Por Eduardo Sá
“Fiscais precisam ter uma visão menos higienista e cartorial”, defende coordenadora da Vigilância Sanitária Municipal de Terenos (MS).
O tema da vigilância sanitária é recorrente nos debates sobre a agricultura familiar, devido às dificuldades que os pequenos empreendimentos enfrentam para atender as exigências impostas, e muitas vezes inadequadas, às suas realidades. Mas, existem iniciativas espalhadas no Brasil apontando para uma relação mais flexível e amistosa entre os fiscais sanitaristas e os pequenos produtores rurais. No município de Terenos, no interior do Mato Grosso do Sul, por exemplo, tem ocorrido diversos avanços em relação às agroindústrias e aos produtos hortifrutigranjeiros.
Para abordar o assunto e relatar essa experiência local, conversamos com a sanitarista Haideline Mertens Kuff, que é coordenadora da vigilância sanitária da cidade. Na entrevista, ela explica as diferentes legislações e atribuições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sobre o tema. Fala também da importância de os fiscais sanitários mudarem seus comportamentos higienistas para uma visão mais ponderada e adaptada às realidades locais.
A iniciativa foi identificada pela campanha Agroecologia nas Eleições, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que acontece em todo o país.
Quais são os órgãos e suas funções em relação às questões sanitárias para a agricultura familiar?
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), juntamente com as vigilâncias sanitárias estaduais e municipais, são responsáveis pelos produtos dispensados de registro, como os hortifrutigranjeiros, os doces e geleias, por exemplo. Há também os produtos minimamente processados, como fruta limpa, higienizada, cortada em cubinhos e embalada. Pedaços de fruta não precisam de registro e são as vigilâncias municipal e estadual que autorizam sua comercialização. Mas, para a extração da polpa de fruta processada é preciso ter SIM [Serviço de Inspeção Municipal], SIE [Serviço de Inspeção Estadual] ou SIF [Serviço de Inspeção Federal]. Esses serviços são ligados ao Ministério da Agricultura (Mapa) e não à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Então, mesmo que nos dois processos o resultado seja o suco de fruta, há essa diferenciação da exigência do registro, no caso das polpas de fruta, e da liberação do registro, quando são pedaços de fruta. Trabalhamos sempre com essa brecha que beneficia o agricultor, porque assim ele pode entrar no mercado ou participar de compras públicas, como o fornecimento de alimentos para a merenda escolar, e ter seu alvará sanitário para comercializar. O SIE ou SIF, que são para comercializar em outros estados e municípios, são complicados para o agricultor. Só quando ele participa de cooperativa ou associação é que consegue montar uma estrutura um pouco melhor para cumprir toda a legislação e acessar esses registros.
Quais os principais desafios para os pequenos empreendimentos rurais?
Para o agricultor familiar é sempre um desafio se adequar à legislação, principalmente com relação aos produtos de origem animal. Muitas pessoas associam o SIM à vigilância sanitária. Aqui em Terenos (MS), temos a Secretaria Municipal de Saúde, a qual a vigilância sanitária está vinculada. Já o SIM está ligado à Secretaria de Desenvolvimento Agrário Rural e tem uma médica veterinária responsável pelas liberações do Selo de Inspeção Municipal. A vigilância só fiscaliza o produto já pronto no comércio e faz algumas inspeções em conjunto.
Qual o principal gargalo para quem trabalha na base, é na questão da escala, suporte técnico e informação ou outra coisa?
É o estado e o município criarem suas legislações próprias, mais flexível. Às vezes, as normas são baseadas no que preconiza o Ministério da Agricultura ou o que estabelecem outros municípios com uma estrutura maior. Isso acaba atrapalhando na regularização. O fiscal, seja da vigilância seja do SIM, necessita ter um olhar para o risco sanitário na produção do alimento no local. Muitas vezes, o local onde é feito o processamento do alimento é uma estrutura grande e com tudo que precisa, seguindo todos os manuais e procedimentos operacionais. Só que, no processo de produção, acaba apresentando risco ou contaminação. E uma estrutura um pouco menor, como a do agricultor familiar, pode não apresentar risco nenhum. Então, precisa haver uma mudança de atitude na fiscalização, porque é muito fácil ter a legislação com o roteiro das determinações a cumprir e, ao fiscalizar um pequeno agricultor, se este não cumprir todas as determinações apontadas, não estará apto a receber o selo do SIM ou o alvará sanitário. O fiscal precisa ter, portanto, um olhar menos higienista e cartorial, necessita ter o princípio da razoabilidade pautado no seu ato de fiscalização.
Usamos muito uma Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa, a RDC 49/2013, que trata da inclusão produtiva com segurança sanitária. Quando a li pela primeira vez achei um absurdo. Ela dispõe sobre a inclusão produtiva, do Micro Empreendedor Individual (MEI), do agricultor familiar, do empreendimento solidário, das cooperativas e agroindústrias. Era muito fácil, como fiscal, falar para esses sujeitos individuais ou coletivos: se você não seguir isto, não está apto a ter sua licença sanitária e não pode vender seus produtos. Com o tempo, fui olhando, estudando e entendendo a realidade do agricultor do nosso município e a dificuldade que ele tinha de formalização do produto para colocá-lo no mercado. Me moldei enquanto fiscal a ter um olhar diferenciado e a ponderar muito as coisas, ao invés de usar aquele modelo travado higienista. Não é preciso cumprir tudo que está ali para começar a comercializar, é possível começar com uma estrutura pequena que não apresente risco, devemos acompanhar o fluxo de produção desse alimento e analisá-lo. Desde 2016, os agricultores nos veem como parceiros, não como inimigos.
Isso é um pouco raro, não?
Não é muito comum. Como aqui nossa população é 58% rural, tentamos trabalhar com a agricultura familiar, porque nos procuravam para regularizar os produtos. Quando iniciamos o projeto de inclusão produtiva, em 2016, convidamos, por duas vezes, esses agricultores para uma reunião e não apareceu ninguém, pois os agricultores achavam que a vigilância ia pra prender os produtos ou algo parecido. Na terceira vez que marcamos, alguns souberam, através do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural, que era uma outra visão. Até o pessoal da Agraer, a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural, que em outros estados é conhecida como Emater, nos ajudou bastante. Apareceram 20 produtores e mostramos para eles que a vigilância estava ali para ajudar e não punir. Quebramos o paradigma de que a vigilância sanitária “só dá prejuízo”. No encontro seguinte, para nossa surpresa, apareceram 55 produtores. Hoje, temos mais de 80 produtores cadastrados vendendo seus produtos, inclusive para outros estados. A maioria dos produtos aqui são hortifrutigranjeiros – como mandioca, abobrinha, cenoura, entre outros – e doces, como rapaduras, geleias e outros.
Tentaram implantar o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISB-POA), através de consórcio com outros municípios, mas como não tínhamos o SIM estruturado, não foi possível. Alguns agricultores ainda possuem “medo” da vigilância, é preciso quebrar essa barreira e ir atrás das legislações e dos seus direitos. No final, o que conta é a postura do fiscal sanitário no momento de interpretar e aplicar a legislação. Existem alguns que topam o desafio de ajudar, mas outros não liberam a produção se não estiver conforme está descrito na legislação.
A própria estrutura exigida já não é um desafio para o pequeno agricultor?
É um desafio, mas é preciso trazê-lo para perto e mostrar que a vigilância sanitária está disposta a ajudar e não dificultar a entrada do produto com qualidade no mercado. Pode começar com uma estrutura pequena, mas o lugar tem que estar limpo e com condições higiênicas sanitárias para manipular/produzir e, conforme for crescendo, melhorando o poder aquisitivo, ir melhorando a estrutura. Temos tido êxito em Terenos, agindo desta forma e adotando essa visão enquanto fiscais sanitários. Como sou concursada é mais fácil, mas em cargo de confiança ou contratado é mais complicado adotar essa prática.
Para alguém que não está vinculado a uma organização é muito mais difícil?
É inviável, para o agricultor familiar que não está vinculado a uma associação ou cooperativa, ter uma estrutura física conforme as legislações solicitam, porque fica muito caro e o retorno acaba não sendo o esperado. Um exemplo é o caso da polpa de fruta. Por isso, recomendo fazer a fruta minimamente processada, porque fica mais fácil a regularização e o agricultor poderá participar de chamadas públicas, licitações entre outras modalidades para a aquisição de alimentos. A prefeitura também precisa ser parceira para realizar a troca do tipo do alimento, como por exemplo, de polpa de fruta para a fruta minimamente processada ou alimento congelado. Assi, os agricultores poderão participar das chamadas públicas.
Então, apesar de a lei limitar muito, há a possibilidade de o fiscal ser mais flexível?
Ainda falta muito do poder público, porque querendo ou não as coisas vêm de cima para baixo. Mostramos que dá pra fazer. Em 2018, em uma reunião do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, [órgão extinto pelo atual presidente da República], onde tive a oportunidade de dividir a experiência exitosa realizada no município de Terenos/MS, o Ministério da Agricultura estava presente. Naquele momento, houve uma discussão sobre a questão da polpa de fruta na alimentação escolar. Foi quase uma um cabo de guerra para a Anvisa assumir e facilitar a vida do agricultor. O Mapa quase cedeu, mas com a mudança de gestão a discussão não foi retomada. Também em 2018, com a Lei nº 13.680 de 14/06/2018, houve a criação do Selo Arte, que permite a comercialização interestadual de produtos alimentícios produzidos de forma artesanal, visando flexibilizar a venda dos produtos de origem animal, mas quase não ouvimos mais falar dessa lei.
Qual a importância do SIM e quais as principais dificuldades enfrentadas pelos agricultores para acessá-lo?
Para o agricultor familiar, o produto de origem animal é o que gera maior renda, como leite, queijo, doce, salame etc. Muitas vezes, o agricultor tem o leite e quer fazer um queijo para ter um lucro maior e não pode, porque a estrutura é pequena e não se enquadra à legislação. Ele acaba vendendo para o grande produtor por um preço abaixo, o que reduz muito o lucro, pois o agricultor acaba terceirizando o produto que poderia fazer no seu próprio sítio. Volta na questão do fiscal, porque às vezes ele fica somente naquela sala com ar-condicionado, estudando a legislação para aplicá-la, e não conhece na prática a realidade do produtor rural. É importante ver o quanto o produtor luta para manipular o seu produto e ainda, por vezes, encontra dificuldade para escoá-lo. Se o fiscal não for flexível, não adianta um município fazer uma legislação flexível, porque o gestor vai querer sua avaliação. Já presenciei muitas inspeções em que achei um absurdo a postura do fiscal. Às vezes, o local não tem o pé direito de uma certa altura e não é azulejado até o teto, mas o fluxo de produção não apresenta nenhum risco. É preciso acompanhar o produtor na manipulação do seu produto e, assim, estabelecer uma relação menos fria e de parceria, entre a vigilância sanitária e o agricultor.
Onde está o problema, na formação desses técnico? Há necessidade de fazer capacitações e trocas de experiências para melhorar essa visão?
Essa formação precisa ser iniciada nos bancos universitários. Não sei se um estudante de medicina veterinária, por exemplo, só estuda a legislação sanitária. Será que estuda o trabalho em si? Será que visitam uma agroindústria familiar feita numa área de 4m x 4m? Aquela realidade, muitas vezes, não é a que ele viu na legislação. Há fiscais que colocam o “colete” e acham que podem notificar e punir todos que não cumprirem as legislações na íntegra. A gestão deve fornecer cursos com essa visão menos higienista e cartorial, pautando o princípio da razoabilidade muito mencionado na RDC 49/2013, onde o fiscal sanitário deve agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada. A flexibilização da legislação é possível, é muito importante investir nessa forma de enxergar a realidade mais ampla. Muitos acham que com aquele jaleco, infelizmente, podem fechar e multar todo mundo. É preciso ser mais ponderado.