Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia para a Mídia Ninja
Os debates sobre desmatamento, preservação e conservação do meio ambiente e tantos outros elementos relacionados à sustentabilidade não vêm de hoje. Quando falamos de Amazônia, é quase inevitável tocar nesses assuntos referentes à conservação dos recursos naturais. Mas, muitas vezes, as discussões passam por especialistas e não dão voz aos próprios povos que habitam nesses territórios.
Para tratar desses e outros assuntos, entrevistamos Dione Torquato, uma das lideranças do Conselho Nacional dos Populações Extrativistas (CNS), fundado pelo ambientalista Chico Mendes e seus companheiros em 1985. Torquato é secretário-geral do Conselho, tem 34 anos e é descendente de pais militantes. Participa dos debates socioambientais desde muito jovem e se tornou uma referência na região. Atua em diversos espaços em defesa dos direitos dos povos das águas e da floresta da Amazônica.
Na entrevista, ele alerta sobre os ataques aos territórios e aos modos de vida das populações da região a partir de Projetos de Lei (PL) em discussão no parlamento brasileiro. Fala também sobre as estratégias de resistência dos movimentos populares e do potencial econômico sustentável da região, de forma a conciliar desenvolvimento e meio ambiente. A articulação em rede, a formação política e de gestão têm sido ferramentas para o enfrentamento aos retrocessos impostos pelo atual governo federal.
Como começou o seu envolvimento com os movimentos e a militância política?
Sou extrativista da Floresta Nacional do Tefé, que é um território tradicional de uso coletivo caracterizado como Unidade de Conservação de Desenvolvimento Sustentável (UC), no estado do Amazonas. Tenho uma longa trajetória de ativismo socioambiental, comecei minha militância com meus pais nos encontros promovidos pela Comunidades Eclesiais de Base (CEB), da Igreja Católica, que fortaleceram a organização das comunidades da região. Nos anos 2000, me envolvi nos processos e principalmente na formação dos jovens. Me tornei mais conhecido no Projeto Jovem Protagonista do Fortalecimento Comunitário, criado pelas organizações locais no rio Solimões em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Assumi, a partir de 2012, a Secretaria de Articulação da Juventude na diretoria do CNS e vários espaços como representante da organização. Participei durante muitos anos do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), juntamente com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Fui membro do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) e, desde 2012, faço parte da Reunião Especializada da Agricultura Familiar, que discute, em um dos comitês do Mercosul, a política da América do Sul. Assumi a secretária-geral do CNS em 2019, que faz parte da diretoria executiva, e cuido da articulação política com instituições públicas e privadas, inclusive indo muito à Brasília (DF). Também ajudo no monitoramento das ações desenvolvidas nos territórios do Amazonas e do Acre.
Que pautas têm sido discutidas no CNS frente aos retrocessos ambientais nos últimos anos?
Há um contexto político que ameaça os territórios e a cultura desses povos. O próprio projeto político federal é bem claro na desestruturação e desmonte do Estado. Desde a mudança de algumas atribuições específicas, como órgãos que teriam a responsabilidade de cuidar desses princípios, como o Ministério do Meio Ambiente, até a sua gestão prática. Outro ponto é o enfraquecimento e a mudança de diretrizes das instituições que têm como finalidade atender essa agenda. Vemos isso no ICMBio, no Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis] e, principalmente, na Funai [Fundação Nacional do Índio]. Há pessoas que estão à frente dessas instituições e autarquias que ignoram a importância desses órgãos na manutenção e gestão dos territórios. Tem também o ataque contextualizado, no sentido do investimento público, porque nos anos 2000 tivemos conquistas históricas com avanços de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, o extrativismo e a proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais das florestas e das águas. Mas nos últimos anos, tem ocorrido a restrição ou diminuição do investimento de algumas delas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Essas políticas são fundamentais para a manutenção da agricultura familiar e do extrativismo, já que muitas dessas produções têm uma dependência de mais de 90% delas são comercializadas via compras públicas institucionais. A diminuição dos recursos significa um grave problema na região.
Outro aspecto são os ataques que sofremos no Legislativo, pois nos últimos anos temos visto, de maneira acentuada, uma expressiva flexibilização da agenda socioambiental por meio de projetos de lei ou medidas provisórias. É o exemplo do PL 6040, que visa excluir parte da Resex Chico Mendes, uma unidade histórica com muita importância política e ambiental na região. É uma forma de facilitar aquilo que o ex-ministro Ricardo Salles falou: passar a boiada. Tem também o PL 313, que tem como foco a Resex Verde Para Sempre, no Pará, e pretende mudar a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) e os seus conceitos, permitindo, entre outras coisas, a criação de animais de grande porte. Tem ainda o PL 490, que está na ordem do dia e ataca os direitos indígenas.
Existe também o ataque direto do governo federal, claramente uma expressão do racismo institucional, colocando esses territórios como se fossem algo negativo para o desenvolvimento do País, isso não só na Amazônia O governo tenta evidenciar apenas a questão econômica, sem levar em conta a importância da conservação e a manutenção desses territórios para a subsistência dessas populações. O governo tem dito repetidamente que é muita terra para pouco índio e as unidades de conservação são um entrave para o país, e que as organizações de apoio são criminosas. Isso gera uma ruptura de entendimento por parte da sociedade e expõe esses povos e organizações a ataques.
Como vocês estão se organizando para enfrentar esse cenário desfavorável?
Temos uma incidência no Congresso Nacional de forma a monitorar esses PLs e fazer uma estratégia de enfrentamento. Também acompanhamos o poder Judiciário, denunciando essas violações de direitos, sobretudo as de princípios constitucionais. O Ministério Público tem uma opinião dividida, porém existem setores dentro do MPF que atuam na pauta de povos e comunidades tradicionais a exemplo da 6 Câmara do MPF. Denunciamos também a nível internacional, principalmente a governos que têm cooperações ou acordos com o nosso país. Outro aspecto é a ampliação da nossa relação interinstitucional, principalmente com os movimentos, com os quais temos feito um esforço grande de estabelecer relações, a ANA é um exemplo disso, para discutir uma estratégia com uma agenda comum. Vemos que os ataques, embora individualizados, acontecem com vários desses grupos, como os quilombolas, indígenas, agricultores familiares etc.
Que tipo de violações traduzem esses retrocessos nos territórios?
São várias fragilidades, como as leis de ordenamento territorial, que nos deixam muito vulneráveis juridicamente. Muitas vezes, a própria ausência do Estado, como a Funai e o Ibama, que por trás da capa da pandemia tem se ausentado, tornando esses territórios ainda mais expostos. Mas, percebemos ameaças diretas, inclusive com influência do Estado, com o aumento das queimadas, da mineração e do desmatamento. Há ainda a pressão pela exploração ilegal de madeira e a disputa pelos recursos naturais, sejam eles pesqueiro, vegetais ou caças dos animais silvestres. E tem uma situação de risco, que vem surgindo agora com a ocupação de organizações criminosas nesses territórios, que é muito mais grave do que estamos acostumados. Aumentou também o conflito por causa das ameaças a lideranças de direitos humanos, porque, pela ausência do Estado, elas se colocam na linha de frente e são ameaçadas de morte.
Como está a interlocução institucional com o governo?
O diálogo depende muito. Nós, do CNS, não temos restrição e acreditamos que é importante nos colocarmos e vermos quais são os espaços estratégicos. Há um cuidado para não nos usarem como fantoches para legalizar processos do governo. Hoje, de forma prática, temos apenas dois canais: o comitê gestor do Projeto Floresta+, do Ministério do Meio Ambiente, e a Comissão Nacional de Comunidades e Povos Tradicionais. Temos mais diálogo com os governos estaduais e municipais, como uma estratégia de retorno ao território, de ampliar nossas relações políticas com a nossa base e discutir políticas públicas e formação. A partir daí, emergir e fazer ações coordenadas. Mas, de uma forma geral, o diálogo está muito limitado.
Há uma discussão antiga sobre preservação e desenvolvimento, e muitas vezes criticam os movimentos sociais por posições muito conservacionistas em relação à proteção das florestas. Qual a sua avaliação?
Se você olhar a história geopolítica da Amazônia, toda ela é baseada numa dinâmica socioambiental interligada na relação entre os povos, o meio ambiente e seus modos de produção a partir do uso sustentável dos recursos naturais.. Por outro lado, sempre houve uma pressão política sobre essa região, tanto é que a origem do CNS foi a partir disso. Sempre olharam para a Amazônia de forma exploratória, como um potencial econômico, mas sempre falamos que, para qualquer política de desenvolvimento na nossa região, é preciso olhar a economia como uma das relações importantes. Não se pode perder de vista o aspecto ambiental e principalmente social, porque cuidamos dos territórios.
A questão produtiva tem sido central nessa disputa política. Se olharmos de uma maneira geral, a sociedade compreende a importância da Amazônia para a conservação dos recursos naturais e dos modos de vida locais. Mas não compreende a relação econômica como um modelo diferenciado no uso dos recursos naturais por meio dos manejos sustentáveis. Precisamos visibilizar isso, a Amazônia é um potencial na proteção do território com um viés econômico, por isso precisamos de políticas que cuidem das cadeias socioprodutivas de manejo sustentável da pesca, do extrativismo vegetal não madeireiro etc. Não podemos olhar Amazônia e os territórios apenas como uma oportunidade de valor econômico. O país precisa de emprego e renda, mas o olhar pra Amazônia tem que compreender as especificidades locais.
Existem estratégias de comunicação para colocar em evidência as experiências?
A comunicação é essencial, tanto para fora como para dentro do movimento, porque, se você não conhece seus direitos e o contexto no qual está inserido, não sabe defender a sua proposta. Precisamos comunicar para as nossas bases a importância desses territórios e de termos atores sociais defendendo esses direitos, e também precisamos evidenciar essa importante relação entre o homem, o ambiente e sua modos de produção para a sociedade. Preservarmos a floresta, desenvolvermos uma economia sustentável, que contribui para a redução das mudanças climáticas, podem ser as bases de um modelo de desenvolvimento mais consciente. O mundo discute a política de agroecologia como um processo de transição, mas a agroecologia está intrínseca na nossa vida desde sempre. Precisamos mostrar como esses processos vão contribuir para o que o mundo já fala.
Além das denúncias, quais são as pautas positivas para fortalecer a produção agroecológica?
Potencializar essas iniciativas de manutenção do nosso modo de vida nas florestas, reforçar a nossa luta em defesa dos territórios tradicionais de uso coletivo. Dentre as estratégias, temos a formação política de lideranças, sobretudo as mulheres e a juventude, e de gestão dos seus empreendimentos. Ampliar também as nossas parcerias e promover intercâmbios de experiências, porque eles ajudam a formular essas ações nos territórios, ampliam as dinâmicas e fomentam outras iniciativas. Buscar investimento para fortalecer essas iniciativas socioprodutivas da agricultura e do extrativismo para gerar renda por meio da agroecologia. Criar instrumentos de enfrentamento, de forma a nos dar autonomia com a autogestão dos territórios, além de articular as organizações na resistência e defesa dos seus direitos. Precisamos ocupar os espaços de participação e controle social e atuar nos processos de políticas públicas. Informar para além dos ataques e potencializar a produção. O objetivo é fortalecer os empreendimentos comunitários, de modo a promover planejamentos e o desenvolvimento coletivo com atuações em rede.
Você tem algum dado econômico que retrate essa realidade empreendedora da região, como o manejo sustentável do pirarucu?
De acordo com os dados do IBGE em 2010, temos hoje uma abrangência de floresta de cerca de 517 milhões de hectares, sendo que cerca de 66 milhões deles estão nas mãos dos extrativistas como unidades de conservação. Temos uma renda anual de cerca de R$ 5 bilhões só do extrativismo vegetal não madeireiro, e envolvido nessa atividade econômica sustentável quase 5 milhões de pessoas, sendo destas 1,5 moradoras da Amazônia. Só o pirarucu criado no Amazonas de forma sustentável, por exemplo, tem um potencial de 3 mil toneladas por ano. Dá uma renda para mais de 1500 famílias, cerca de R$ 3 milhões, que mostra como essas cadeias são importantes. A Amazônia não é só a proteção de florestas, tem um potencial econômico produzido pelas suas populações e territórios tradicionais, embora muito ameaçadas pela conjuntura política. , a partir do uso sustentável dos recursos naturais podemos dar exemplo ao mundo sobre possíveis soluções para o desenvolvimento sustentável . Há um desafio muito grande de a sociedade saber a importância não só da valorização ambiental e econômica, mas como inclusão social para sua implementação com o acesso às políticas públicas atendendo às especificidades locais de qualquer bioma do País.
Essa entrevista foi publicada originalmente no site da Midia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI.