Enquanto ainda se comemora o número expressivo, divulgado no começo desta semana, de 3.700 projetos enviados à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a execução do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), coletivos da sociedade civil cobram do governo suplementação orçamentária para atender à demanda integral apresentada por associações e cooperativas da agricultura familiar e alertam para risco de paralisação do Programa, caso o Projeto de Lei nº 2920/2023 não seja votado nas duas casas legislativas e sancionado pelo presidente da República até 2 de agosto. Na Câmara, a matéria foi aprovada na sexta-feira (7).
No último 30 de junho, prazo estipulado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para o recebimento de projetos para execução do PAA na modalidade Compra com Doação Simultânea, 3.600 cooperativas e associações da agricultura familiar de todo o Brasil apresentaram 3.700 propostas, que somam 1,1 bilhão de reais. No entanto, o orçamento destinado pelo governo federal ao Programa foi de apenas 500 milhões de reais, sendo metade executada pela Conab e metade pelos estados.
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) – rede que, historicamente, tem incidido em políticas públicas para o setor e, em 2020, desenvolveu uma campanha pelo fortalecimento do PAA, com adesão de 900 organizações, redes e movimentos – comemora o resultado, mas cobra do governo federal suplementação orçamentária de 600 milhões de reais para cobrir integralmente as propostas apresentadas por organizações da agricultura familiar. Em sua totalidade, os projetos apresentados visam produzir 248 mil toneladas de alimentos e envolvem 77 mil famílias agricultoras.
Os recursos destinados ao PAA devem ser investidos na compra de alimentos para atender populações em situação de insegurança alimentar. “O PAA é uma importante política pública que, se por um lado, fortalece a agricultura familiar, por outro, oferta alimentos saudáveis para quem mais precisa. É um instrumento de promoção da saúde e de combate à fome”, explica Paulo Petersen, do Núcleo Executivo da ANA.
A diversidade da produção da agricultura familiar pode ser percebida na variedade de alimentos que constam nas propostas apresentadas: 350 tipos de alimentos diferentes, sendo 63% hortigranjeiros, 18% processados, 11% carnes e pescados, 8% grãos e 0,4% sementes e mudas.
Para o diretor-executivo de Política Agrícola e Informações da Conab Silvio Porto, essa multiplicidade expressa a força e a capacidade da agricultura familiar camponesa. “Essa diversidade dialoga com os hábitos alimentares regionais, com a biodiversidade brasileira e com a alimentação saudável. É o que nos dá forças para, no diálogo interno no governo, conseguir ter a suplementação de recursos para atender, principalmente, a compra da agricultura familiar e a população em situação de insegurança alimentar, principalmente no combate à fome”.
Das 3.700 propostas apresentadas, 70% têm participação de mulheres, 18% de povos indígenas e comunidades tradicionais, 16,3% vieram de assentadas/os da reforma agrária, 7% de comunidades quilombolas, 5% de pescadoras/es profissionais e artesanais e 3,5% de extrativistas. Quando olhamos o recorte por região, o Nordeste apresentou 49% das propostas recebidas pela Conab, seguido do Norte (19%), Sudeste (15%), Sul (10%) e Centro-Oeste (8%).
Para o diretor-presidente da Conab Edegar Pretto, os números demonstram que “a maior companhia de abastecimento da América Latina, a Conab, está preparada para ser o grande instrumento do governo federal para acabar com a fome, outra vez, e enfrentar a inflação de alimentos”, acredita.
Os números também evidenciam a capacidade das organizações da agricultura familiar de atender às demandas por alimentos e de acessar políticas públicas, quando o Estado é permeável a essa participação. Ao mesmo tempo, tendo acesso aos recursos por meio de programas de compras públicas, como o PAA, as organizações da agricultura familiar têm condições de planejar a produção dos alimentos, junto com seus associados ou cooperados, considerando suas capacidades e a demanda. “Agricultoras e agricultores, por sua vez, conseguem organizar a produção de forma perene, garantindo o ano todo renda para si e alimento para a população, sobretudo para as pessoas em condição de vulnerabilidade social”, explica Petersen.
Para o representante da ANA, agrônomo e doutor em agroecologia, fortalecer o PAA é uma medida importante, por isso, a suplementação orçamentária será acompanhada de perto pela Articulação. Ele lembra também que “é necessário atender outras demandas da agricultura familiar e caminhar em direção à estruturação de sistemas alimentares saudáveis, que tenham a agroecologia como base, para que a fome não seja uma realidade e o Brasil nunca mais tenha 33 milhões de pessoas famintas, nem uma única pessoa deve passar fome”. Ele ainda ressalta que alimentos de qualidade, saudáveis e em quantidade necessária são também promotores da saúde. “Precisamos ter um olhar para os alimentos que seja o de saciar a fome e também o de promover a saúde”, defende Petersen.
O PAA foi criado em 2003, no primeiro governo Lula e, desde então, representa uma importante estratégia de combate à fome e de viabilização da agricultura familiar. De lá para cá, passou por momentos distintos, desde o ápice, entre 2012 e 2013, quando o Programa chegou a disponibilizar mais de 1 bilhão de reais por ano, em valores corrigidos, para projetos da agricultura familiar, até sua quase extinção no governo Bolsonaro, momento em que a ANA lançou uma campanha pelo fortalecimento do PAA.
RISCOS NO CONGRESSO – Por reconhecer o PAA como parte da estratégia do governo federal para o combate à fome, o Poder Executivo apresentou no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2920/2023, chamado PL do Programa de Aquisição de Alimentos, que visa fortalecer a agricultura familiar e combater a fome. Propostas de alteração ao texto original foram apresentadas por parlamentares, mas não entraram no documento final aprovado na Câmara. Se passassem, significariam um retrocesso, na avaliação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), coletivos que agregam dezenas de organizações, redes e movimentos no país inteiro.
Entre as propostas apresentadas, mas não aprovadas na votação da Câmara, destacavam-se as extinções do grupo gestor do PAA, de incentivo a produtos orgânicos e de dispensa de licitação, incluindo projetos do Semiárido.
De acordo com Maria Emília Pacheco, integrante do Núcleo Executivo da ANA, do FBSSAN e ex-presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), essas emendas representariam retrocessos, criariam barreiras para o acesso ao Programa e, possivelmente, excluiriam milhares de agricultores e agricultoras que acabam de apresentar propostas de projeto à Conab.
A versão do PL levada à Câmara foi resultado do diálogo entre governo e sociedade civil. O professor da Universidade Federal da Fronteira do Sul, pesquisador de políticas públicas e integrante da ANA e do FBSSAN, Julian Perez Cassarino alertou para a importância de que o texto aprovado fosse o Projeto do Relator, o deputado federal Guilherme Boulos, do PSOL de São Paulo.
O prazo para que o Projeto passe por todos os trâmites nas duas casas legislativas e seja sancionado pelo presidente da República é 2 de agosto. Caso essa data não seja cumprida, o risco é de o PAA ser completamente paralisado pela falta de instrumento legal que o respalde. Até o momento, a implementação do Programa está sustentada pela Medida Provisória nº 1166, que caduca em julho, período de recesso parlamentar.
Por Viviane Brochardt, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
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