Em entrevista, Gabriel Fernandes, do GT Biodiversidade da ANA, comenta os perigos envolvendo a possível liberação da importação do trigo HB4, produto geneticamente modificado. Tema poderá ser votado pela CTNBio em breve
A chapa está quente. Quem dera fosse apenas para pôr o pão com manteiga, par perfeito do café com leite, o famoso pingado. A ameaça a esta cena clássica do cotidiano está na mesa da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O órgão, responsável por analisar transgênicos no Brasil, está avaliando se aprova a importação da Argentina do trigo HB4, produto geneticamente modificado tolerante ao glufosinato de amônio, agrotóxico classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como potencial cancerígeno. O assunto poderá ser abordado na próxima reunião da Comissão, marcada para 2 de setembro.
Uma decisão favorável ao trigo geneticamente modificado desceria goela abaixo da população, já que o tema está sendo tratado em sigilo. Contra isso, organizações e movimentos sociais vêm denunciando a falta de transparência na condução da CTNBio. No manifesto “No nosso pão, não!” 1 , que espelha mobilização semelhante na Argentina, repudiam o trigo transgênico e convidam mais instituições e a população em geral a se posicionarem contra a sua liberação 2. Em entrevista 3, Gabriel Fernandes, do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Centro de Tecnologias Alternativas (CTA-ZM), explica os meandros deste processo, alertando sobre como as decisões de grandes corporações do agronegócio impactam a soberania alimentar e o meio ambiente.
Como você avalia a possibilidade de aprovação do trigo transgênico no Brasil, tendo em vista que não só a sociedade civil organizada, como também a indústria brasileira de moagem, de panificação e outros derivados do trigo já rechaçaram a proposta?
Quando consideramos o histórico da CTNBio desde a aprovação da Lei 11.105/05, a chamada Lei de Biossegurança, observamos que a Comissão aprovou todas as sementes transgênicas que passaram por pedidos de aprovação comercial. Na minha visão, eles fazem isso porque querem transmitir para a sociedade a noção de que todos os transgênicos, por princípio, são seguros, do ponto de vista da saúde e do meio ambiente. Por mais que a cada dia tenhamos mais evidências práticas e científicas de que essas plantas trazem problemas, inclusive pelas suas associações com os agrotóxicos, eles vão trabalhar com a ideia de que a Comissão aprovou constatando que são seguras. Então, no caso do trigo, isso pode ocorrer novamente. Por isso, é importante a pressão dos moinhos e das indústrias de massas, de pães, das padarias, de consumidoras e consumidores, e assim por diante. É preciso ter preocupação e não introduzir mais essa cultura transgênica na nossa alimentação.
Os debates sobre o tema têm sido conduzidos sem a participação da sociedade civil. O que se sabe até o momento, tendo em vista os documentos e a escuta de reuniões aos quais nos foi imposto sigilo?
Há pouca exatidão sobre o que de fato significa esse pedido de liberação feito pela Bioceres, empresa argentina que fez um convênio com a brasileira Tropical Melhoramento e Genética (TMG).Teoricamente, seria um pedido de liberação da importação de grãos produzidos na Argentina para consumo aqui no Brasil. Mas, em alguns momentos, como no pronunciamento oficial da CTNBio após a sua última reunião, falaram em importar a farinha, e não os grãos. São muitas informações desconexas. Até aonde a gente sabe, o pedido sobre o plantio do trigo HB4 aqui no Brasil não aconteceu. Mas esse poderá ser um próximo passo após uma possível aprovação da importação do produto da Argentina.
Outro fato que preocupa é a mudança das regras pela Comissão. Uma resolução, aprovada na CTNBio em 2008, exigia estudos de médio e longo prazos antes da aprovação de novos transgênicos. Isso foi alterado em 2020, sendo retirada essa obrigatoriedade. Então, as empresas estão liberadas de apresentar essas investigações mais profundas sobre os efeitos de seus produtos.
Como você avalia a possibilidade de contaminação das variedades de trigo?
Toda experiência com transgênicos mostra que a contaminação acontece. E, muitas vezes, ela é até estimulada pelas empresas e pelos governos que querem aprovar esses cultivos e entendem a legislação, as regras de biossegurança e os estudos prévios como barreiras. No caso do milho, primeiro foram encontrados casos de contaminação. Só depois aconteceu a liberação no Brasil. A soja, no Rio Grande do Sul, foi importada clandestinamente da Argentina. Também houve casos de cultivo ilegal de algodão transgênico por aqui. O que os órgãos fazem é legitimar posteriormente os plantios ilegais. É a tal política do fato consumado.
Não existe no Brasil uma política de segregação da cadeia produtiva, nem para soja nem para o milho. Então, estamos diante de uma situação que, mesmo sem o Brasil autorizar o plantio de trigo transgênico, é possível que a liberação para a importação já faça com que, em pouco tempo, a gente comece a receber notícias de contaminação. Com isso, a gente pode passar a consumir, mesmo sem querer e sem ter acesso a essa informação, um trigo transgênico.
O pedido relacionado ao trigo HB4 foi feito pela empresa argentina Bioceres. A aprovação do plantio de tal transgênico no país vizinho esteve atrelada à decisão favorável à importação brasileira. Organizações e movimentos sociais denunciam ameaça à soberania. Poderia exemplificar?
O representante da empresa brasileira TMG, associada à Bioceres, garantiu, em audiência pública sem participação social promovida pela CTNBio, que eles têm um sistema muito avançado de controle da cadeia produtiva do trigo transgênico na Argentina. Seria um sistema inovador de rastreabilidade. Se a CTNBio aprovar essa importação, de alguma forma, o governo brasileiro estará terceirizando o seu dever de fiscalizar essas cargas, entendendo que é suficiente que uma empresa privada de outro país diga que tem um sistema de rastreabilidade de grãos e que a cadeia que adotar o trigo transgênico não necessariamente irá contaminar o trigo comum. Isso é extremamente grave e mostra a impossibilidade da coexistência, sendo essa uma das ameaças a nossa soberania. Uma vez que uma determinada espécie transgênica é liberada, pode ser a soja, o milho ou o trigo, necessariamente, diante da omissão do Estado em garantir o direito de agricultoras e agricultores que não querem cultivar transgênicos, o país passa a assumir uma política que pode fazer com que o transgênico acabe dominando tudo.
A Bioceres faz muita questão de dizer que é uma empresa pequena e nacional que conseguiu desenvolver um produto transgênico fora do esquema de grandes corporações. Mas ela possui sua subsidiária “Bioceres Crop Solutions Corp”, que está na Bolsa de Valores de Nova York, tem também alianças com Syngenta/Chemchina, Valent, Dow Agrosciences e tem entre seus acionistas a Monsanto. Então, quando a gente olha de perto, essa “pequena empresa argentina” tem mais de 30 patentes relacionadas ao processo de transformação do trigo. A aprovação do trigo transgênico constituiria uma entrega ao capital transnacional.
Um argumento largamente utilizado é que o trigo HB4 seria resistente à seca, respondendo aos impasses urgentes enfrentados frente às crises climáticas. Como você percebe esta justificativa?
A tolerância à seca que a transgenia poderia conferir à planta com a incorporação de um gene é mais uma falsa promessa da biotecnologia. Não há estudos nem resultados de campo que comprovem que a modificação feita seja capaz de conferir essa característica complexa à planta. As sementes crioulas, que são localmente selecionadas, estas sim são comprovadamente capazes de lidar com períodos maiores de falta de chuva. Basta a gente ver o Semiárido e as inúmeras variedades cultivadas na região. São sementes que têm um ciclo mais curto e que conseguem produzir com uma quantidade menor de água. Essa característica só está presente porque houve um longo processo de seleção e adaptação, ano a ano, que acontece pela ação de agricultoras e agricultores na constante e permanente interação com o meio ambiente. Não tem outra forma de chegar a plantas que a gente possa dizer que são tolerantes à seca sem ser por esse caminho, que envolve práticas, com sucesso confirmado, de produção agroecológica baseada na biodiversidade.
Cabe destacar que o trigo HB4 recebeu duas modificações genéticas. A primeira foi supostamente para aumentar a tolerância da planta ao estresse hídrico, algo que a propaganda reforça bastante. A segunda modificação, que está sendo omitida intencionalmente, é que essa planta é resistente ao glufosinato de amônio, que está banido pela União Europeia desde 2009. Então, o trigo, que é moído e logo consumido, poderá vir contaminado com esse agrotóxico altamente perigoso, já que o veneno é aplicado sobre a planta e vai parar nos grãos.
[1] Manifesto publicado pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida reúne adesões de instituições e movimentos sociais contra o trigo transgênico.
[2] Pessoas físicas que queiram repudiar o trigo transgênico podem assinar petição no site do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
[3] Conteúdo: Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Texto: Gilka Resende. Ilustração: Ribs.