Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia para a Mídia Ninja
Há algumas décadas as/os agricultoras/es do Polo da Borborema, região que abrange vários municípios do interior da Paraíba, estimulam a preservação e fortalecimento das sementes crioulas. Em busca de autonomia e alimentos mais saudáveis, as guardiãs e os guardiões das sementes da paixão cuidam das variedades valorizando os grãos e a cultura local. São milhares de famílias envolvidas gerando renda, soberania e segurança alimentar para a população.
Neste ano, as organizações locais estruturaram a produção e começaram a empreender o Flocão da Paixão. Esse é mais um produto beneficiado e comercializado a partir das sementes da paixão, no caso o milho nativo sem o uso de agrotóxicos e transgênicos. Fruto de um processo coletivo, o produto tem um valor ainda mais especial para agricultoras e agricultores: o flocão é utilizado na confecção do cuscuz, que é tão apreciado e faz parte dos hábitos alimentares em todo o Nordeste.
Para contar a história das sementes da paixão, que foram adaptadas à realidade local por várias gerações, conversamos com Roselita Vitor, da coordenação do Polo Sindical da Borborema, que envolve 13 sindicatos e várias redes de agricultoras/es. Desde o início, segundo ela, os projetos visam fortalecer a agricultura familiar por meio da agroecologia. Com a criação da Associação dos Agricultores e Agricultoras Agroecológicos do Compartimento da Borborema (EcoBorborema) e da Cooperativa Borborema (CoopBorborema), na perspectiva da comercialização dos produtos locais, foram dados largos passos na estruturação da cadeia produtiva do milho.
Como e quando começou esse trabalho com as sementes crioulas na Paraíba?
Lutamos desde 1998 em defesa das sementes crioulas, que aqui na Paraíba chamamos de sementes da paixão. É um movimento muito grande e forte, que já está além do Polo da Borborema, fazendo parte também da Articulação do Semiárido Paraibano e da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). Temos uma rede de 60 bancos de sementes crioulas e lançamos, em 2014, uma grande campanha em defesa das sementes: Não planto transgênico para não apagar minha história. Vem fortalecendo a luta das/os agricultoras/es guardiãs/ões das sementes e, em 2017, a campanha foi lançada pela Rede de Sementes da ASA-PB, no município Boqueirão, sendo ampliada para todas as organizações do estado. Nesse percurso, o nosso desejo era conservar as nossas variedades das sementes e fortalecer a luta contra os transgênicos.
Agora, realizamos o sonho de fazer o nosso cuscuz livre de transgênicos e agrotóxicos. Era um desejo antigo, então começamos, há dois anos, beneficiando o milho para o mugunzá e o fubá. Depois, um tipo de farinha ainda grossa, que fazia um cuscuz mas ainda não cozinhava direito nem ficava como a gente gosta. Trabalhamos esse equipamento depois de uma visita de uma delegação do Polo ao estado do Paraná, com o apoio da Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA). Conhecemos cooperativas e comunidades que trabalham com o flocão, deixando o material mais adequado para fazer o cuscuz. Então, estruturamos o equipamento no Banco Mãe de Sementes, em Lagoa Seca (PB), que foi criado por volta de 2005 dentro do Programa de Desenvolvimento Territorial.
O Flocão da Paixão é um produto com muita qualidade e tem sido uma vitória. Vendemos em cinco quitandas e 12 feiras agroecológicas. Tem uma simbologia muito grande, porque não é apenas um alimento e sim toda uma história de resistência muito forte das guardiãs e dos guardiões . Enfrentamos o Estado, que não reconhecia as nossas sementes, as grandes empresas, cujos transgênicos tentavam sempre contaminar nossas sementes. Tivemos comunidades que foram contaminadas, mas conseguiram fazer bloqueios. Hoje, temos sementes livres de transgênicos, então esse produto é uma forma de resistência na construção da agroecologia. É do nosso território e o cuscuz tem um peso muito grande no Nordeste, um produto cultural que vem do milho. No mês de junho, tem uma simbologia muito forte com a colheita. Tem toda uma relação de um produto alimentar com a cultura das pessoas, então isso é importante e tem sentido de resistência e vitória. Não queremos que chegue apenas às pessoas que têm condições de comprar, mas também às mais pobres.
Qual a capacidade de escala dessa produção, já atende vários municípios da região?
