Por Guilherme Delgado, do Correio da Cidadania
As massas urbanas que acorreram às manifestações do mês de junho, sacudindo as estruturas da República, têm clara percepção das mazelas da vida urbana das grandes e médias cidades do Brasil, urbes que lhes acomodam com tanta precariedade.
Incorporados ao mercado de trabalho formal, a maior parte nos últimos treze anos, os atuais 65 milhões de trabalhadores inscritos no INSS percebem remunerações entre um (1) e 3,5 salários mínimos para cerca de 2/3 dos empregados (conforme Anuário Estatístico da Previdência Social – 2011), remuneração que é ainda mais baixa para os “contribuintes autônomos”.
Mas a própria Previdência Social revela também uma forte rotatividade dos trabalhadores inscritos, sob a forma de perda de contribuições mensais – entre l/3 e metade dos seus segurados urbanos, praticamente todos os anos.
Diante dessa estrutura de baixos salários, que não é independente da estrutura agrária, os elevados custos sociais da vida urbana, alguns deles monetarizados – transporte, alimentação e habitação –, são diretamente visíveis e impactantes imediatos à insatisfação manifesta nas ruas.
Outros fatores ficam invisíveis, mas não menos incidentes na piora das condições de vida das cidades, especialmente dos “habitats” submetidos aos riscos crescentes dos congestionamentos urbanos e das condições climáticas, sob condições de forte desigualdade.
Vou fazer breves considerações de fatores que são externos ao espaço físico das cidades, mas que lhes são fortes condicionadores das condições de vida: a estrutura da propriedade e do uso da terra rural atualmente em vigor. Esta coloca alguns dilemas a mais para a crise urbana, evidenciando uma questão agrária que transcende os espaços geográficos convencionais.
Os alimentos da cesta básica – o arroz com feijão e a diversidade de produtos hortifrutigranjeiros, que não entram na lista exígua das ‘commodities’ – vão cada vez mais se distanciando dos centros urbanos, pressionando por essa via uma inflação de alimentos, que não é conjuntural e que não precisaríamos mantê-la, erodindo esses já baixos salários.
Por outro lado, os sistemas hídricos que abastecem as cidades e a própria regularidade das estações climáticas de um país continente como é o Brasil, no qual 99,7% do território são definidos como espaço rural pelo IBGE (Censo Agropecuário de 2006), dependem de como se utiliza e maneja esse espaço (rural).
Desequilíbrios ecológicos fortes provocados por exploração predatória de florestas nativa, contaminação de mananciais hídricos, destruição da biodiversidade e super-emissão de dióxido de carbono na atmosfera são os componentes perversos de uma estrutura agrária eficiente do ponto de vista da lucratividade privada, mas extremamente negativa à vida em sociedade, especialmente à vida urbana.
Colocar limites aos direitos absolutos da propriedade fundiária na zona rural, ora vigentes, é a característica essencial de uma política agrária que seja condição de possibilidade à própria reforma agrária, por suposto, mas também a uma vida urbana mais saudável e menos desequilibrada.
Nosso ordenamento constitucional assim o estabelece (Art. 186 – CF) – princípios da função social, ambiental e trabalhista, que legitimam o direito de propriedade; mas estes princípios são mantidos “letra-morta” há vários governos pela ação obstrutiva do Parlamento e Executivo aliado, com devido silêncio obsequioso do Judiciário.
Na verdade este é o cerne da reforma agrária, que equivocadamente a maior parte das pessoas confunde com um programa de assentamentos agrários (redistribuição de terras).
Se faltam as normas e meios de controle da propriedade fundiária, no sentido de adequá-la à sua função social, os programas de assentamento são submetidos à vassalagem do capital agrário (autodenominado agronegócio) ou virtualmente extintos, como sucede no presente.
Finalmente, é importante destacar, ao ingressar no espaço urbano com as bandeiras da reforma agrária, que os movimentos sociais empunharam a partir de 11 de julho, aparecem as conexões urbanas inevitáveis da questão agrária e do que é essencial e preliminar realizar na reforma agrária.
Isto porque, sem as pressões urbanas substanciais, à semelhança das manifestações do mês de junho, não se ‘convence’ os poderes da República a mudar de rumo no pacto de poder agrário que os alia, ainda que à revelia da sociedade. Mas as ruas sozinhas não promovem mudanças, quando não se lhes oferecem rumos explícitos a caminhar!
(*) Fonte: Página do MST.