É possível construir a agroecologia com desigualdade de gênero? A prática agroecológica é uma pauta feminista? Essas e muitas outras questões e debates movimentaram nossa primeira reunião ampliada do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ). O encontro, realizado entre os dias 1 e 2 de junho, no Assentamento Visconde em Casimiro de Abreu, teve como objetivo central discutir as agendas estratégicas do GT, promover mais um  espaço de formação e fortalecer a auto-organização das mulheres que constroem a Articulação no estado.

 

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Oficina de plantas medicinais com Rogéria Simião

O sítio de Dona Leia, uma das grandes protagonistas das experiências agroecológicas da região SerraMar, foi o espaço que acolheu nossa atividade, com cerca de 25 mulheres de várias regiões do estado. Representantes da região Norte, do Coletivo Regina Pinho, das experiências urbanas de Rio das Ostras e da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, agricultoras de assentamentos e quilombos de Casimiro e de Araruama, estudantes e militantes feministas compuseram o mosaico de experiências e histórias de vida do encontro.

Na programação, espaços de partilha, oficina, rodas de conversa, visitas, plenárias e atividades culturais que ocuparam os dois dias do encontro permeado por trocas e depoimentos das companheiras que constroem cotidianamente a agroecologia e resistem aos diferentes tipos de violência nas várias regiões do estado. Para Emília Jomalinis, do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (PACS), a atividade cumpre o papel de “avançar  na construção de um grupo de trabalho auto-organizado de mulheres, que provoque movimentos e experiências a terem um olhar feminista sobre a prática da agroecologia e sobre os modelos de produção e reprodução da vida, seja aqueles que criticamos como aqueles que estamos construindo em nossas comunidades, assentamentos, bairros e territórios tradicionais. Nosso encontro permitiu que debatêssemos pontos a partir da realidade das mulheres e traçássemos estrategias de intervenção”.

A primeira atividade na tarde do primeiro dia foi a “oficina de ervas medicinais” construída por Rogéria Simião, da Associação Enseada das Gaivotas de Rio das Ostras. Chapéu de couro – contra inflamações, erva doce – digestão, licor de hibisco – controle de pressão e tantas outras receitas foram circuladas entre nós, trocamos folhas, flores e sementes e trocamos receitas de diferentes combinações de chás, pomadas, xaropes e outros preparados naturais. Rogéria, reflete sobre o papel das plantas medicinais em nossas vidas, para ela “a gente se acostuma a ir à farmácia e, por qualquer coisa, correr para uma loja atrás de remédios… Esquece o que temos a nossa volta. E, o mais importante, não acreditamos mais no que podemos ter por conta própria.. Nas nossas próprias casas… ‘Esquecemos que esquecemos’ o que nem sabemos mais [sobre essas plantas] e o que, até pouco tempo, era a nossa principal sabedoria” Rogéria, agricultora de quintal de Rio das Ostras”, segundo a companheira todo dia se aprende com a agricultura e com as histórias das pessoas.

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Construindo ações conjuntas

Na sequência, nos organizamos em três rodas de conversa para discutir os eixos: a violência, a autonomia econômica e a agroecologia. Na conversa sobre feminismo e agroecologia, o texto usado como referência para o debate traz que: “o feminismo dialoga com a agroecologia, porque ambos os movimentos lutam por uma sociedade mais justa. Não é possível construir a agroecologia com desigualdade de gênero”. Portanto, é em 2013, em um dos encontros da coordenação política da AARJ, que é criado o GT Mulheres com o desafio de, entre outros objetivos, reconhecer, valorizar, sistematizar e dar vizibilidade ao protagonismo das mulheres nas experiências agroecológicas.

Segundo Malu, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM-RJ), “discutir autonomia econômica para nós, mulheres, é fundamental, visto que por meio desta pauta questionamos a divisão sexual do trabalho, o controle sobre nosso tempo, corpo e criamos estratégias para a construção de nossa  independência econômica. A economia feminista está a serviço da agroecologia, pois evidencia que  a sustentabilidade da vida humana e da natureza deve ser prioridade da organização econômica. Também foi muito importante nos debruçarmos sobre o tema da violência, que infelizmente é um problema em nosso cotidiano. Foram muitos e impactantes os relatos das companheiras sobre as diversas formas de violência que tem experiênciado nos territórios: física, sexual, psicológica e moral”, nos conta ela reforçando a importância nossa auto-organização, como a principal estratégia que, juntas, podemos construir para nos apoiar, pautar de forma permanente o combate à violência no âmbito das políticas públicas e criar ações de denúncia.

