Por Lívia Duarte, da FASE – Solidariedade e Educação
“Eu sou o Chapolim, motorista da Van que tá trazendo aí o pessoal”. Ouvimos essa frase muitas vezes entre Viçosa e Alto Caparaó, municípios da Zona da Mata de Minas Gerais. Mas o tom da apresentação – e o brilho nos olhos – foi mudando a cada parada: Chapolim estava surpreso com as diversas realidades que conhecemos, tantos conflitos e sonhos. Encantado com a experiência de agrofloresta apresentado por Dadinho e Cida: foi convencido pela força da agroecologia.
Mais ou menos tímidos – a maioria não queria ser entrevistada! -, sete motoristas levaram os grupos com representantes de 13 estados do Brasil na Caravana Agroecológica e Cultural da Zona da Mata de Minas Gerais. Foram três rotas que se subdividiram em sete grupos. Estes somaram mais de 1,6 mil km de estrada por roteiros que cruzaram os “mares de morros” por 17 municípios. A viagem foi a um só tempo mobilizadora dos movimentos locais e nacionais, espaço para o exercício coletivo do olhar e da análise sobre o campo agroecológico, seus ganhos e desafios. Vimos experiências deversas de agricultoras e agricultores em produção agroecológica, sistemas agroflorestais, sementes, educação do campo, acesso à terra, manejo dos recursos naturais e acesso aos mercados. Foi o primeiro passo na preparação do III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) previsto para 2014. Mas alguns garantem que o encontro já começou, com o pé no território ao mesmo tempo em que segue sendo gestado. Outros objetivos da Caravana foram a divulgação da cultura local e o “diálogo com a sociedade”.
É possível arriscar que os organizadores – Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Centro de Agricultura Alternativa da Zona da Mata (CTA) e parceiros locais – não imaginavam que o diálogo começava tão perto.
Espanto com a vida sem capim
Chapolim, que não revelou o nome real, foi o motorista da van 2 e garante que estar de 20 a 24 de maio longe da família, viajando, valeu a pena. Além de motorista, ele contou que trabalha com oficina mecânica. Nunca tinha ouvido falar de agroecologia e a família toda “mexe” com eucalipto e braquiarão (um tipo de capim). A diferença entre o que viu e o que acreditava ser a única agricultura possível fez pensar: “Você vai vendo o que você vai destruindo”. Não é de estranhar que tenha se impressionado com uma propriedade como a de Dadinho e Cida, linda agrofloresta, onde seguramente se contam mais de cem espécies, cultivada há mais de dez anos. Nas palavras do motorista, “eu posso contar, mas só vendo!”.
Ele mencionou a horta sem cercado, a imensa variedade de frutas (“a cidra gigante!”) e a inexistência de pragas na propriedade de 12 hectares, onde apenas seis são cultivados. “A comida que comemos lá era muito boa, tudo feito com coisas que ele colheu dentro da propriedade, tudo plantado por ele. Se ele e a família quisessem ficar lá, podia chegar mais umas doze famílias – como o Dadinho contou – que iam poder continuar vivendo bem. Tem coisa lá de sobrar, nem dá conta de colher! Então foi pra minha vida essa experiência, sabe? Porque a gente bota dificuldade nas coisas, mas quando vê um negócio desses percebe que pode ser diferente!”, sentenciou. Para Chapolim, “se o Brasil todo fosse assim, ou pelo menos a metade, seguindo esse outro jeito de plantar, tudo ia ser muito diferente”.
Dividir a terra faz a diferença
Outro que gostou da nova paisagem e das pessoas foi Joaquim. O motorista foi agricultor e contou que no caminho, “tudo impressionou”. Entre “tudo”, três coisas foram as que mais fizeram refletir. A primeira, a chance de ter um lugar para trabalhar e viver. O percurso da Van 1 passou pelo assentamento Olga Benário, organizado pelo MST em Visconde do Rio Branco. São 30 lotes, hoje ocupados por 28 famílias oriundas de vários lugares no Brasil. Escola – apesar do transporte existir – ainda é um problema, assim como o lixo que é queimado. Na opinião do Sr. Ventuil, que apresentou o lugar, em sete anos “algumas pessoas saíram de miserável para pobre. Outras para bem melhor”. Ali visitamos duas propriedades.
A primeira, do Marcelo, cujos planos pareceram muito distantes da autonomia e variedade postulados pela agroecologia. O agricultor está apostando todas as fichas na produção de leite. Seu terreno tem apenas algumas bananeiras, galinhas e porcos – alimentados também com soro, fator positivo já que esta sobra dos laticínios para os quais vende toda a produção é altamente poluente. “Tem gente que ainda recebe Bolsa Família e ajuda muito, mas agora eu tenho renda e não preciso”. Não ter horta e pomar é uma escolha, segundo Marcelo, “porque não tenho tempo”, afirmou o agricultor, pai de três crianças, que se diz feliz apesar do muito trabalho.
Já na casa da Mariana e do Sr. Luiz o cenário é de diversificação, apesar da palavra ‘agroecologia’ não aparecer. A entrada já apresenta a horta variada, o feijão, o quiabo em flor – e sem agrotóxicos, apesar dos “conselhos” da Emater. Estão para subir as paredes da casa definitiva, possível graças ao crédito para habitação. Há seis anos, quando chegaram, era pasto e mais nada. “Começamos alguma lavourinha, mas não tinha água pra beber. Até que encontrei aqui”, explicou mostrando a nascente entre o bambuzal, bem cuidada, agora com bananeira e cerca. Luiz é pai de 9, três ainda moram com ele. A sucessão, problema que aflige o campo brasileiro de modo geral, também já é uma questão nesta casa. “Eles vão porque só importam com dinheiro, sonham alto. Mas batem com a cara no mundo. E voltam”, aposta o agricultor, que garante estar muito melhor agora: “Mudou foi 100%. A saúde, a liberdade de não ser mais empregado”. Além dos alimentos no quintal, a família também conta com a renda dos biscoitos caseiros que Mariana vende – apesar do relato de dificuldades, como demora no pagamento – para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Pra Joaquim, o motorista, ter um lugar para viver e trabalhar a terra é uma oportunidade que antes não parecia existir. “No meu tempo não tinha isso, cada um tinha que se virar plantando ‘de meia’, né? Agora já tem ajuda do governo para o pessoal ter lotes e poder trabalhar. Eles parecem alegres de ter o cantinho deles, estar mexendo, construindo o lugar deles”, comentou. A diversidade na plantação encheu os olhos do condutor. “Admirei muito o platio do pessoal, o jeito de cuidar. Nunca tinha visto agroecologia. Nunca tinha visto as coisas plantadas tão misturadas. Ver que em dois alqueires uma família pode ter tudo: tem banana, laranja, alface, feijão… só não achei um que plantasse arroz, mas quase tudo tem, não depender de comprar é que faz a diferença”, ensinou.
Mas nem só de belezas foram os caminhos na Caravana Agroecológica. A terceira impressão que marcou a memória do motorista foi a imensa barragem para lavar a bauxita extraída pela Companhia Brasileira de Alumínio, a CBA.
Os conflitos que escondem a verdade
Além das novidades positivas – como a compostagem que aproveita as fezes dos animais, fazendo um adubo “sem usar nenhuma química” – Emerson Rodrigues descobriu e se impressionou com os conflitos escondidos na região. O jovem motorista, que ganha a vida dirigindo um caminhão de minério, ficou impactado com a visão da barragem de Granada, no rio Matipó, município de Abre Campo. E lamentou o olhar triste que persiste, mais de uma década depois da inundação.
“A barragem me chamou atenção por causa de esconder a verdade. Escondeu, quando a água subiu, o tanto de pessoas que viviam ali, o campo, a área de lazer, as casas. Sumiu tudo. A gente não tem ideia, vê aquilo ali e nem imagina o que as pessoas contaram”, descreveu.
Depois da barragem, construída para geração de energia elétrica, e apesar do sofrimento, as famílias organizadas no Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) estão aos poucos buscando se reerguer com a agroecologia, como descreveu a reportagem publicada no site da ASA.
Muitas pedras no caminho fértil da agroecologia
Além da barragem de Granada e do lago para lavagem da bauxita, em Muriaé, muitos outros conflitos socioambientais apareceram nas visitas. Entre eles, chama atenção o mineroduto Minas-Rio que pretende “mandar” – com muita água e cruzando incontáveis propriedades em 32 municípios – o minério extraído pela MMX/Anglo Ferrous na região metropolitana de Belo Horizonte para o Complexo Porutário do Açu, no Norte do Rio de Janeiro – e dali para exportação. O empreendimento tem sido alvo de ações do Ministério Público Federal devido às falhas nas licenças ambientais, que sequer consideram a existência de comunidades tradicionais “no rumo do desenvolvimento”.
As extensas monoculturas e o uso intenso de agrotóxicos, especialmente nas lavouras de café, são outras pedras no caminho fértil da agroecologia. Mas não são as únicas: informar, convencer e ganhar novos porta-vozes é um grande desafio. Eliseu, motorista da van 5, gostou da viagem. Apesar das estradas de terra, “tudo tranquilo”. Mas seja pela insegurança na hora da entrevista, seja pela dúvida imposta pelo modelo do agronegócio, não garantiu que agroecologia é solução. Reparou que o sítio que visitou “era bom” e que o pessoal não queria usar agrotóxico. E o que acha disso? Diz não ter certeza para falar por si. “Eu sou é motorista. Quem tá na agricultura é que sabe”. Insistimos. E o que eles acham, Zeu? “Ah, eles dissem que isso é bom”.
(*) Fonte: Fase – Educação e Solidariedade.