estão no território formando redes.
Essa perspectiva contrasta frontalmente com o agronegócio, uma lógica de organização técnica e social imposta de cima para baixo. Em que pese o discurso liberal do setor do agronegócio, tal sistema não se sustentaria sem os pesados recursos financeiros e de marketing ideológico providos pelo Estado, inclusive com aberrantes isenções fiscais e perdões de dívidas. Sem isso, seria impossível manter a aparência de vitalidade de um sistema de poder autoritário, socialmente excludente e ecologicamente predatório que, ao contrário do que propaga, é diretamente responsável por parte significativa das mazelas do povo brasileiro.
A campanha traz também em sua essência essa disputa de narrativa e uma proposta de comunicar à sociedade as virtudes da agroecologia?
Como tantos outros, acredito que as forças políticas da esquerda institucional efetivamente interessadas em transformar a realidade precisam atualizar suas narrativas. E precisam igualmente atualizar seus métodos de construção política, tendo mais sensibilidade e se deixando influenciar pelas experiências emancipatórias construídas pelo povo. Entre outras coisas, isso significa transferir o poder de fala para os protagonistas dessas experiências. Os testemunhos de mulheres e homens que no dia a dia constroem alternativas é condição para uma política efetivamente mobilizadora e transformadora.
A comunicação não pode continuar pautada pela apresentação de estatísticas e dados agregados sobre as tragédias sociais. É preciso também apresentar as alternativas concretas, inspiradoras de caminhos efetivamente transformadores trilhados a partir da participação ativa da cidadania na gestão pública. Apesar de toda a vitalidade dessas iniciativas territorialmente enraizadas, seus protagonistas seguem invisibilizados e desconsiderados como forças de transformação social por expressivos segmentos da esquerda.
Renovar a esquerda para que ela recomponha sua capacidade de mobilização social implica em fazer política tocando os afetos e as sensibilidades, criando espaço para a enunciação das vozes daqueles e daquelas que estão na luta a partir de suas experiências. A agroecologia situa-se exatamente como um desses campos de lutas emancipatórias travadas a partir do lugar de vida e de trabalho. Seus protagonistas, agricultoras e agricultores familiares produzem alimentos saudáveis, livres de química. Com seu trabalho geram e distribuem riquezas, conservam a biodiversidade e os mananciais de água pura. Com suas formas de organização social e econômica enriquecem a cultura popular.
A campanha Agroecologia nas Eleições vai nessa direção. Não estamos interessados somente em anunciar que identificamos 720 experiências. Queremos divulgar os testemunhos que deixam claro o que essas políticas significam para a vida das pessoas em diferentes lugares do país. Essa articulação entre o mapeamento de iniciativas e a comunicação popular é muito virtuosa.
Há poucos dias produzimos um card com o mapa do Brasil indicando que até aquele momento já contávamos com 506 candidatos (as) a prefeito (a) e vereadores (as), comprometidos (as) com a agenda agroecológica. São essas comunicações sintéticas que vão criando uma verdadeira onda de comprometimento público de candidatos(as) e não candidatos(as) a uma agenda política propositiva.
Nunca a agroecologia esteve tão presente em processos eleitorais como nessas eleições municipais. Ao mesmo tempo em que mostramos a expressiva quantidade e a diversidade de iniciativas em curso, explicitamos a incrível invisibilidade dessa realidade. É preciso agora traduzir essa constatação em força política.
Por meio de suas campanhas falaciosas, o agronegócio faz com que muitas pessoas acreditem que o “Agro é Pop” e que o “Agro é Tudo”. Que nos alimenta e que sustenta a balança comercial. Apesar da enorme distância da realidade, essas campanhas têm se mostrado convincentes. Precisamos ter claro que a política se faz no dia a dia, na defesa de posições hegemônicas através da disputa de narrativas. Isso significa que não podemos resumir a política aos processos eleitorais. Cabe às forças de esquerda disputar narrativas por intermédio de uma comunicação mobilizadora, portadora dos recados que vêm das experiências sociais.
Qual a essência proposta pela campanha?
A política pública não pode ser entendida como uma exclusividade do Estado. É um arranjo institucional que envolve o Estado e a sociedade civil organizada. O agronegócio não se move a partir do interesse público, mas pela busca incessante de lucro no curto prazo e a qualquer custo. Daí a importância de orientar as políticas públicas por outros valores societais que não aqueles impostos pelo pensamento neoliberal: solidariedade, saúde coletiva, sustentabilidade ecológica, protagonismo das mulheres e da juventude, dentre outros que dão identidade às experiências identificadas à agroecologia.
O crescimento econômico não pode seguir como a única medida de sucesso das políticas públicas. Dependendo do estilo de crescimento, ele pode ser benéfico apenas para os interesses privados. Além de concentrar a riqueza nas mãos de poucos, é um estilo que destrói o meio ambiente. Por isso, precisamos de outras métricas e referências para aferir o sucesso das políticas públicas: postos de trabalho estão sendo gerados e a riqueza está sendo distribuída? Os recursos naturais estão sendo conservados? Os alimentos produzidos são saudáveis e estão acessíveis a toda a população? As comunidades estão livres de discriminação e da violência de gênero, raça e orientação sexual? A agroecologia tem muito a contribuir nessas e em várias outras agendas de interesse público.
A pandemia da Covid-19 revelou como a transformação dos sistemas alimentares, segundo os fundamentos da agroecologia, poderá exercer papel central no equacionamento de um conjunto de desafios das sociedades contemporâneas. As redes locais de solidariedade, que rapidamente se estabeleceram em todo o país para fazer frente aos dramas sociais gerados pela crise, são uma demonstração inequívoca do fato de que a alimentação é um tema mobilizador da sociedade. Dependendo da forma como o alimento é produzido, distribuído e consumido, ele poderá ser uma tranca imobilizadora ou uma chave disparadora de processos políticos voltados a construir sociedades mais democráticas e sustentáveis.
Nossa campanha em defesa da agroecologia nas políticas municipais busca ressaltar um leque amplo de benefícios dessas políticas para o conjunto da sociedade. A começar por explicitar que comida de verdade não é privilégio de minorias, é um direito plenamente possível de ser assegurado para todas e todos, desde que haja políticas adequadas orientadas para esse fim. Como nosso mapeamento demonstrou, as administrações municipais podem fazer muito nesse sentido.
Mesmo diante do contexto extremamente adverso na esfera federal, as redes e articulações territoriais de agroecologia seguem ativas. A que se atribui isso?
São acúmulos de força resultantes de décadas de luta. As políticas de segurança alimentar e nutricional e de agroecologia foram essenciais para o fortalecimento dessas redes locais. Por outro lado, essas políticas foram conquistadas e aprimoradas graças à incidência dessas redes. Trata-se de um movimento de ida e volta, das experiências sociais às instituições políticas e destas às experiências. Em outras palavras, trata-se de um círculo virtuoso democratizante no qual os processos instituintes e as instituições se realimentam reciprocamente. Mas esse processo está momentaneamente interrompido com a mudança no ambiente institucional em nível federal. As induções e reconhecimentos institucionais do governo federal já não existem, pelo contrário, as experiências são abertamente hostilizadas e combatidas pelos mandatários do turno. Mas os processos instituintes sempre existiram e seguirão existindo.
Nesse momento de desmantelamento das instituições democráticas, as eleições municipais exercem um papel essencial. São importantes não só para dar visibilidade à força desse movimento emergente ativo em todo o país, mas também para dar continuidade à institucionalização da agroecologia em políticas públicas. Daqui a dois anos, se essas agendas democratizadoras e mobilizadoras avançarem nos municípios, estaremos em melhores condições para pautar essas proposições do campo agroecológico nas eleições estaduais e federal. Esse processo de baixo para cima é essencial para que sejam combatidos os valores conservadores e reacionários em franca disseminação na sociedade. Em suma: não se trata somente de ganhar as eleições. É preciso ganhar mentes e corações para a construção de uma sociedade justa, fraterna e sustentável.
Desde o golpe de 2016 e nas eleições em 2018, parcelas importantes do povo foram levadas na onda conservadora em busca de proteção diante da crise social e econômica que se aprofundava. Como disse o cantador, quem sabe faz a hora, não espera acontecer. E a hora de começar a virar o jogo é agora, através de ações efetivamente mobilizadoras onde o povo vive, nos municípios. A agroecologia tem um papel fundamental a desempenhar nesse sentido. Ela toca em questões prioritárias na vida daqueles que mais estão sofrendo as consequências da crise econômica e da pandemia. Fome, desemprego, agravos à saúde, endividamento e violência são fenômenos que tenderão a se acentuar pela gestão ultraliberal e reacionária instalada no poder central. A agroecologia nos municípios é um poderoso antídoto ao veneno do autoritarismo.
* Entrevista originalmente publicada no site Mídia Ninja.