 

Experiências das Mulheres em Casimiro de Abreu

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Dona Graça e Leia as anfitriãs de Casimiro de Abreu

A visita as experiências construídas pelas famílias de Dona Leia e Dona Graça foram nossos espaços de intercâmbio do encontro. Ambas são assentadas da reforma agrária e trazem nas histórias de vida exemplos de jornadas de trabalho bastantes intensas. A rotina de acordar cedo, “dar conta” do trabalho da casa, do cuidados com os filhos, da criação de animais, da horta, da limpeza da casa, ainda é dividido com o cuidado com o roçado e, cada vez mais, com o processamento e comercialização direta dos produtos dos sítios.

Em seu sítio, Dona Leia mantém um roçado de aipim que garante a venda aos comércios da região e a “Cozinha ao Ar Livre”, sonho antigo que cada vez ganha mais forma, são algumas das principais atividades produtivas da agricultora que desde a criação da Articulação de Agroecologia SerraMar cumpre ainda um papel de articuladora da região. O empreendimento da cozinha faz parte de um projeto de agroecoturismo realizado em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente de Casimiro de Abreu.

Gracinha, como Dona Graça prefere ser chamada, acorda cedo para “zelar” como diz ela, das mais de 30 especies de mudas florestais que mantém em seu viveiro. Além da produção de queijos e dos demais cuidados com a casa e a família, Gracinha, desde o ano passado, é responsável pelo viveiro Acácia e Vitória Regia, nomes de suas duas filhas dados ao espaço produtivo mantido e gerenciado por ela, com apoio de um projeto articulado pela Associação Mico Leão Dourado, parceira da Articulação de Agroecologia.

Propostas e horizontes de ação

gt mulheresNosso papel no meio rural e na prática da agricultura urbana, em certa medida, são atividades invizibilidas. A violência cresce e só no estado do Rio de Janeiro, no ano de 2014, foram registrados 56.031 casos de lesão corporal dolosa e 4.725 ocorrências de estrupo. Os dados e as histórias partilhadas pelas mulheres, do campo e da cidade, apontam os desafios para o GT Mulheres no Rio de Janeiro.

A boa notícias é que nossos sonhos e propostas não são pequenos e refletem a força do grupo que cresce e amadurece a cada encontro. Entre nossos principais encaminhamentos estão a garantia de uma rota construída e protagonizada pelas mulheres na Caravana Agroecológica e Cultural do Projeto Comboio Sudeste – prevista para acontecer em agosto de 2015, a participação na Macha das Margaridas – ato que prevê reunir mais de 100.000 mulheres em Brasília, participar também da Marcha das Mulheres Negras – em novembro, a continuidade nos processos formativos articulados pelo GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e, entre outros apontamentos, a construção de uma agenda de lutas e atividades do grupo.

Dona Barbara, do assentamento de Visconde, contou que viu sua mãe torrar farinha no tacho de ferro queimando suas próprias mãos para não usar a pá de madeira que fazia barulho e incomodava o marido que chegaria engomado da cidade para não deixar de alimentar seus filhos que tinham pouco para comer. Não é a toa que Barbara escolheu a mãe como a mulher referência na sua vida e disse que, mesmo pequena, olhava aquilo e dizia: “Mulher não merece isso! Não vai acontecer comigo”. Esses e outros casos de violência ainda são, infelizmente, práticas comuns na agricultura marcada pelo machismo, pelo patriarcado e pelas estruturas do capital.

Acreditamos que são experiências como as construídas pelas mulheres militantes da agroecologia que garantem que a nossa luta prossiga florida e forte. O próximo encontro do GT Mulheres acontece no começo de julho e mais informações serão divulgadas em breve pela lista de e-mails da AARJ e pelas articulações regionais!