Experiências bem sucedidas de execução do PNAE mostram que, com organização social e vontade política, é possível garantir alimentação adequada a famílias de estudantes durante a pandemia.
Por Eduardo Sá – Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi tema de uma live na terça-feira (21/07) promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O evento Agricultura Familiar é Saúde na Alimentação Escolar contou com a participação de especialista, agricultor e agricultoras familiares que operam a política em seus territórios e ressaltou a importância do PNAE no combate à fome durante a pandemia e na geração de renda nas economias locais.
– Veja a live na íntegra – Assista ao filme sobre o PNAE
Embora o PNAE tenha sido implantado em 1955, só a partir da Lei nº 11.947/2009 foi garantida a destinação de 30% do valor às compras diretas da agricultura familiar. Fruto de uma intensa mobilização social, a consolidação do Programa se tornou referência mundial de política pública ao promover uma alimentação adequada a mais de 40 milhões de estudantes da rede pública no país. Essa conquista precisa continuar sendo assegurada durante o isolamento social na pandemia, com a manutenção das compras de produtos da agricultura familiar e a realização das entregas dos alimentos às famílias das/os estudantes, mesmo com as aulas suspensas.
A Lei nº 13.987, de 07 de abril de 2020, autoriza os estados e municípios a utilizarem os recursos federais para a aquisição e distribuição de kits e/ou cestas de alimentos às alunas e aos alunos durante a pandemia. A Resolução nº 2, publicada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE), órgão responsável pela execução do PNAE, regulamentou o funcionamento do Programa durante o período de suspensão das aulas, prevendo, inclusive, a aquisição de produtos da agricultura familiar por meio de chamada pública remota.
Uma política tão importante e reconhecida, segundo Luiza Damigo, integrante da ONG AS-PTA e dos coletivos de comunicação e cultura da ANA e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), precisa ser potencializada abrindo diversas oportunidades para a agricultura familiar e movimentos e organizações da sociedade civil. São ferramentas que podem redesenhar os sistemas agroalimentares locais e garantir o direito humano à alimentação adequada, colocando comida de verdade na mesa de toda a população brasileira.
“Com a pandemia, houve uma preocupação grande com o fornecimento da alimentação escolar, especialmente nos casos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade que, infelizmente, às vezes só têm aquela refeição. É justamente nesse momento que mais precisamos de saúde, além de nos preocuparmos com a renda das famílias e a economia da cidade. É preciso lutar pelos direitos conquistados e ver o que tem dado certo, mostrar a potência das redes e organizações nestes territórios”, disse Damigo, mediadora da conversa.
Por sua importância e capilaridade, o PNAE, historicamente, mobiliza diversos segmentos da sociedade, como a agricultura familiar, a comunidade escolar (estudantes, pais, mães e responsáveis, cozinheiras/merendeiras, professoras/es), nutricionistas, gestores públicos municipais e estaduais, universidades, movimentos sociais, redes e articulações, dentre outros. Graças a este engajamento, a Lei 11.947, aprovada em 2009, estabeleceu o direito humano à alimentação adequada e saudável como uma diretriz do Programa. Dessa forma, em um contexto tão crítico como o que estamos vivenciando durante a pandemia, cabe ao Estado continuar assegurando esse direito, explicou Vanessa Schottz, professora do curso de Nutrição da UFRJ- Macaé, integrante do FBSSAN e do GT Mulheres da ANA.
“Nesse cenário da pandemia, onde a pobreza e a fome aumentam drasticamente e, ao mesmo tempo, há um processo acelerado de desmonte do Estado, é fundamental que seja garantido o acesso à alimentação escolar. São mais de 40 milhões de estudantes atendidos em todo o país. A agricultura familiar também é beneficiária dessa política pública. É preciso garantir essa conquista”, destacou a professora.
Passados mais de quatro meses desde o início da pandemia, ainda há prefeituras que não estão executando o Programa. Em alguns desses casos, a alegação é de que a legislação “apenas” autoriza, mas não obriga o atendimento de escolares durante a pandemia. Todavia, a professora argumenta que a alimentação é um direito humano reconhecido pelo artigo 6º da Constituição Federal, que também determina a primazia dos direitos das crianças e adolescentes. Em diversos casos, a Defensoria Pública e o Ministério Público têm atuado fortemente para exigir que estados e municípios cumpram com esse dever.
Há ainda os casos em que os governos estão optando pela distribuição de cartão ou voucher para as famílias. Entretanto, esse formato acaba gerando prejuízos para a agricultura familiar e privilegiando as grandes redes de supermercado e a oferta de alimentos ultraprocessados. Tais alimentos são definidos pelo Guia Alimentar para a População Brasileira como formulações que passam por um intensivo processamento industrial. São ricos em açúcares, sal e gordura e contam com adição de aromatizantes, corantes e realçadores de sabor.
Baseado em diversas evidências científicas, que apontam para os impactos sociais, ambientais e de saúde, o Guia orienta a restrição do consumo desses produtos pela população. “O Guia recomenda que a gente coma comida de verdade, ou seja, alimentos in natura ou minimamente processados, justamente o que a agricultura familiar produz, alimentos diversificados, sustentáveis e saudáveis”, conclui Schottz.
Os exemplos do Paraná e do Maranhão
Se, por um lado, alguns locais não estão comprando os produtos da agricultura familiar, em outros, esses alimentos são entregues mesmo durante a pandemia, até mais que os 30% previstos na Lei. As entidades se mobilizaram e deram uma resposta rápida em alguns territórios e muitas estratégias foram fortalecidas durante este processo de organização no período emergencial.
Na região do Baixo Munim, no norte do Maranhão, na Amazônia Legal, a prefeitura do município de Morros compra 100% dos alimentos fornecidos pela agricultura familiar, desde 2011. Na chamada pública para o PNAE deste ano, está prevista a aquisição de, aproximadamente, 37 toneladas de alimentos, num total de 46 produtos, segundo as organizações locais. São duas associações e 66 agricultoras envolvidas.
De acordo com Maria Leia Borges, de 51 anos, da Associação de Lagoa da Onça/MA, foi preciso alguns anos de formação e organização dos agentes locais para que conquistassem o acesso às políticas públicas na região. Participavam os secretários, as nutricionistas e as organizações para buscar soluções. Ocorreu uma grande feira para convencer os gestores de que a agricultura familiar local tem capacidade de produção para entregar no município.
“Tinha assessoria técnica que lutou para a gente conseguir. Ocorreram muitas palestras e formações, porque a gestora não queria comprar nosso produto. Mesmo a gente tendo os produtos, não tínhamos o mercado. Depois foi maravilhoso, porque transformou toda a agricultura familiar da região. Hoje, muitas famílias realizaram seus sonhos. Não é só o dinheiro, mas o bem-estar de cada um e a saúde para as crianças nas escolas”, afirmou Dona Leia, que é também coordenadora das feiras agroecológicas na região.
Antes da pandemia, os alimentos eram fornecidos direto para as escolas. Agora, a prefeitura busca ou combina a entrega na central de distribuição, onde os pais também podem buscar se não receberem em casa.
No município de São João do Triunfo, no centro-sul do Paraná, também está ocorrendo a mesma dinâmica de entrega dos alimentos. A Cooperativa Mista Triunfense de Agricultores e Agricultoras Familiares Limitada (Coaftril), criada em 2017 numa região caracterizada pela cultura alimentar do milho, tem diversificado sua produção cada vez mais com o PNAE. Passou de 15 gêneros alimentícios a 60 e, na última chamada, foram entregues 30 toneladas de alimentos para a rede escolar municipal.
O casal de agricultores Edelaine Antunes e Jorge Aparecido lembraram como foi importante para sua família o acesso ao PNAE. Devido a dificuldades com o nascimento do seu filho, há três anos, tiveram que ficar mais em casa e passaram a dar mais valor ao quintal. O marido deixou o trabalho assalariado para ajudar a mulher na produção de alimentos, pois ela já estava inserida na organização agroecológica local.
“Criamos uma cooperativa (Coaftril) e começou a alavancar tudo. Hoje, temos certificado de orgânicas e o PNAE é o nosso carro-chefe. Nossa produção foi ficando melhor com técnicas agroecológicas. Quando iniciou a pandemia, nós nos preocupamos, mas o governo manteve as entregas nas escolas. Já tinha o plantio pronto para ser entregue. Mantivemos o volume da entrega e o mercado interno do município aumentou com as entregas em casa”, disse Jorge.
Muitas estratégias foram adotadas neste período, como a produção de mudas com um ciclo maior para garantir o dia da entrega. Quanto mais produtos variados, acrescentou o agricultor, mais entrega terá para as escolas. Para ele, a questão não é só garantir renda para o agricultor e a agricultora, mas também de ter seus filhos e as demais crianças se alimentando bem nos colégios.
“Nossa diversificação é bem grande e nossa logística permite que a gente entregue os produtos. Hoje, vejo que as crianças estão com uma alimentação completa, com produtos de qualidade, orgânicos. Fiquei indignado quando soube que tinha feijão enlatado na escola onde minha filha estudava. Hoje, o feijão vem das propriedades vizinhas, que estão entregando para o PNAE. Esperamos que esse Programa continue com essa qualidade de alimento para todos”, concluiu.
Esses são exemplos de diálogo e aproximação entre quem produz, prepara e consome o alimento, destacou a mediadora Luiza Damigo. São iniciativas fundamentais que resultam na qualidade nutritiva e saborosa do alimento respeitando as agriculturas locais. “Quando a gente observa a riqueza das experiências, vê como a aquisição de alimentos da agricultura familiar potencializa outros circuitos, como as feiras, as cestas, etc. Então, é possível, sim, adquirir durante a pandemia. Tem diversas experiências mostrando o quanto isso é importante”, concluiu Damigo.
“A comida é um diálogo sem palavras. É muito importante que um estudante receba uma comida identificada como da agricultura familiar. Nem sempre a comunidade escolar está sabendo de onde veio esse alimento. É importante comunicar o conjunto de lutas por direitos que está por trás dessa comida, como a reforma agrária, a democratização do acesso à água, as sementes etc. É muito importante pressionar para que as compras continuem nesse momento de pandemia, chamar o poder público para o diálogo”, finalizou Schottz.