O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) foi revogado pela Medida Provisória 870, publicada em janeiro deste ano pelo governo federal
A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) – realizada pelo Governo Federal por meio da Medida Provisória 870, publicada em janeiro deste ano – é incompatível com os princípios da Constituição Federal, que assegura o direito à alimentação adequada e que relaciona essa garantia como mecanismo para a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como à redução das desigualdades sociais no Brasil. O alerta é da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão que integra o Ministério Público Federal.
Nesta terça-feira, a PFDC encaminhou ao Congresso Nacional um conjunto de argumentos que demonstram a inconstitucionalidade do inciso III do artigo 85 da MP, que revogou dispositivos que tratavam das atribuições e responsabilidades do Consea.
No documento, o órgão do Ministério Público Federal aponta que a extinção do Conselho desorganiza, por completo, o sistema instituído pela Lei 11.346/2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). O Sistema relaciona três órgãos: a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional e o próprio Consea.
“A ausência de qualquer dessas instâncias retira a funcionalidade dos demais, visto que o governo federal não substituiu o Conselho por qualquer outro órgão, de modo que a execução da Lei 11.346 fica inviável”, destaca a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
Aos parlamentares que analisarão a MP 870, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão ressaltou que o Sisan – e, muito particularmente, o Consea – são reconhecidos internacionalmente pela capacidade de retirar o Brasil, em 2014, do Mapa Mundial da Fome.
“O desmonte dessa estrutura, se já impensável em tempos de bonança, mais impacta o combate à fome e à miséria num cenário de baixo investimento público nas políticas pertinentes”.
A Procuradoria destaca ainda que a redução de programas de governo voltados ao combate à fome e à transferência de renda, bem como cortes em benefícios sociais e o aprofundamento da crise política e econômica do País, provocaram, nos últimos anos, um aumento significativo no número de pessoas em extrema pobreza. Somente entre 2014 e 2017, o número saltou de cerca de 5,2 milhões para aproximadamente 11,8 milhões de brasileiros.
Análise de inconstitucionalidade
Além dos subsídios aos parlamentares, a PFDC também encaminhou à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, uma representação solicitando que seja avaliada a possibilidade de enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de análise da inconstitucionalidade desses dispositivos da MP 870. Por envolver necessidades mais elementares de qualquer ser humano, a Procuradoria dos Direitos do Cidadão também quer seja analisada pelo STF ação cautelar que permita a suspensão imediata dos efeitos da MP no que se refere à extinção do Consea.
No documento, a Procuradoria destaca que a medida viola, direta e expressamente, o artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal, que coloca como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais, bem como o seu artigo 6º, que consagra o direito à alimentação. Além disso, a medida legislativa afronta o princípio da vedação de retrocesso – já reconhecido pelo STF.
Sobre o Consea
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) foi instituído no governo Itamar Franco por meio do Decreto nº 807, de 22 de abril de 1993. O órgão tinha por propósito vencer a fome e a miséria extremas de forma responsável, o que demandava multiplicidade e articulação de instituições, órgãos e atores sociais, nos diferentes níveis da administração. No início do governo Fernando Henrique Cardoso, o Conselho foi extinto pelo Decreto 1.366/1995, que criou o Programa Comunidade Solidária. A insuficiência desse Programa é evidenciada pelo fato de o Brasil ter entrado no ano 2000 com 27% da população em situação de extrema pobreza e 7% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave.
Em 2003, o Consea foi restabelecido pela Lei 10.683, com suas características centrais de articulação, intersetorialidade, descentralização e participação social. A reconstituição se dá em consonância com o entendimento internacionalmente consolidado da alimentação como direito fundamental – tal como aponta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais e o Protocolo de San Salvador.