Guardiões e guardiãs da agrobiodiversidade utilizam a Feira de Sementes Crioulas, realizada anualmente na cidade de Juti, no interior do Mato Grosso do Sul, para resgatar e promover a conservação das variedades genéticas na região. As trocas de sementes e saberes agroecológicos permitem aos agricultores e às agricultoras familiares autonomia na produção de seus alimentos promovendo segurança e soberania alimentar. A preservação dos grãos tem garantido a salvaguarda ambiental e o fortalecimento da diversidade alimentar da população local. Essa é mais uma iniciativa identificada pela campanha Agroecologia nos Municípios, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
As sementes crioulas, segundo a legislação brasileira, são de variedade local ou tradicional, conservadas e manejadas por agricultores familiares, quilombolas, indígenas e outros povos tradicionais. São esses grãos que, ao longo de milênios, vêm sendo adaptados às formas de uso dessas populações e aos seus locais de cultivo. Cada espécie possui uma grande variedade genética, cujo manejo se constitui numa importante estratégia para segurança alimentar e nutricional local. É fundamental na resiliência dos sistemas produtivos, conferindo maior resistência aos ataques de pragas e doenças, bem como às variações do clima. Os guardiões e as guardiãs têm profundos conhecimentos associados às sementes, de modo a conservarem um grande número de espécies e resistirem ao modelo do agronegócio.
Com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2005 os agricultores (as) realizaram a 1ª Feira das Sementes Crioulas e Produtos Orgânicos de Juti, que contou com a participação de 250 pessoas. Fruto de uma articulação das organizações locais, o objetivo é promover a conservação do Cerrado, a troca de sementes, estimular o não uso de agrotóxicos e realizar cursos e oficinas. O evento conta com o apoio da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Prefeitura Municipal de Juti, Embrapa Agropecuária Oeste, Instituto Cerrado Guarani e Associação de Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS).
Ao longo desses 15 anos de feira, mais de 10 mil pessoas de diferentes regiões e do Brasil e também de outros países da América do Sul passaram pelo evento. Na ocasião, promoveram a troca de mais de 300 variedades de sementes crioulas, contabilizando ao todo mais de 5 toneladas. Hoje, esse tradicional evento é um marco na conservação e resgate das sementes crioulas no estado do Mato Grosso do Sul.
De acordo com o prefeito Gilson Marcos da Cruz, recém-eleito no município, a Feira de Sementes Crioulas, que acontece há muito tempo na cidade, é uma grande iniciativa para incentivar as trocas de sementes nativas e crioulas e o conhecimento ambiental com palestras e visitas.
“Nós assumimos a administração municipal em Janeiro de 2021 com muitas dificuldades. No entanto, já tivemos uma prévia com a professora Zefa Valdivina (UFGD) e vamos auxiliar financeiramente o projeto. Já acertamos uma agenda pré-estabelecida entre a Prefeitura de Juti e a organização da feira. Sempre fui apoiador do evento e, com reuniões e oficinas pontuais, conseguiremos ampliar e avançar nos objetivos da feira”, afirmou o prefeito.
Bancos Comunitários de Sementes Crioulas
As comunidades indígenas das etnias Guarani-Kaiowá têm uma enorme responsabilidade na contribuição da conservação do patrimônio genético das sementes crioulas da região. Há décadas, cultivam centenas de espécies e, com o passar do tempo, foram se aproximando dos movimentos e iniciativas da sociedade civil. Nesse processo, a pesquisadora Zefa Valdivina Pereira, professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), juntamente com diversos parceiros, iniciou um trabalho com bancos comunitários de sementes crioulas.
Era anseio antigo das comunidades assentadas e indígenas, diagnosticado a partir de um processo participativo realizado pela UFGD, ter um banco para armazenar suas sementes, trocadas desde de 2005 na Feira de Sementes Crioulas de Juti. Fruto de uma parceria também do Instituto Cerrado Guarani e a Prefeitura Municipal com recursos do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Chamada MCTI/CT-AGRONEGÓCIO/CT-AMAZÔNIA/CNPq Nº 48/2013), o banco tem como moeda de comércio a semente. Hoje possuem cerca de 3 toneladas de sementes crioulas de várias espécies e atendem cerca de 60 famílias.
“Com a criação do banco de sementes, surge a oportunidade dessas famílias produzirem seu próprio alimento numa visão agroecológica e comercializarem o excedente. Além de resgatar variedades tradicionais, o banco fornece ao agricultor segurança na hora do plantio. Quando o agricultor planta e a safra se estraga, ele não garante a reprodução dessa semente e a variedade fica comprometida. Então, os agricultores passam a ter com o banco uma garantia maior, não só pela estocagem, mas também pela interação com outras localidades e famílias, o que pode facilitar o resgate das sementes que se perderam”, destacou a professora Zefa.
Cada agricultor associado pode retirar do banco uma quantidade de até 20 kg de sementes para o plantio anual de sua lavoura, assumindo o compromisso de, após a colheita, fazer a reposição das mesmas na proporção de uma para três. Havendo disponibilidade no estoque, o interessado pode retirar uma quantidade maior, conforme suas necessidades de plantio. Após a colheita, as sementes são repostas, beneficiadas, classificadas e armazenadas no banco.
O mesmo edital do CNPQ contemplou a comunidade indígena da Aldeia Tey Kuê e possibilitou a criação do Banco de Sementes Crioulas Poty Reñoi, no município Caarapó (MS). O projeto envolve 80 famílias, que receberam diversas sementes e assistência técnica. Isso facilitou a articulação com órgãos governamentais, mas até o momento, sustentam-se de forma autônoma para manter sua cultura e seus hábitos alimentares. O banco de sementes é utlizado pela comunidade como um instrumento educativo, tendo em vista que a agroecologia já faz parte do projeto pedagógico da escola municipal da aldeia.
Segundo Cajetano Vera, professor indígena da Escola Municipal Tengatui Marangatu, todas as iniciativas fazem parte de um processo de resistência e preservação da cultura local, que há algumas décadas foi atingida pelo agronegócio da soja no entorno de Dourados. O arrendamento dos territórios da aldeia foi ameaçando a forma de plantio ancestral e inserindo novos hábitos alimentares entre os indígenas, acrescentou. Nesse contexto, o banco de sementes e as formações nas escolas foram fundamentais para a preservação da cultura local.
“Os índios começaram a ficar com doenças cosmopolitas, e percebemos que existem alimentações muito importantes na aldeia que foram se perdendo. Então, na escola onde trabalho, que tem 1200 alunos indígenas, o importante é encontrarmos soluções para os nossos problemas. Há subnutrição, fome, dependência de cestas básicas, e, em contrapartida, tem um quintal pequeno que poderia produzir alimentos. Não podemos ficar dependendo da Funai [Fundação Nacional do Índio], da Agraer [Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural], da Universidade trazerem sementes para a comunidade, pois acabam passando os tempos de plantio e de colheita”, destacou.
Tudo começou com um hectare de roça orgânica, quatro professores e os alunos trazendo sementes, que não eram comercializadas, das suas casas para plantarem nos canteiros do colégio. As variedades foram selecionadas (feijão, milho, amendoim, abóbora etc) e com as parcerias firmadas após a aprovação do edital do CNPQ ocorreram várias atividades de capacitação. O resgate do milho saboró, por exemplo, tradicional guarani, é um dos exemplos da diversidade genética local. Foram três anos de produção e hoje o modelo de roça de quintal se estende por toda a comunidade, e há uma feira agroecológica e vendas na cidade por whatsapp. Só vendem o excedente, pois o princípio é primeiro encher a barriga dos moradores.
“O excedente pode vender na cidade ou até via PAA e PNAE. Está ficando bastante grande, porque com o financiamento do CNPQ conseguimos uma casa climatizada, que guarda até 10 mil quilos de sementes. Temos muitas variedades de grãos, hortaliças, tubérculos etc. Produzimos sementes e realizamos atividades grandes com a Funai e a Secretaria de Agricultura, mas já não dependemos de nenhum órgão para produzir e guardar as sementes. Todos sabem o ciclo, quando plantar e colher, o que é saboroso, todo conhecimento que facilita. A feira está sendo muito boa para as comunidades, assentamentos e aldeias. Estamos procurando parcerias para venda e logística para escoar os produtos. Nossa próxima etapa é conseguir DAP [Declaração de Aptidão do Pronaf] para vender melhor nossos produtos orgânicos”, afirmou Cajetano.
As sementes são resistentes ao calor, à chuva das estações e às pragas, como as formigas, que não atingem certas lavouras. Os agricultores (as) e indígenas, utilizam a variedade como estratégia de defesa, sem a utilização de nenhum agrotóxico e dependência de adubos, pois reutilizam os bagaços como forragem para continuar plantando. Estão dialogando com parceiros para a aquisição de sementes crioulas de arroz, a fim de não precisarem mais comprar e gerar soberania alimentar às comunidades.
Edição: Viviane Brochardt
Esta matéria foi publicada originalmente no site da Mídia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI.
Eu fui um dos participantes do encontro que pelo que me lembro foi o primeiro encontro nacional de agroecologia que aconteceu no Rio de Janeiro a sede da realização de encontro foi na UFRJ. Tive uma experiência que até os dias de hoje contribui minha vida contidiana, tem ajudado formulação minha formação, na qual atuo na área do controle social da segurança alimentar e o controle social na saúde e na briga contra os agrotóxicos.