Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia para a Mídia Ninja
Desde 1996, a Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), uma organização da sociedade civil que atua no estado, promove o programa Formação de Agente Agroflorestal Indígena (AAFI). O projeto iniciou com 15 alunos em quatro Terras Indígenas e, atualmente, existem 244 Agentes Agroflorestais Indígenas, entre iniciantes, em formação e formados, em 30 Terras Indígenas. Essa é mais uma experiência identificada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Fruto de uma geração de ONGs que surgem no cenário pré-anistia no Brasil com a vontade de democratização e transformação da nossa sociedade, a CPI-Acre foi fundada em 1979 e passou a dar apoio aos povos indígenas ainda sem visibilidade na sociedade. Composta, inicialmente, por um antropólogo, filhos de seringueiros, jornalistas e artistas , a organização passou a auxiliar grupos indígenas nas lutas por terra, saúde, educação, entre outras necessidades das comunidades locais. A partir, de então, as demandas por direitos passaram a ser apresentadas para os governos.
O projeto da AAFI surgiu nesse contexto, para apoiar as comunidades na gestão dos seus territórios recém-demarcados e potencializar os processos sociais e ambientais. Tem como base o princípio da “autoria” e segue uma filosofia pedagógica e socioambiental intercultural. A formação profissional ocorre por meio de cursos presenciais, oficinas itinerantes em aldeias indígenas, assessorias aos agentes e às comunidades e viagens de intercâmbio. Tudo levando em consideração a cultura e os saberes dos aprendizes indígenas. Desde então, houve uma maior incidência de políticas nas comunidades, assistência técnica em sistemas agroflorestais, apoio à recuperação de terras degradadas, melhoria e adequação à criação de animais, manejo integrado de pragas, caça sustentável e, principalmente, a melhoria na segurança e soberania alimentar.
O trabalho de gestão territorial e ambiental com os AAFIs tem apoio do Fundo Amazônia e da Rainforest Foundation da Noruega. A bolsa dos AAFIs é paga via governo do Acre e conta com doação do banco alemão KfW. Um programa foi instituído pela Lei nº 3.357/2017 garantindo uma bolsa de estudo, cujo valor mensal atual é de R$ 800,00, mas os alunos relatam que estão desde o ano passado sem recebê-la. Com a pandemia, também foram estabelecidos novos apoios emergenciais para garantir a manutenção das iniciativas.
De acordo com Paula Lima Romualdo, assessora técnica da CPI-Acre, durante os cursos de formação presencial são implementados e manejados modelos demonstrativos no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF), localizado em Rio Branco. Os modelos dialogam com os saberes tradicionais de cada povo indígena participante e em interface com os princípios da agroecologia. Cada turma envolve, anualmente, uma média de 35 Agentes Agroflorestais representantes de até 14 povos indígenas do Acre. São ministrados módulos de formação por meio de metodologias participativas, que integram e articulam a educação profissional à educação escolar indígena de jovens e adultos em nível básico, contabilizando aproximadamente 300 horas/aula. Além dos cursos intensivos anuais, a formação agrega intercâmbios, oficinas itinerantes e assessorias técnicas realizadas nas aldeias. Atualmente, existem 239 Agentes Agroflorestais Indígenas em atividade no estado e destes, 50 já concluíram a formação. Muitos deles ganharam destaque político dentro e fora de suas comunidades.
“A formação dos AAFIs é referência nacional para a formação indígena em gestão territorial e ambiental. Com o propósito de formar indivíduos que atuem junto às suas comunidades nos sistemas agroflorestais, no manejo e conservação dos recursos naturais e articuladores dos processos de gestão territorial; suas atividades são desenvolvidas no cotidiano e transformadas em reflexão sobre a ação. Nesse processo, foi criada a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), que desenvolve iniciativas em estreita parceria com a CPI-Acre. Atualmente, uma das principais lutas da entidade é pelo reconhecimento da categoria profissional do AAFI. O trabalho dos Agentes procura fortalecer a segurança e soberania alimentar junto às comunidades, além dos aspectos de conservação ambiental e geração de renda”, afirmou Paula.
No Acre vivem cerca de 15 povos indígenas, segundo a Funai, além de dois grupos em isolamento, em 36 terras reconhecidas pelo governo federal distribuídas em 11 municípios. Esses territórios constituem um mosaico de unidades de conservação abrangendo em torno de 8 milhões de hectares, atingindo aproximadamente 46% do estado do Acre, onde se tem registro de 209 aldeias com uma população indígena de cerca de 20 mil pessoas.
Um dos idealizadores do projeto, o geógrafo indigenista e professor da CPI-Acre, Renato Antônio Gavazzi, ressalta que no processo de formação dos professores foi identificada a necessidade de uma ação educativa e participativa. A primeira turma já trabalhava com frutíferas e hortas, no ano de 1996, e depois a proposta curricular foi se ampliando cada vez mais. O Conselho de Educação do Estado reconheceu o currículo específico, intercultural, bilíngue, para formação de agentes agroflorestais de nível médio profissionalizante, mas mesmo assim são muitas dificuldades para a manutenção das bolsas de estudo nos últimos anos.
“Quem protege os territórios indígenas são os próprios indígenas, que precisam ser formados, saber de leis e de gestão. É a única escola no Brasil que reconhece a formação dos AAFIs. Durante a formação, são discutidos temas como gestão territorial, cartografia indígena, ecologia, ilustração científica, artes, esculturas, música etc. Pode-se observar mudanças nas terras indígenas com o plantio de espécies frutíferas, troca de sementes entre povos, quintais agroflorestais, implementação de parques medicinais pelos pajés. O primeiro plano de gestão territorial do Brasil foi realizado no Acre pelo movimento dos AAFIs no estado. É uma contribuição enorme e ajudou a discutir a gestão de forma coletiva no território”, afirmou.
Os agentes e sua Associação
No ano de 2002 foi criada a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), que presta assessoria política e jurídica aos indígenas envolvidos visando o fortalecimento da categoria. A partir da mobilização, algumas conquistas foram alcançadas, como a formalização do curso, em 2009, no ensino médio profissionalizante, com o aval do Conselho Estadual de Educação e do Ministério da Educação, com carga horária de 7.795 horas pelo curso total durante os cinco anos.
Morador do município de Feijó, onde se localiza a terra indígena Katukina/Kaxinawa, do povo Shanenawa, Ismael Menezes Brandão (Siã Shanenawa), que é agente agroflorestal e conselheiro fiscal da AMAAIAC, explica que a entidade foi fundada para atuar em todas as terras indígenas do estado a partir de uma iniciativa dos primeiros alunos formados pelo curso. O objetivo é dar apoio para a organização da categoria, captação de recursos e políticas públicas, intercâmbio entre as comunidades e com os brancos, a fim de levar e trazer cultura e informações, explicou.
“A formação e os professores são muito bons. Aprendemos horta, arqueologia, matemática, agroecologia, a língua indígena, agrofloresta, entre outras. A ideia é compreender o trabalho pra levar melhoria para a comunidade. O melhor é sair formado com o ensino médio profissionalizante, otimiza o tempo de estudo e trabalho. Fortalece a língua indígena, a nossa formação para acessar espaços políticos e a melhoria da alimentação dentro das comunidades. E motiva as crianças a cuidarem da floresta e das culturas tradicionais”, destacou.
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