Helen Borborema – Articulação Nacional de Agroecologia

Com o cenário de pandemia e muitas incertezas, o Brasil segue navegando sem rumo certo em vários aspectos. Um dos eixos que tem trazido grande preocupação para especialistas é o direito humano à alimentação e segurança alimentar e nutricional das pessoas em situação de vulnerabilidade social. De um lado, a sociedade civil organizada, pesquisadores, movimentos populares e organizações sociais que há décadas vêm construindo propostas e políticas públicas para aprimorar as iniciativas de transferências de renda. Do outro lado, o governo federal, com fortes características neoliberais e diversas ações que têm promovido o desmonte do sistema de proteção social construído, como por exemplo, a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) através de Medida Provisória no primeiro dia do mandato, além do enfraquecimento de diversos outros instrumentos de participação e controle social.

De acordo com Aldenora González, presidenta do Instituto EcoVida, Vice-presidente do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e Secretária Executiva do Fórum Nacional dos Usuários do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), é preciso ter atenção porque, infelizmente, ainda existem muitas pessoas que não compreendem a política de direito e recebem os benefícios como uma política de favor e não é. “É dever do Estado prover a renda para aqueles que ele vulnerabilizou. Ela [a pessoa] não está vulnerável, ela foi vulnerabilizada por um Estado que não deu conta de suprir as necessidades básicas [dos cidadãos]”, lamentou González. “Estamos em um ano propício para isso: ano de pandemia, ano de eleição, onde a compra de voto impera muito, então as pessoas estão extremamente vulneráveis”, afirma.

Segundo ela, é preciso defender a manutenção do Bolsa Família, que é o maior legado de politica pública de proteção social e de transferência de renda. “É extremamente angustiante ver o desmonte do sistema de proteção social e a insegurança alimentar que está instalada no país”, analisou.

Ao analisar a forma de acesso ao Auxílio Emergencial no valor de R$ 600,00, (benefício proposto pelos parlamentares de esquerda e aprovado pelo Congresso Nacional neste tempo de pandemia), González afirmou: “essa forma escolhida para execução do auxílio emergencial foi muito perversa, prejudicou milhares de pessoas a não serem beneficiadas. Foram muitas exigências, muitos não conseguiram sequer ter acesso por falta de celular para baixar o aplicativo”.  E agora que foi anunciado que a continuação do auxílio será de apenas R$300,00, todas as previsões vão na direção de que a economia vai demorar muito a se recuperar e que o país alcançará taxas muito elevadas de desemprego.

Segundo o pesquisador Francisco de Menezes, ”estima-se que metade da população economicamente ativa está sem qualquer atividade profissional e que 40% das famílias não tem nenhuma renda fora o auxílio emergencial ou outros programas de transferência de renda (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, aposentadorias). Por isso, o impacto da redução para R$ 300,00 poderá ser grande, com as consequências decorrentes, sobretudo no acesso a bens essenciais, incluindo a alimentação”, revela.

E para complicar ainda mais a vida das famílias em situação de vulnerabilidade social, os alimentos estão cada vez mais caros nas prateleiras dos supermercados, trazendo de volta o fantasma da fome, tendência que já havia sido amplamente alertada pelos economistas, pesquisadores e diversas organizações ligadas aos trabalhadores e trabalhadoras do campo, inclusive pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). O fato de Bolsonaro ter vetado quase todos os artigos do projeto de lei 735, atual Lei 14.048/2020 – Lei Assis Carvalho, negando apoio à agricultura familiar em tempo de pandemia, não ofereceu nem alternativa para o país. Todo esse desprezo pela agricultura familiar, aliado ao amplo apoio aos grandes produtores do agronegócio, colocou o abastecimento do país refém dos setores mais capitalistas. Prova disso é que neste momento tão delicado, os grandes produtores de alimentos básicos como arroz e feijão, aproveitam a alta do dólar para exportar, acentuando ainda mais a inflação e demonstrando nenhum interesse e responsabilidade com o povo brasileiro.    

PROTEÇÃO SOCIAL E IMPORTÂNCIA DO BOLSA FAMÍLIA

Segundo Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, “há um acordo geral do movimento pela renda básica no mundo e nós afirmamos e reafirmamos (…) que uma renda básica não pode avançar no sentido de unificar e racionalizar programas, ocasionando prejuízos individuais às pessoas que estavam antes em outras políticas.”

Ainda de acordo com ele, “é um contrassenso a gente tirar do pobre para dar para o mais pobre quando, na verdade, a gente tem cada vez mais evidências do acúmulo exagerado de riquezas de certas camadas da sociedade brasileira.

