Por Eduardo Sá
Edição Viviane Brochardt
O mandato agroecológico de Marcos José Abreu (PSOL), mais conhecido como Marquito, eleito em 2016 para a Câmara de Vereadores de Florianópolis (SC) e, atualmente, candidato a reeleição, é mais uma iniciativa extremamente importante mapeada pela campanha Agroecologia nas Eleições, desenvolvida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Diversas leis foram aprovadas no âmbito local em favor da agroecologia e do desenvolvimento sustentável na cidade de Florianópolis, a partir da luta institucional na Câmara Municipal.
Após mais de uma década de militância agroecológica nos movimentos sociais e no terceiro setor, principalmente na ONG Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), Marquito tem aberto espaço para as propostas da sociedade no Legislativo. Engenheiro agrônomo com mestrado em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tenta unir o conhecimento científico com as práticas tradicionais dos agricultores e agricultoras familiares da região. É especialista em compostagem, agricultura urbana, permacultura, dentre outras práticas agroecológicas.
Embora paute o alimento no centro do debate econômico e político, sua agenda não se restringe a isso. Com uma proposta de buscar o equilíbrio ecológico com justiça social, tem apresentado diversas soluções que preservem a biodiversidade da capital catarinense, valorizando as pessoas que vivem nesses territórios. Na entrevista, Marquito conta como surgiu o mandato agroecológico, quais os avanços até o momento e as propostas para as eleições. Para ele, não se trata apenas de inserir a agenda agroecológica na política institucional, mas de atuar em coletivo com uma visão sistêmica sobre as soluções necessárias.
Em qual contexto surgiu o mandato agroecológico?
É resultado da minha trajetória junto ao movimento e do tecido social que compõe o mandato. Entrei no Cepagro como bolsista, em 2002, e, dois meses depois, participei do I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA). Minha militância e a construção das relações políticas se deram nesse contexto da agroecologia, junto à Rede Ecovida e à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Trabalhei com o tema da certificação participativa em rede, que depois se transformou em Sistema Participativo de Garantia (SPG). Conheci o pessoal da ONG AS-PTA [que trabalha no Rio de Janeiro, Paraíba e Paraná] e da Rede de Minas Gerais. Tive contato com a agricultura urbana e trabalhamos com isso nos anos seguintes. Em 2006, me formei, assumi a coordenação do Cepagro, onde fiquei durante dez anos, e estive à frente, por duas vezes, do Consea-SC. Sempre participei da construção da agroecologia no campo e na cidade, tecendo redes solidárias, realizando muitos projetos unindo agroecologia, agricultura urbana, combate aos agrotóxicos, soberania e segurança alimentar e nutricional, gestão dos resíduos. Como havia me filiado, em 2015, ao PSOL e colaborado nas duas campanhas anteriores no plano de governo, respondendo questões ligadas à agroecologia e à agricultura familiar, propuseram a minha candidatura. O mandato se construiu a partir dessas bases. Fui eleito e fizemos o planejamento estratégico com três linhas de atuação: ecologia, redes e justiça social.
Quais eram as prioridades do projeto e qual o balanço hoje?
Tiramos como prioridade a Política Municipal de Agroecologia e Produção Orgânica (PMAPO), que teve como inspiração a política nacional e o documento criado na conferência municipal. Realizamos uma série de oficinas com a sociedade civil e a assistência social. A PMAPO foi lançada dando peso bem forte à agricultura urbana. Foi o grande laboratório nos três primeiros meses do mandato até protocolar o projeto na Câmara. A segunda prioridade do mandato foi a Lei da Compostagem, garantindo a obrigatoriedade da reciclagem dos resíduos orgânicos da cidade, que tem a ver com a nossa visão de saneamento. É uma abordagem agroecológica para gargalos na cidade, como habitação e saneamento. A mais recente iniciativa nossa foi a criação da Zona Livre de Agrotóxicos no município de Florianópolis, proposta construída no Fórum Catarinense de Combate ao Uso dos Agrotóxicos e Transgênicos. Já atuei no Fórum como coordenador adjunto representando o Consea, no período em que estive no Conselho. Protocolamos o projeto segundo as legislações estadual e federal e a nossa Lei Orgânica Municipal, para não incorrermos em inconstitucionalidade. A Zona Livre de Agrotóxicos visa proteger mananciais, restingas etc. Temos uma baixa presença econômica da agricultura convencional e uma aptidão e sensibilidade muito grande da sociedade para o acesso a alimentos agroecológicos. Usamos também como justificativa a maricultura artesanal, que sofre muito com a contaminação dos mares, especialmente das áreas de baía. Já havia um debate muito forte na Câmara, com a gente levando para dialogar agricultores, professores universitárias, promotores do Ministério Público. Começamos a divulgar também números sobre a mortandade das abelhas sensibilizando muito a sociedade.
Tem a ver com o projeto Jardins de Mel, que também é uma proposta do seu mandato?
Tem uma lei nossa que foi aprovada no dia 28 de setembro deste ano e dispõe sobre proteção às abelhas nativas sem ferrão (meliponas) e estímulo à polinização urbana. Mas, o que sensibilizou muito os vereadores foi, justamente, a publicação pela imprensa de informações sobre a morte de abelhas por agrotóxicos. Adequamos para legislar sobre aplicação e armazenamento de agrotóxicos e acabamos aprovando a lei por unanimidade. O próprio prefeito [Gean Loureiro], que na época era do MDB, logo sancionou, porque havia uma repercussão positiva muito grande. Sou oposição e fazemos enfrentamentos bem pesados. O prefeito agora é do DEM e, mesmo assim, somos um dos mandatos mais propositivos da Câmara. Uma coisa bem importante é que aprovamos uma diretriz orçamentária com o Programa 116, que garante espaço orçamentário nas ações de agroecologia e na segurança alimentar e nutricional.
Até que ponto é possível avançar na questão da agricultura familiar a nível municipal? Falta competência e recurso para isso?
Na questão de abastecimento, por exemplo, é possível, a partir de políticas federais, garantir a contrapartida municipal no orçamento próprio e dar um plus nessas políticas. É possível realizar políticas agroecológicas com recursos próprios municipais, porém as peças orçamentárias não estão apropriadas para isso, com diretrizes que apoiem emendas orçamentárias. Por isso, abrimos esse espaço e quando o orçamento chega na equipe técnica das secretarias, por exemplo, tem servidores sensíveis à causa que podem botar um recurso para a agroecologia e a segurança alimentar e nutricional.
Mesmo sendo oposição, conseguimos aprovar um programa de governo com um código orçamentário, garantindo R$ 130 mil para o Programa Hortas Escolares Sustentáveis, R$ 75 mil para o Programa Municipal de Agricultura Urbana, R$ 10 mil para o Programa de Fortalecimento da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde e R$ 10 mil para o Programa de Fortalecimento do Sistema Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. Parece simples, mas isso é uma coisa até mais importante que a própria lei, porque política pública só é realizável com orçamento público. Aprovamos também o Programa 115, que é o Bem Viver e Bem Nascer, para construção de uma casa pública de parto normal. Hoje, vemos essa agenda sendo apresentada como propostas por novas candidaturas, tanto da direita como da esquerda. Viram que era um nicho eleitoral para eles e foram dando espaço para fazer estas ações.
Dentre esses temas que você apontou, qual é o mais estrutural ou reconhecido como uma conquista importante perante a sociedade?
De acordo com o relato dos agricultores, um avanço considerável foi a questão das feiras agroecológicas, que estavam sofrendo muitos ataques e pagando altas cargas de licença. Fizemos um debate e está todo muito mais tranquilo. Então, tem uma política instituída, mas o governo entende que é preciso dar condições mais seguras para esse pessoal trabalhar. Conseguimos o alvará coletivo e os temas da agroecologia e do direito humano à alimentação adequada ficaram muito evidentes na cidade. Agora, o prefeito “deu arrego total” e colocou orçamento para a construção do primeiro Restaurante Popular da cidade, sem a iniciativa privada, que era um debate de anos. Avançamos também no reconhecimento dos pescadores artesanais e maricultores para venderem diretamente seus produtos. Outras conquistas importantes são a Política de Produção de Cervejeiros Artesanais e a Lei da Economia Solidária Municipal, que trouxe dignidade aos artesãos, dá legitimidade a ações que vêm acontecendo e são invisibilizadas. Dar publicidade ao tema é a primeira coisa que faz uma lei e depois traduz isso do ponto de vista da estrutura administrativa e orçamentária no município. Por isso, é tão importante ter aprovado essa diretriz que garante a lei orçamentária deste ano, embora, infelizmente, alguns projetos tenham sido cancelados por causa da pandemia.
Você está falando muito sobre recurso e participação social, mas qual a discussão de fundo na direção de um projeto estrutural de desenvolvimento sustentável?
O termo mandato agroecológico é bom por um lado e, por outro, parece que restringe um pouco a pauta. Percebemos que tem um entendimento quando se fala em agroecologia. É resultado de muitos anos de trabalho do Cepagro, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Rede Ecovida, das organizações dos agricultores. Tem muita gente começando a plantar em pequenos espaços, seja para comercializar ou produzir alimentos para consumo. Então, há um ganho temático. Entendemos que aprovar a Lei da Zona Livre de Agrotóxicos é dar uma mensagem ao Brasil e ao mundo: que é possível ter zonas livres desses produtos químicos com alto impacto e muito perigosos. Especialmente áreas com características socioambientais onde é necessário que haja proteção da água, da biodiversidade etc. Garantimos a possibilidade de um olhar para a cidade numa perspectiva agroecológica e isso pode atrair turismo, pessoas etc. Temos, por exemplo, uma fazenda experimental dentro da universidade e, na pandemia, criamos o programa Plantio Agroecológico Solidário, com voluntários plantando em quase meio hectare de horticultura. Os alimentos são distribuídos para as redes de apoio solidárias, como as cozinhas comunitárias autogestionadas, que entregam alimentos para população em situação de rua. Esse processo legislativo com mandato agroecológico deu muito mais popularidade ao assunto. Estruturas da prefeitura, como a atenção básica em saúde, têm olhado, desde 2015, para a agroecologia como uma prática de prevenção e saúde que pode ser muito importante. Há uma apropriação do tema pelos sistemas públicos como instrumento para suas práticas e atividades fins.
Vocês tiveram alguma estratégia de comunicação para dar visibilidade aos temas? Há uma boa relação com a mídia e ela influenciou nesse crescimento?
Há um processo de não dar destaque à figura do Marquito (PSOL), porque tem um conjunto de interesses econômicos. O principal jornal impresso está nas mãos dos Republicanos, da igreja Assembleia de Deus, então, sumimos ali. A NSC (Notícias de Santa Catarina) está completamente entregue num contrato feito com o prefeito e, como eu sou oposição… Às vezes, saem notícias ligadas ao tema, mas não o meu nome. A própria Lei da Zona Livre apareceu em muitos lugares, mas só depois que o prefeito sancionou dando todo o holofote para ele. Ao mesmo tempo, tem uma série de ações como compras coletivas eco-solidárias, as feiras, o próprio trabalho do Cepagro, que traz visibilidade em mídias que acabam repercutindo positivamente e a gente ocupa o espaço e fala. No período de campanha, estamos falando sobre qual a abordagem agroecológica queremos para a cidade, que não se restringe à produção de alimentos. É discutir a cidade a partir desse olhar intersetorial e sistêmico, que equilibra ecologia e justiça social. Não dá para ser só práticas de baixo impacto sem ter justiça social dentro delas.
Vai para além da busca de soluções baseadas na natureza?
Temos feito uma série sobre saneamento básico, que tem abordado problemas de poluição de rios, mares, lagoas etc. Nossa alternativa é a partir da perspectiva agroecológica: saneamento e esgotamento. Temos os Jardins Filtrantes, por exemplo, os sistemas de wetland (canais artificiais rasos com plantas aquáticas), banheiros secos, bacias de evapotranspiração, todas são soluções baseadas na natureza. Por que a gente não reserva 50 hectares de uma área não ocupada para fazer um grande jardim filtrante para a cidade e essa água voltar para o seu ciclo hidrológico? Isso é agroecologia pura! Então, a gente vem trabalhando esses modelos também para os grandes desafios urbanos, como habitação, ocupação dos territórios, abastecimento de água, tratamento de resíduos sólidos, de esgoto, drenagem etc. Está tudo interligado numa visão sistêmica.
Vocês fazem pesquisas em outras cidades para inspirar o planejamento? O que está no horizonte para avançar? Quais os próximos passos?
A Lei do Direito da Natureza foi inspirada num movimento mundial. A polinização urbana, referente aos Jardins de Mel, veio de um programa da prefeitura de Curitiba, em diálogo com o deputado estadual Goura (PDT-PR), que é candidato a prefeito e copiou a Lei de Proibição do Uso de Agrotóxicos e apresentou a Política Municipal de Agroecologia lá. Mas, uma característica nossa é criar leis que não têm referência ainda e com especificidades locais. Criamos processos de oficinas para a construção delas, para receber as propostas e transcrevê-las na linguagem legislativa.
Estamos prevendo um Projeto de Lei dos Sistemas Sanitários baseado em recursos naturais, como banheiro seco, evapotranspiração, wetlands, em parceria com a professora Maria Elisa Magri, da UFSC, e algumas ONGs da cidade. Trata-se de uma Política Municipal de Recuperação de Recursos Naturais em sistemas de saneamento ecológico e incentivo ao aproveitamento seguro (tratamento e higienização) dos dejetos, por meio de tecnologias individuais e coletivas. Estamos também elaborando um Projeto de Lei de Turismo de Base Comunitária para as comunidades tradicionais, com os pescadores e remanescentes de agricultura tradicional na cidade. A universidade está envolvida nisso. Ter no radar o pessoal que tem usado a bicicleta mais para as áreas rurais, buscar experiências tradicionais da cidade, sair de barco e voltar para comer na casa de um pescador, por exemplo, com um diálogo com a gastronomia, almoçar na casa de alguém que trabalha com agrofloresta, ao invés de um restaurante. Tem o projeto Desperdício Zero, com um banco de alimentos para os comércios que fecharam as portas, mas ainda têm alimentos disponíveis, como padarias e restaurantes, para distribuí-los numa rede assistencial. Outro é para tratar dos critérios para doação de alimentos nas ruas, porque teve uma ação repressora aqui ao pessoal que entrega sopão. Os enquadraram numa legislação de food truck, mas que, no fundo, tem uma perspectiva higienista de cidade que não quer ter aglomeração de gente pobre. Então, estamos falando que a comida pode ser produzida na própria casa e há um grupo de trabalho tratando desse assunto. Queremos também trabalhar com os equipamentos de soberania e segurança alimentar e nutricional. Entendemos que esse conjunto, com restaurante populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos, além das feiras, é importante para esses tempos em que vemos a fome cada vez mais se agravando. Temos feito também o papel de fiscalização da alimentação escolar, dos contratos de saneamento.
É muito importante termos figuras que fazem essa construção nos movimentos sociais, nas ONGs, nos conselhos de controle social e que também se colocam para disputar esses lugares no Legislativo e Executivo. Precisamos de mais agroecólogos e militantes da segurança alimentar e nutricional no espaço eleitoral. Disputar a eleição e ganhar um espaço é fundamental, porque chegamos com esse acúmulo e construímos uma narrativa que não existia naquele lugar. Às vezes, existe uma atuação no Legislativo, por parte das organizações ou movimentos, mas é voltada para a relação com algum parlamentar para conseguir emplacar a sua agenda. Mas, a agroecologia tem seu modo de fazer política também e é isso que nosso mandato tenta fazer. Não é só assumir a agenda, mas estar na política na perspectiva agroecológica. Essa dinâmica sistêmica de valorização: não olhar as coisas só como problema, mas também como recurso. Mostrar como os alimentos e a sua produção têm uma centralidade na sociedade, na economia e na política.
Esta entrevista foi publicada originalmente na Mídia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI!