Dando sequência à sua série de debates online “Direitos Humanos em Foco”, a Terra de Direitos promoveu ontem (15/06) uma live nos seus canais com o tema “Em defesa dos direitos dos agricultores e consumidores: a resistência contra a contaminação genética de sementes crioulas”. O evento abordou temas do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que também fez a transmissão.

As contaminações genéticas promovidas pelas sementes transgênicas violam direitos humanos, ambientais, culturais e econômicos, segundo Naiara Bittencourt, assessora jurídica da Terras de Direitos. Levando em consideração a importância do milho na comida dos brasileiros, ela ressaltou como o poder público é influenciado pelas grandes empresas e não garante o direito à alimentação adequada. Nesse sentido, a sociedade civil tem questionado e proposto políticas públicas junto aos governos e promovido ações jurídicas para tentar resguardar os direitos da agricultura familiar e dos consumidores. 

“Em 2007, entramos com uma ação civil pública na justiça federal do Paraná  questionando critérios da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) sobre a aprovação do primeiro milho transgênico no Brasil, da empresa transnacional Bayer, que não contou com uma série de definições de normas técnicas, critérios de análise de risco ou medidas de coexistências entre os milhos transgênicos e crioulos”, afirmou.

O judiciário determinou que a CTNBio editasse normas, como a resolução Nº 4, que estabeleceu como medida de coexistência uma distância entre os cultivos de 100m ou então 20m, se houver dez fileiras de milhos convencionais de porte similar. Estas mesmas organizações proponentes consideraram as medidas insuficientes e ajuizaram nova ação em 2009, que perdeu por dois votos a um. Ambas as ações, tanto sobre a liberação quanto relativa às regras de cultivo, estão tramitando no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e podem ser julgadas a qualquer momento. 

É um grande desafio resistir às contaminações das sementes transgênicas, afirmou a agricultora e guardiã de sementes Elizângela Ribeiro, moradora de um assentamento em Riacho dos Machados, no norte de Minas Gerais. A conservação da agrobiodiversidade, segundo ela, é fundamental para garantir a segurança alimentar.

E dá nossa autonomia própria, pois não ficamos reféns de nenhum recurso para plantar nada. Não é só ter a semente para plantar, é um sentimento mais forte da nossa história. Observamos qual a altura da planta, o formato, todo um contexto, a gente seleciona tudo, tem toda uma observação. É como se a gente fosse pesquisador. Isso é essencial para nossa alimentação e a dos nossos animais”, explicou Aquino.

Chegada dos transgênicos e CTNBio

Devido às características próprias de polinização dos milhos, a contaminação das suas espécies está em todo o País. Através do vento, dos insetos e das aves, dentre outros fatores, como o insuficiente distanciamento dos cultivos transgênicos determinado nas leis, as plantações da agricultura familiar estão vulneráveis. As diversidades de cores e tamanhos das espigas, por exemplo, desenvolvidas por anos de cruzamento, são cada vez mais raras.

De acordo com o pesquisador Gabriel Fernandes, assessor técnico do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), tudo isto vem ocorrendo há algumas décadas com a modernização da agricultura convencional, também chamada de revolução verde. Devido às técnicas desenvolvidas pelas grandes empresas, que também são as principais produtoras dos agrotóxicos, o mercado passou a ser controlado pelas multinacionais.

“Elas conseguiram aplicar certo padrão de legislação garantindo direito à propriedade intelectual das sementes. Foi quebrado o ciclo de reprodução natural, as sementes deixaram de ser um bem natural e passaram a ser uma mercadoria controlada pelas empresas. A principal tecnologia no mercado, há mais de 20 anos, foi manipulada em laboratório para ter resistência aos herbicidas”, alertou.

Estudo publicado em maio pela Embrapa estima que cerca de 93% da produção de milho será feita com sementes transgênicas em, aproximadamente, 16 milhões de hectares. Das 196 variedades listadas pela empresa, 131 são transgênicas, atualmente no Brasil. Mais de 80% são vendidas para serem usadas com herbicidas, sendo alguns deles restritos ou banidos no mundo pelos seus impactos à saúde e ao meio ambiente, embora autorizados aqui no Brasil.

A CTNBio, que deveria apresentar recomendações técnicas frente a interesses conflitantes, aprova quase automaticamente os estudos apresentados pelas empresas interessadas. Esta avaliação é do pesquisador da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e do Movimento Ciência Cidadã, Leonardo Melgarejo, que participou da Comissão durante alguns anos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), órgão extinto durante o governo de Michel Temer.

“As decisões por maioria dependiam das pessoas selecionadas, que manifestavam poucas dúvidas. Qualquer crítica era uma ofensa ao progresso da ciência. Após a extinção do MDA, passou a acontecer cada vez mais uma distorção sobre o que era importante. As dúvidas, que costumam caracterizar a ciência, desapareceram, sob o ponto de vista dos transgênicos e das aprovações”, criticou Melgarejo.

As empresas montam um conselho técnico, que precisa ser aprovado, recebem autorizações para a realização dos estudos de campo e laboratório e, logo após, solicitam uma avaliação da CTNBio. Nunca é apresentado nada preocupante, segundo o pesquisador, e estes estudos são discutidos com base nas pesquisas da Comissão sem considerar qualquer investigação independente. A cada reunião, vários pedidos das empresas são aprovados. “As normas simplificam os custos e aceleram o processo de análise”, observou.

Estratégias de Resistência

Para resistir a este modelo agrícola hegemônico que trabalha sob a lógica da monocultura e dos monopólios, existem em curso várias frentes de luta na sociedade civil, sobretudo dos movimentos do campo e das florestas: desde disputas das políticas públicas à realização de feiras locais de produtos agroecológicos. A confrontação de narrativas, contestando a ideia de que os transgênicos não causam riscos e sem eles não há alternativas, também vem sendo travada.

A Política Nacional de Agroecologia (PNAPO) contou com intensa participação popular e é um grande exemplo nesse sentido, pois promoveu uma série de iniciativas a nível nacional, estadual e municipal. O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), modalidade Aquisição de Sementes (PAA Sementes), foi uma das ferramentas públicas que tratou diretamente dessa questão frente aos transgênicos nos territórios.

“São diferentes redes e experiências, casas e bancos de sementes, principalmente no Semiárido. São feiras por todo o País, como espaços de excelência para comprar e trocar sementes e experiências. Disputar o próprio mercado com sementes orgânicas, como as da Bionatur e da Associação Biodinâmica, adaptadas para a produção orgânica e agroecológica. Essas são algumas das estratégias de resistência e avanços para fazer chegar alimentos de qualidade aos centros urbanos”, explicou Gabriel Fernandes.

Com cerca de 63 famílias em seu assentamento, a guardiã Elizângela Ribeiro ressaltou a importância das casas de sementes comunitárias na localidade em que vive. Segundo ela, através dessas estruturas e de uma campanha de conscientização com a vizinhança, até hoje a comunidade conseguiu evitar a contaminação das suas sementes crioulas.

“Se alguém não tem a semente, a gente faz a doação. Assim, garantimos às famílias uma semente de qualidade, sem trazer risco de contaminação, e levamos também a discussão do gasto. O agricultor luta para não ser refém. Não vamos comprar o milho no mercado, porque tem que comprar o agrotóxico, senão, não produz. Temos ensinamento, desde os nossos antepassados, de plantar sementes da vida e não da morte. O agricultor não luta pelo dinheiro, é diferente do agronegócio, quer se auto sustentar”, finalizou.

Texto: Eduardo Sá

Edição: Viviane Brochardt / Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)