Para Ferreira, é preciso estarmos todos atentos e vermos com cuidado as diferenças que existem entre as propostas. Para ele, o que está sendo construído atualmente, através do Renda Brasil (novo programa que o governo quer implantar como forma de substituir o Bolsa Família), é muito diferente da racionalização promovida em 2003, em relação ao Bolsa Família, que na época unificou o Cartão Alimentação, o Bolsa Alimentação, o Bolsa Escola e o Auxílio Gás. “Nesses programas, ninguém saiu perdendo, quando eles passaram pelo processo de unificação. Agora, quando a gente fala de um processo que possa, eventualmente, absorver um abono salarial, por exemplo, a gente cria uma série de pontos cegos que nos levam a acreditar que, do ponto de vista estatístico, estamos erradicando a pobreza ou a pobreza extrema. Mas, na hora que vai no detalhe, perceber-se que a gente tá financiando uma renda básica distribuindo do pobre para o extremo pobre. A gente tem que tomar cuidado com isso”, mostrou.

O pesquisador Francisco Menezes também refletiu sobre a nova proposta do Programa: “Um grande problema para emitir qualquer opinião sobre essa proposta do Renda Brasil é que o governo não informa, com a devida pertinência, como será esse programa. Muito provavelmente porque não consegue chegar a uma fórmula que garanta ao mesmo tempo os dividendos políticos que Bolsonaro aspira e a manutenção rígida de não gerar novos gastos com a população mais pobre, como defende Guedes.

Para Menezes, o único consenso parece ser a decisão de fazer desaparecer o nome do Bolsa Família, visto como uma marca exitosa do PT, que precisa ser apagada. “De alguma maneira devem chegar a uma solução que implique na unificação de vários programas, como o próprio Bolsa Família, o seguro-desemprego, o seguro defeso, a farmácia popular e até o abono salarial, o que permitiria não furar o teto de gastos”, avalia.

De alguma maneira será a destruição de parte da proteção social, lembrando-se sobre os procedimentos que o governo já vem tendo em relação ao SUAS,  com cortes orçamentários drásticos, e em relação ao CadÚnico, o cadastro único das políticas sociais. Não se sabe, também, como será o gerenciamento desse programa e como serão incorporados novos beneficiários. Fala-se vagamente sobre a necessidade de incorporar mais gente e aumentar o valor do repasse. Portanto, deve diferir muito do Bolsa Família, que em sua trajetória se tornou um programa integrado com outros, dentro de uma perspectiva de fortalecimento da proteção social”, refletiu o pesquisador.

TRIBUTAR OS RICOS PARA RECONSTRUIR O BRASIL

Outro ponto importante nesse debate, que tem por objetivo fazer justiça fiscal e, ao mesmo tempo, garantir recursos para a renda básica de forma digna, é a reforma tributária. Segundo a economista Esther Dweck, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-secretária de Orçamento Federal, existe uma proposta de reforma tributária justa e solidária que foi sintetizada em um documento que se chama “Tributar os super ricos para reconstruir o país.”

Com essa proposta, a previsão é gerar cerca de R$ 292 bilhões  por ano com a tributação das grandes riquezas. Mas para isso, é preciso rever o teto de gastos, se não esse dinheiro não vai para as famílias. “Se a gente não eliminar o teto de gastos, ao gerar esse recurso, ele vai, única e exclusivamente, para reduzir o déficit primário”, alertou a economista.

Além disso, segundo Esther Dweck, é necessário garantir uma reforma tributária de forma redistributiva. “O grande problema da carga tributária brasileira é o grau de inequidade, o grau de regressividade da carga”, afirma.  De acordo com os dados mostrados pela economista, conforme vai aumentando a renda, aumenta o percentual de isenção. “E quando chega na faixa de quem ganha mais de 320 mil reais por mês, quase 4 milhões de reais por ano, tem quase 70% da sua renda isenta, que é fruto da isenção sobre o lucro e dividendos recebidos”, mostra Esther Dweck, explicando a injustiça.

Gráfico que mostra os rendimentos isentos e não tributáveis e escancara a injustiça da carga tributária brasileira

A estratégia principal no Brasil deve ser retomar o crescimento econômico e geração de emprego, mas a gente precisa barrar a destruição que está sendo feita (…), precisa de uma reforma tributária progressiva e mudar a regra fiscal e o novo pacto federativo. A gente viu muito bem, nessa pandemia, o quanto  estados e municípios estão em uma situação em que eles prestam o serviço, porém eles não têm como fazer frente à queda de arrecadação”, avaliou Dweck.

Além da garantia dos recursos, é preciso seguir a lógica da garantia de direitos através de políticas públicas eficientes, que promovem mais cidadania ao invés de puramente ações assistencialistas.  Para a economista, é preciso “um novo padrão de desenvolvimento, onde o foco central passe pela redução das desigualdades “para que seja, realmente, um país para todos e não como a gente vê hoje, que só beneficia uma pequena parcela da população”.

DIÁLOGOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Grande parte desse debate foi construído a partir da  Roda de Diálogo que foi realizado pelo FBSSAN, com mediação do pesquisador Francisco Menezes, no último dia 11 de agosto. Além de integrar o Fórum, Menezes faz parte do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e da ActionAid, uma organização internacional que trabalha por justiça social, igualdade de gênero e pelo fim da pobreza.