Nesta entrevista, Philipe Caetano, do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), fala sobre as mobilizações em defesa da agricultura familiar, em especial sobre a importância de garantir a aquisição de sementes e de mudas via política pública
Após o presidente Jair Bolsonaro vetar a maioria dos artigos do PL 735/2020, destinado a viabilizar ajuda emergencial à agricultura familiar durante a pandemia de Covid-19, organizações e movimentos sociais do campo, das águas e das florestas seguem se mobilizando contra a fome e em defesa da agroecologia. Os vetos¹ ao texto, encaminhado para a sanção após meses de pressão popular, deverão ser analisados por deputados e senadores em sessão conjunta a ser marcada. “Vamos pressionar pela derrubada dos vetos de Bolsonaro. Os créditos e auxílios emergenciais são fundamentais para que a gente consiga ter garantido um cenário de abastecimento popular de alimentos no próximo período”, avalia Philipe Caetano, do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Além da questão envolvendo o PL, Philipe conta que há uma constante mobilização para barrar o total desmonte de políticas públicas caras ao setor. É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que prevê a compra institucional da produção da agricultura familiar e sua destinação a entidades de assistência social. Ou seja, faz a ponte entre famílias que precisam vender seus cultivos e grupos que tanto necessitam acessar alimentos. Nesta entrevista, Philipe, que também integra o Movimento Camponês Popular (MCP), destaca, em especial, a necessidade de garantir a aquisição de sementes e mudas via PAA, possibilidade que se encontra em risco.
A partir da pressão de movimentos e organizações sociais, foi anunciado um orçamento de mais R$ 500 milhões para o PAA em 2020. Porém, Philipe explica que, na prática, não se chegou a essa marca. Além disso, o dinheiro liberado serviu para suprir uma demanda já represada na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável pela execução do Programa. Essa realidade nem de perto contempla a reivindicação total feita pela sociedade civil organizada, que foi de R$ 1 bilhão para o ano.
Philipe destaca ainda que o montante foi aprovado exclusivamente para a “Doação Simultânea”, ou seja, não pode ser destinado ao PAA Sementes, cujo orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) é de até R$ 9,3 milhões. Apesar da aproximação do período de safra em muitas regiões do país, até o momento ainda não foi aberto o prazo de envio de propostas para essa modalidade. “Neste ano em que os agricultores familiares, camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais mais precisam de políticas públicas que garantam a circulação de alimentos e dos materiais propagativos, como mudas e sementes, o governo federal tem empregado insignificantes recursos no PAA Sementes. Isso pode inviabilizar a realização desta política tão fundamental”, pontua cartilha recentemente lançado pelo GT Biodiversidade da ANA sobre o assunto. Leia a entrevista²:
O presidente vetou quase todos os artigos do Projeto de Lei (PL) de apoio à agricultura familiar. Quais são as consequências disso?
A pandemia agravou desafios envolvendo produção, beneficiamento e distribuição de alimentos. As famílias agricultoras não estão conseguindo ter retorno do que investiram em seus cultivos. Estão com dificuldades de comercialização, tendo menos renda e menor capacidade de continuar produzindo alimentos. Em um breve futuro, poderemos ver a ampliação da fome. A tendência é que se reduzam as condições da população, principalmente de parcelas mais pobres, de comprar alimentos, que estão ficando cada vez mais caros. Nesse contexto, construímos um grande processo de luta pela aprovação do PL na Câmara e no Senado, e depois o presidente vetou praticamente tudo. Mas não está acabado. Vamos pressionar pela derrubada dos vetos. Os créditos, fomentos, compras institucionais e auxílios emergenciais são fundamentais para que a gente consiga ter garantido um cenário de abastecimento de alimentos a preços acessíveis no próximo período.
Além da mobilização em torno de uma situação que é emergencial, organizações e movimentos sociais já vinham denunciando a paralisação de políticas públicas para o setor. Isso inclui a defesa do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo. Poderia falar sobre a atual situação do Programa?
O PAA é uma política fundamental para a agricultura camponesa, pois, além de abranger a diversidade de produtos característicos da agricultura familiar, permite que agricultores e agricultoras possam se organizar para produzir, diferente de outras oportunidades em que se eles não têm o produto na hora, não conseguem comercializar. O PAA tem isto: a partir do momento que uma entidade aprova um projeto, você pode se organizar para produzir aquele alimento e você vai ter a venda garantida. Além disso, os alimentos adquiridos da agricultura camponesa via PAA atendem asilos, creches, pastorais, entidades que trabalham com grupos em vulnerabilidade social. Mas ano a ano o orçamento do PAA já vinha sendo reduzido. A demanda existente por parte da agricultura familiar é muito maior do que o Programa consegue abarcar. Recentemente, organizações e movimentos sociais, articulados na ANA, pressionaram pela liberação de um R$ 1 bilhão para o PAA em 2020 como forma de diminuir os impactos da pandemia. A força das adesões a esta luta obrigaram o governo federal a ceder, liberando um orçamento de R$ 500 milhões para a modalidade “Doação Simultânea”. Porém, na prática, não se chegou a essa marca. Foram liberados, desse orçamento emergencial, um financeiro de cerca de R$ 350 milhões. Por outro lado, o que já estava orçado na LOA para o ano ainda não foi liberado. O recurso que saiu serviu para contemplar parte da carteira de projetos que já estava na Conab. Ou seja, o orçamento liberado cumpre um papel de contemplar parte da demanda reprimida de anos anteriores. E as novas demandas que estão surgindo em 2020 irão criar uma nova fila. Então, ainda temos um grande passivo que precisa ser atendido.
O GT Biodiversidade da ANA lançou recentemente uma cartilha que aborda, em especial, a importância do PAA Sementes. Por que é central manter e ampliar essa modalidade?
Ela fortalece a produção e a distribuição de sementes, insumo fundamental para a garantia da produção de alimentos. Quando a gente soube do perigo de não operacionalização do PAA Sementes, tentamos incluir a questão dos materiais propagativos no PAA Emergencial, porém esse ponto foi vetado pelo relator da proposta. Isso ocorreu antes mesmo da aprovação do texto no Congresso Nacional, posteriormente rejeitado por Bolsorano. Mas seguimos com as ações para tentar salvar o PAA Sementes, dando visibilidade a essa política e falando sobre seus avanços e limites. Em nível nacional, muitas entidades operam o PAA, mas o número de acesso à modalidade Sementes ainda é baixo. Queremos mudar isso. O Movimento Camponês Popular (MCP), por exemplo, já vem trabalhando com o PAA Sementes há alguns anos. Conseguimos ter uma grande quantidade de sementes crioulas³ produzidas pela agricultura camponesa e comercializadas por meio do Programa. Circulamos mais de 1000 toneladas de sementes, o que incluiu variedades de milho, feijão, arroz, de amendoim, adubos verdes, dentre outras.
A cartilha que lançamos mostra quais são os passos para acessar o PAA Sementes. Muitas entidades têm trabalho com sementes crioulas, mas não sabem como operacionalizar o Programa. Precisamos visibilizar uma realidade de grande procura por sementes e mudas em regiões semiáridas, em localidades que passaram por geadas ou pelo excesso de chuvas, situações essas que foram ainda mais agravadas pela pandemia. Nesse sentido, temos incentivado os grupos da agricultura familiar a apresentarem demandas à Conab em seus estados, sendo essa uma forma de pressionar os Ministérios da Cidadania e da Agricultura, responsáveis pelo PAA.
E porque é estratégico que as famílias agriculturas tenham o domínio sobre a produção das sementes e mudas?
Construir um processo de autonomia camponesa é fundamental. E isso começa com o mais básico, que são as sementes. Historicamente, estamos sendo reprimidos para a função social de produzi-las e reproduzi-las. O agronegócio criou um discurso de que a semente da agricultura camponesa não é boa, viável nem produtiva, justamente para inserir na agricultura camponesa as sementes produzidas por empresas. Com a possibilidade de as famílias agricultoras serem valorizadas como produtoras de sementes, o PAA Sementes vem contribuindo para mudar esta realidade. Os camponeses passam a ser protagonistas desse processo. Não só produzem sementes para eles mesmos, como as disponibilizam para outros agricultores e agricultoras. Então, quando construímos autonomia, estamos nos desvencilhando do modelo produtivo imposto pelo agronegócio. Quando produzimos nossas sementes crioulas, nossas mudas, nossos insumos, como adubos agroecológicos e defensivos naturais, além de gerarmos alimentos saudáveis, estamos deixando de financiar uma cadeia produtiva dominada por grandes empresas. E a matriz que pode construir essa autonomia é a agroecologia, uma agricultura que constrói a soberania alimentar.
Viabilizar a circulação de mudas e sementes crioulas também fortalece a agrobiodiversidade?
Sim, são processos que culminam. A geração de renda e a construção de autonomia estão necessariamente vinculadas à conservação da natureza, porque, de uma forma geral, o campesinato trabalha a partir da lógica da diversidade de espécies, e não a partir de monoculturas em larga escala. Essa é uma marca da agricultura feita por camponeses, povos e comunidades tradicionais. São esses os grupos que estão cultivando, guardando, melhorando e reproduzindo sementes crioulas. Se eles deixarem de produzir alimentos a partir desse material genético tão diverso e passarem a assumir um material genético pouco diverso, vindo de empresas, estaremos acabando com a nossa agrobiodiversidade.
[1] A decisão do presidente foi anunciada no dia 25 de agosto.
[2] Entrevista concedida à comunicadora Gilka Resende.
[3] São sementes tradicionais guardadas e selecionadas de geração em geração por famílias agricultoras, sem contaminação por transgênicos e agrotóxicos.