Lideranças de movimentos sociais entregaram ontem (05) à presidente Dilma Roussef uma carta política das organizações e movimentos que participaram do Encontro Unitário Camponês da Paraíba, realizado entre os dias 26 e 28 de fevereiro, na Paraíba. Após uma análise da conjuntura vivida pelos trabalhadores do campo no semiárido em relação à seca, é apontada uma série de medidas estruturantes e emergenciais em busca de melhorias para região. O documento destaca ainda que muitas soluções já estão sendo praticadas pelas organizações da sociedade civil.
O documento questiona por que, apesar dos eventos cíclicos da seca característicos do bioma Caatinga ocorrerem há séculos, os camponeses continuam vivendo esse drama social em pleno século XXI. A indignação é resultado dos profundos impactos nas vidas de milhares de agricultores por causa da última estiagem prolongada, considerada uma das mais severas secas dos últimos 30 anos, que abalou todo o semiárido brasileiro no ano passado e continua se projetando em 2013.
O documento atribui à histórica negligência do Estado brasileiro para com os povos do Sertão a principal razão para essa situação. A manutenção da concentração da terra, do acesso à água, à riqueza e ao poder nas mãos de grupos oligárquicos são alguns elementos apontados.
“Ao invés de enfrentar os problemas estruturais, reais geradores desta crise, a cada nova seca o Estado tem se curvado para atender aos interesses dessa elite oligárquica por meio do que se convencionou denominar a ‘indústria da seca’. Esse processo se expressa nos dias de hoje com um discurso renovado por trás da retórica do agronegócio e da modernização. Nos episódios de seca, são justamente as famílias com acesso mais precário à terra que passam as maiores privações de acesso à água e aos alimentos, ferindo a dignidade humana, apesar dos reconhecidos esforços de enfrentamento da miséria empreendidos pelo seu governo”, critica a carta política.
Além dos históricos bloqueios estruturais, as comunidades da região têm enfrentado o acirramento de disputas por seus territórios e pelos bens comuns do semiárido, fatores que agravam ainda mais a seca. Grandes empresas, sobretudo as mineradoras ou de grandes obras hídricas, como a transposição do rio São Francisco, têm avançado cada vez mais nas riquezas socioambientais do semiárido. Muitos desses grandes empreendimentos operados pelo capital internacional têm sido apoiados política e financeiramente pelo Estado, dando margem à grilagem e à violação de direitos territoriais das populações do semiárido.
Nesse sentido, ainda de acordo com os movimentos, o abandono da reforma agrária e da regularização fundiária é contraditório frente a outros programas do governo que buscam combater a pobreza e a miséria. Problemas também são enfrentados em relação às sementes locais, cada vez mais ameaçadas pela distribuição em larga escala de sementes transgênicas nos programas do governo. Alguns programas governamentais aprofundam as desigualdades sociais e reeditam velhos paradigmas da indústria da seca, reforçam os movimentos. A implantação das cisternas de plástico foi dada como exemplo nesse sentido, assim como a “insegurança jurídica” das organizações da sociedade civil nas relações com o governo em função da ausência de um marco regulatório.
“Entendemos que o Estado brasileiro deva assumir de forma consequente e definitiva o enfrentamento destas questões de forma que a agricultura familiar camponesa e suas organizações possam efetivamente se constituir como base econômica e sociocultural capaz de promover formas de manejo produtivo ajustado às especificidades e potencialidades ecológicas do semiárido brasileiro e capaz conviver com dignidade com adversidades climáticas da região”, diz a carta.
Os movimentos reconhecem avanços recentes, mas observam que ainda estão muito distantes de mudanças estruturais. Muitos desses avanços, inclusive, estão associados às iniciativas de milhares de famílias agricultoras, observam. Ações permanentes e estruturantes por meio da mobilização e sabedoria local são as reivindicações dos movimentos do encontro, como o apoio aos processos de autoconstrução de cisternas de placas para captação de água da chuva, a estratégia de estocagem de alimentos para rebanhos, a conservação e o uso sustentável da agrobiodiversidade, dentre outras iniciativas já colocadas em prática pelas organizações e camponeses da região.
Almoço com o Ministro das Cidades
Durante sua visita à Paraíba, a presidenta Dilma Roussef almoçou no município de Lagoa Seca, na casa do ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro (PP). A esse respeito vale lembrar o histórico da família, cujos membros foram acusados do assassinato de grandes lideranças do movimento camponês. Portanto, para os movimentos sociais da Paraíba, esse almoço é carregado de forte carga simbólica pois evidencia em cores vivas as profundas contradições do atual governo. Em artigo publicado no site Carta Maior, Regina Novaes e Beto Novaes, ambos ex professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autores de livros e artigos a respeito dos movimentos camponeses na Paraíba, apresentam a relação da família do ministro com as mortes de João Pedro Teixeira e Margarida Maria Alves, a suindicalista assassinada cujo nome é celebrado nacionalmente no movimento Marcha das Margaridas.
Segundo os pesquisadores, a nomeação de um “Veloso Borges” para o governo da sucessora de Lula gera várias indagações sobre o seu significado político. Eles explicam que o ministro é filho de Edvaldo Ribeiro, ex-prefeito de Campina Grande, na época da antiga Arena, e neto de um conhecido usineiro, líder do chamado “Grupo de Várzea”, ao qual também esteve ligado Zito Buarque Gusmão, casado com outra filha de Aguinaldo-avô. Ambos, sogro e genro, tiveram seus nomes envolvidos nos assassinatos dessas duas lideranças.
João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, foi brutalmente assassinado em 1962. Sua luta ficou imortalizada e conhecida nacionalmente no premiado filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. O documentário foi interrompido pela ditadura militar em 1964, e retornou 17 anos depois na voz de Elizabeth Teixeira, no reencontro de sua esposa com a família após anos de exílio. Recortes de jornais da época, ainda de acordo com os pesquisadores, documentam as renúncias de parlamentares paraibanos para garantir a imunidade parlamentar de Aguinaldo Veloso Borges, então suplente de deputado.
Margarida Maria Alves, por sua vez, destacada liderança sindicalista da zona canavieira paraibana, presidente do sindicato de trabalhadores rurais de Alagoa Grande, foi morta em 1983 na porta de sua casa a tiros de “espingarda doze”. Em vida, criou delegacias sindicais em engenhos e usinas, encaminhou ações para a Justiça trabalhista, além de participar ativamente das Campanhas Salariais, dentre outras lutas. Vinte anos depois da morte de João Pedro o mesmo “Grupo de Várzea” voltou às páginas dos jornais com Zito Buarque Gusmão, administrador da usina Tanques, de propriedade do sogro, Aguinaldo Veloso Borges. Nenhum dos acusados foi preso ou julgado em ambos os casos. Outras notícias nos anos seguintes relacionam Zito com violências contra trabalhadores do campo e nada foi feito. Para completar o quadro, Aguinaldo tornou-se presidente da União Democrática Ruralista (UDR), entidade que defende interesse das elites agrárias no Brasil. Na Paraíba, sua fundação ocorreu no exato dia em que os movimentos sociais reverenciavam a memória de Margarida em função do terceiro aniversário de sua morte.
“Outros vinte e tantos anos se passaram e a família continua na política: Virgínia Maria Peixoto Veloso Borges, mãe do ministro, também filiada ao PP, é atual prefeita de sua cidade natal, Pilar-PB, e sua irmã, atual deputada estadual, deverá ser candidata à prefeitura do município de Campina Grande. Aguinaldo Veloso Borges Ribeiro, por sua vez, foi titular de Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado da Paraíba e de Ciência e da Tecnologia do município de João Pessoa, foi deputado estadual e, posteriormente, elegeu-se como deputado federal”, afirmam os autores do artigo.
Beto e Regina Novaes ressaltam que é preciso quebrar o silêncio do passado. Para eles, os processos que prescreveram e os julgamentos interrompidos devem ser objeto de investigação da Comissão da Verdade voltada às lutas do campo. Publicado pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, o livro Retrato da Repressão Política no campo reconhece a João Pedro e Margarida Alves como vítimas de repressão política no campo, ao mesmo tempo em que o governo nomeia um Veloso Borges para um ministério. Só passando a limpo as histórias do passado é possível entender de que forma elas refletem no presente, e é também uma forma de combater a impunidade e o esquecimento que reinam na vida política do Brasil.