A primeira remessa do flocão rendeu 72 toneladas colhidas nos roçados do ano de 2020. Cerca de 5,4 toneladas serão transformadas em farelo de milho, fubá e xerém. Estão nas feiras e quitandas agroecológicas, além de entregas em Recife, restaurantes em João Pessoa e em territórios de Campina Grande.Tem uma demanda muito grande em vários lugares do Brasil, mas por enquanto as entregas são nesses lugares. Criamos a CoopBorborema, uma cooperativa que também fica no Banco Mãe de Lagoa Seca, para intermediar as vendas. É uma conquista interessante, porque o Polo da Borborema ainda não tinha uma estrutura para cumprir esse papel. Foi um processo bem demorado. Hoje, a Cooperativa está praticamente legalizada. Agora, o desafio é a estiagem mais severa dos últimos anos, qu esstá comprometendo, inclusive, a safra do milho. Teremos uma produção muito abaixo do que esperávamos. Temos uma quantidade de milho armazenada, mas essa queda vai, de certa forma, limitar nossa produção. 2021 está sendo o ano mais difícil no semiárido, [a estiagem] foi muito mais forte do que nos anos anteriores, temos certeza que isso tem a ver com as mudanças climáticas. O Nordeste sempre teve as secas e fortes estiagens, mas como essa nunca tínhamos visto, muito pouca chuva ou muito concentradas em tempos pequenos. Temos feito trocas de mercadorias e articulações com outros territórios, que produzem milho livres de transgênicos e agrotóxicos, para garantir a nossa produção e ajudar a passar esse ano difícil que estamos vivendo.
Quantas famílias e variedades de sementes estão envolvidas nesse circuito das sementes da paixão?
Nossa rede já foi maior, chegamos a 82 bancos comunitários, mas tem ocorrido secas muito prolongadas e fortes, desde 2012. Estamos com 60 bancos, atualmente, envolvendo em torno de 400 famílias trabalhando com a preservação dessas sementes, que giram em torno de mais de 30 variedades. Tem milho, favas, feijão macassa, que chamamos de feijão de corda, e outras sementes guardadas lá nos bancos.
Nesse processo, houve apoio do Estado ou ou alguma política pública de estímulo à produção?
Em 2014, teve um programa muito interessante chamado Sementes do Semiárido, que era um recurso público gerido pela ASA, fomentando e fortalecendo mais de 600 bancos comunitários em todo o semiárido. Isso mostra a capacidade e o papel que têm essas sementes crioulas para as comunidades, e também da política muito acertada pegando experiências de várias organizações e fomentando com recursos públicos. Essa experiência deu muito certo, comprando as sementes das comunidades e devolvendo para elas realizarem a preservação das variedades nos bancos comunitários. Mas depois do golpe à presidenta Dilma Rousseff, em 2016, essa pauta saiu do panorama de fortalecimento da agricultura familiar e do semiárido. Aqui na Paraíba, a Rede de Sementes da ASA construiu uma proposta para o governo do estado, mas não houve apoio. O governo disse que ia comprar sementes crioulas, mas quando as sementes dele chegaram, foram testadas como transgênicas. Isso gerou debate no Conselho Rural de Desenvolvimento Sustentável nos territórios. Então, esse é o desafio de compreender uma política importante para a conservação da biodiversidade local e favorecer a segurança e soberania alimentar das famílias. Pode ser importante para preservar variedades locais e construir comunidades livres de transgênicos, além de promover autonomia das famílias. A lição que fica sobre políticas públicas de sementes é que é possível fazer.
Vocês chegaram a acessar também o PAA Sementes?
Várias vezes, tanto o Polo da Borborema como a AS-PTA. Essa política também fortaleceu bastante [a agricultura familiar], porque no semiárido vivenciamos muitas secas que nos fazem perder sementes entre uma estiagem prolongada e outra. De 2012 para cá, isso foi muito constante, e 2021 está sendo o ano mais difícil. Então, a ausência de uma política de fortalecimento e preservação desse material local diz muito sobre essa diversidade de material genético que as comunidades têm feito a gestão.
Qual o papel das sementes no contexto de pandemia e crise econômica, com o retorno do Brasil ao mapa da fome?
É muito importante ter um alimento produzido no nosso território com um circuito muito pequeno de transporte, isso ajuda as pessoas a terem alimentos com mais facilidade. A pandemia nos mostrou que é possível produzir alimentos agroecológicos em circuitos pequenos, e construir territórios com soberania e segurança alimentar. Vimos a importância da agroecologia na vida das pessoas, e como esses alimentos livres de transgênicos e agrotóxicos podem contribuir para alimentar as pessoas e fortalecer a imunidade e a saúde delas. É um tema importante e esse caminho de autonomia das famílias que buscamos, na perspectiva de construção de territórios agroecológicos. Estamos nessa luta pela agroecologia há mais de 20 anos e tentando fazer esses alimentos da agricultura familiar chegarem mais baratos ao consumidor. Buscar circuitos pequenos e gastar menos insumos na produção, são princípios importantes para a soberania alimentar da população.
Essa entrevista foi publicada originalmente no site da Midia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI.