POR EDUARDO SÁ
Indígenas da etnia Xukuru Kariri, em Palmeiras dos Índios (AL), estão doando alimentos agroecológicos durante a pandemia a parentes no sertão do estado e às organizações de assistência social a crianças, jovens e famílias de baixa renda na região. Há 30 anos estão organizados na associação local, desenvolvendo projetos e acessando políticas públicas, ampliando cada vez mais sua capacidade de produção e comercialização de alimentos saudáveis. Apesar dos desafios administrativos, a organização coletiva tem apontado saídas para a venda dos seus produtos. Esta é mais uma iniciativa identificada pela campanha Agroecologia nos Municípios, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A produção da aldeia é caracterizada pela sua diversidade, que vai desde hortaliças, leguminosas e frutas à criação de várias espécies de animais. Boa parte dos alimentos é escoada nas feiras livres da região e atendem as encomendas de cestas na cidade. A principal cultura é a banana, mas a macaxeira e a batata também se destacam. De acordo com o representante da Associação Indígena Xukuru Kariri, Gecinaldo Queiroz, da Aldeia Fazendo Canto, onde fica a entidade, a produção promove a alimentação saudável para todos e é um instrumento de resistência na reivindicação dos seus territórios. Segundo ele, seu povo já passou por cinco grupos técnicos de regularização fundiária da Funai e, em 2006, as terras foram reconhecidas com o tamanho seis vezes menor que o original.
“Nosso território tradicional é de 36 mil hectares, reconhecido em 1822 durante o Império, mas nossos antepassados nunca conseguiram a posse plena. Sempre tem invasão, ameaça, morte e assim por diante. Nossa terra foi demarcada pela Funai com 7 mil hectares, mas está tudo paralisado neste governo e continuam as invasões e construções irregulares. Vemos como alternativa a produção agroecológica e orgânica. Não somos favoráveis ao agronegócio, um modelo que depedra e não é sustentável. Temos várias parcerias e mostramos aos políticos e municípios nossos alimentos saudáveis comercializados na feira livre da cidade e nos programas públicos”, destacou.
Atualmente, os Xukuru-Kariri estão distribuídos em dez aldeias em Palmeiras dos Índios, segundo as lideranças locais, com a posse de 1.500 hectares. Eles estimam que existam mais de 3.500 indígenas espalhados nas comunidades e periferias da cidade, além dos que migraram para a Bahia e Minas Gerais por falta de terras para morar e cultivar. Criaram uma Comissão Permanente de Articulação e Mobilização pela Regularização Fundiária do Território Tradicional Xukuru-Kariri, que é composta por dois participantes de cada aldeia, para pressionar o governo federal a concluir o processo de demarcação. Até o fechamento da matéria, após duas semanas em contato, a Funai não informou a situação sobre a regularização fundiária destes povos.
Acesso às políticas públicas
Entre os muitos projetos já executados pela Associação, destaca-se o acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que via Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) comprou seus alimentos por meio da modalidade doação simultânea. No ano de 2014, o valor da proposta foi de R$ 49,5 mil e chegou a quase 22 toneladas de alimentos variados entregues ao Instituto Sagrado Coração de Jesus (Lar Criança) e envolvendo 23 agricultoras e agricultores, a maioria mulheres. Nos anos de 2016 e 2017, executaram R$ 104 mil. Atualmente, está sendo operacionalizado o edital de 2020, que possibilitou até o momento a entrega de aproximadamente 14 mil toneladas de alimentos ao Movimento Pró-Desenvolvimento Comunitário (MPDC), entidade sócio-educativa, no valor de pouco mais de R$ 110 mil.
De acordo com o Superintendente Regional da Conab, Lourival Barbosa de Magalhães, o PAA é o programa social mais inteligente dos últimos anos, pois compra alimentos saudáveis de quem tem para doar e os doa a quem está precisando comer. Atende a ponta da produção com o comércio, e a população mais vulnerável que passa fome. O programa operado pela Conab, segundo ele, obedece instruções do Ministério da Cidadania e atende, principalmente, as comunidades tradicionais. No estado de Alagoas, neste sentido, os indígenas têm dado uma contribuição importante.
“O PAA, para essas pessoas que não têm um comércio, é uma oportunidade ímpar. O pequeno agricultor não tem condições de colocar a produção dele nas prateleiras e o PAA é uma vitrine para isso. Temos a maior satisfação de fazer isso, principalmente em se tratando de indígenas e quilombolas, que são populações mais esquecidas. A relação tem sido muito boa, mesmo com as dificuldades, como ausência de assistência técnica, os indígenas dão uma contribuição importantíssima. Nenhuma fiscalização apontou qualquer problema nesta parceria, e estamos muito felizes com isso”, afirmou Magalhães.
Outra política importante é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é implementado desde 2006 em parceria com a Associação de Agricultores Alternativos (AAGRA), entidade com seis sócios indígenas da aldeia, que tem mais estrutura e condições de operar a chamada pública. Na aldeia local, os Xukuru desenvolvem uma série de projetos na Escola Estadual Indígena Pajé Miguel Selestino da Silva, como coleta de sementes nativas, reflorestamento, horta escolar e medicinal, entre outros. Em 2014, o a escola foi contemplada com o programa Escola Sustentável, do Ministério da Educação, que promove o pensamento socioambiental e cultural do povo indígena.
Devido à pandemia, os indígenas estão com dificuldades de escoar sua produção. Estão trabalhando com cestas semanais sob encomenda de clientes da capital, e doando muitos alimentos aos parentes do sertão, que estão com dificuldades em decorrência da estiagem e das crises sanitária e econômica, que têm impactado negativamente a capacidade de produção e de planejamento dos cultivos de alimentos. Muitos acabam indo para outros setores, como a construção civil, fazendas ou usinas próximas, por falta de oportunidade de vender seus produtos. Enfrentam também muito preconceito dos políticos e meios de comunicação locais, relatam alguns, por isso têm dificuldade de encontrar onde comercializar seus produtos.
Atualmente, há também um convênio da associação local com a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), que desde 2018 vem investindo na aquisição de maquinário e equipamentos agrícolas para melhorar a estrutura produtiva da comunidade. A parceria se deu por meio de recursos de uma emenda parlamentar ao Orçamento Geral da União (OGU), que tem como contrapartida doar em alimentos o equivalente a 1% do valor investido pela Codevasf na aquisição de equipamentos e máquinas. . O Centro Comunitário Padre Cícero de Vila Nova, por exemplo, recebeu alimentos equivalentes a R$ 1.522,00 s, o que corresponde à 1% do valor total da doação de um trator agrícola, uma colhedora de forragem, uma carreta tanque, um sulcador leve, uma roçadeira agrícola e uma carreta agrícola.
Articulação Regional de Agroecologia
A Fazenda Canto participa do projeto Tecendo Autonomia Alimentar para a Vida, através do Coletivo Bem Viver, grupo de indígenas que tem pautado a transição do modelo convencional de produção para o modelo agroecológico na aldeia. O projeto é executado pela AAGRA e busca promover a Rede Mutum (Articulação Alagoana de Agroecologia), organização estadual que congrega movimentos, organizações e entidades no fortalecimento da agroecologia. A iniciativa faz parte do Programa de Fortalecimento de Redes de Produção Orgânica, Agroecologia e Extrativismo (ECOFORTE), fruto de uma parceria da ANA com a Fundação Banco do Brasil (FBB), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Fundo Amazônia.
Um dos seus resultados é a construção do Sistema Participativo de Garantia da qualidade Orgânica – SPG Bem Viver – , com atuação estadual envolvendo 165 famílias em 20 grupos de produção. A finalidade é construir o controle social da produção orgânica, promover a construção do conhecimento agroecológico e a troca de experiências e fomentar a articulação para a produção agroecológica e seu acesso em circuitos curtos de comercialização. O SPG Bem Viver será registrado no Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) como um Organismo Participativo de Avaliação da Qualidade Orgânica (OPAC), através da AAGRA, que terá a atribuição jurídica de certificar as unidades produtivas.
Para Leandro Benatto (AAGRA/Rede Mutum), o Coletivo Bem Viver é uma referência na produção agroecológica na região e muito importante no âmbito do trabalho realizado pelos indígenas Xukuru Kariri, que ofertam alimentos saudáveis à sociedade. Segundo ele, ao operarem políticas públicas de produção e comercialização, demonstram o importante papel e a contribuição dos povos tradicionais na promoção da cultura, saúde, segurança e soberania alimentar.
“Queremos colaborar para a certificação de produtos indígenas, garantindo a sua qualidade orgânica, ampliando o acesso aos mercados e contribuindo para a visibilidade da produção e cultura indígenas. Destacamos a importância das políticas públicas voltadas à produção e comercialização da agricultura familiar e agroecológica e orgânica para viabilizar os grupos de agricultores familiares, camponeses e comunidades tradicionais e o acesso a alimentos saudáveis pela população. Nesse sentido, reiteramos a importância da restauração da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que sofreram profundo desmonte nos últimos anos pelo governo federal, assim como a construção de políticas de apoio em níveis estadual e municipal”, destacou.
Esta matéria foi publicada originalmente no portal da Mídia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI.