APIB se posiciona contra o PL 1610/96, que “dispõe sobre o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas”
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, diante da iminência de ser colocado em votação o substitutivo de autoria do Deputado Édio Lopes, do PMDB de Roraima, ao PL 1610/96, que dispõe sobre a mineração em terras indígenas, vem a público manifestar o seu repúdio a mais este ato de grave ameaça e restrição aos direitos dos povos indígenas, assegurados pela Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os direitos dos Povos Indígenas.
A APIB entende que a tentativa de aprovar o PL 1610 faz parte da seqüência de golpes promovidos e aplicados pelo atual governo e sua base aliada contra os direitos indígenas, por meio de uma série de medidas administrativas, jurídicas e legislativas que tem, em comum, o propósito de inviabilizar a demarcação de terras indígenas, reverter procedimentos em curso e disponibilizar os territórios indígenas e suas riquezas à voracidade do capital nacional e transnacional. É esse o contexto das mudanças patrocinadas pela bancada ruralista no Código Florestal e da série de Decretos e Portarias voltadas a flexibilizar a legislação que ampara os povos indígenas, os quilombolas e as áreas de unidades de conservação. Fazem parte destas medidas as seguintes Portarias:
– Portaria 2498/2011 que objetiva a participação dos entes federados no processo de identificação e delimitação de terras indígenas;
– Portaria 419/2011, que regulamenta a atuação da FUNAI, em prazo irrisório, nos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (hidrelétricas, mineração, portos, hidrovias, rodovias, linhas de transmissão etc.);
– Portaria 303 / 2012, que se propõe “normatizar” a atuação dos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta em relação às salvaguardas institucionais às terras indígenas. Atendendo o anseio dos latifundiários e do agronegócio, a Portaria, na verdade, busca estender para todas as terras indígenas as condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). O Governo editou a Portaria mesmo sabendo que a decisão do STF ainda não transitou em julgado e estas condicionantes podem sofrer modificações ou até mesmo serem afastadas. A Portaria afirma que as terras indígenas podem ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades indígenas; determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não estiverem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol; ataca a autonomia dos povos indígenas sobre os seus territórios; limita e relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras indígenas; transfere para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) o controle de terras indígenas, sobre as quais indevida e ilegalmente foram sobrepostas Unidades de Conservação; e cria problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas, que não observaram integralmente o direito indígena sobre a ocupação tradicional.
O substitutivo ao PL 1.610/96 é consoante com todas estas medidas, reforçadas pelas PEC 038 e 215, em avançado processo de tramitação no Senado Federal e Câmara dos Deputados, respectivamente. Tais medidas são uma série de procedimentos jurídicos e legislativos que compõem um mosaico de leis e feitos governamentais que flexibilizam a exploração predatória do solo e do subsolo nacional, do qual fazem parte os territórios indígenas.
Os defensores do Projeto da mineração em terras indígenas alegam que o Brasil precisa crescer e se desenvolver. O mesmo relator, deputado Édio Lopes, disse que “o objetivo é que o País possa explorar os minérios e enormes jazidas que estão no subsolo das terras indígenas, ao mesmo tempo em que sejam garantidos os direitos dos povos das áreas envolvidas”. O texto do substitutivo, porém, é declaradamente uma peça enganosa e de retaliação dos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal e a Convenção 169. O texto se preocupa apenas, de forma escandalosa, em disponibilizar as terras indígenas e seus potenciais ao capital financeiro-especulativo, principalmente minerador. Daí, a manobra de desburocratizar a autorização da pesquisa e lavra mineral em terras indígenas, com fartas facilidades e condições que permitem o lucro fácil e avolumado das empresas envolvidas.
Em razão disto, o deputado, entre outros estragos, ignora as salvaguardas ambientais, socioculturais e espirituais estabelecidas pela proposta do Estatuto negociado com o Governo no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI); cria as condições para a corrida descontrolada, da grande mineração, pelo ouro nos territórios indígenas; decreta o ataque aos povos indígenas isolados ou de pouco contato, ao submeter o seu destino aos princípios da segurança nacional; relativiza ou afasta de forma ridícula a participação do Ministério Público Federal do seu papel de proteger os direitos indígenas; enterra a autonomia dos povos indígenas, ao submeter a sua decisão de não querer mineração à deliberação de um comissão governamental deliberativa que deverá dizer qual é a melhor proposta para as comunidades, ressuscitando dessa forma o indigenismo tutelar, paternalista e autoritário. Enfim, minimiza o alcance do direito de consulta estabelecido pela Convenção 169 da OIT;
A propósito da consulta, o parlamentar faz eco à intenção de setores do governo que querem reduzir este direito à simples aprovação da instalação de empreendimentos nos territórios indígenas. A Convenção 169, porém, estabelece o direito de consulta e consentimento livre prévio e informado, mas também o direito dos povos indígenas a escolherem as suas prioridades de desenvolvimento econômico, social e cultural, e a participarem do processo de formulação, aplicação e avaliação dos programas de desenvolvimento regional e nacional, perspectiva esta que está longe de ser contemplada pelo substitutivo em questão e outras iniciativas de autoria do Executivo.
Fica, assim, evidente que para a bancada do minério e de setores do governo afins, os territórios indígenas, as unidades de conservação e as terras dos quilombolas são a última fronteira de expansão do capital e dos propósitos de fazer crescer o país a qualquer custo, na perspectiva da reprimarização da economia, de fazer do Brasil um país exportador de matéria-prima barata, dentre as quais estão os minérios, sem se importar com a pobreza e desgraças que ficam para trás. Mesmo assim, o governo pressupõe que com os recursos que virão da participação nos resultados econômicos gerados pela mineração, através dos royalties, poderá oferecer melhores condições de vida às populações afetadas. Balela!
A APIB considera que se as intenções do governo não fossem direcionadas para esta perspectiva, ele não teria medido esforços para cumprir os acordos negociados com o movimento indígena desde que foi instalada a CNPI em 2007. Primeiro, de que a matéria da mineração seria só tratada como parte do Projeto do Estatuto dos Povos Indígenas, cujo conteúdo foi amplamente discutido em seminários regionais, no plenário da CNPI e no Acampamento Terra Livre de 2009. Em segundo, de que o governo, por meio do Ministério da Justiça, asseguraria um processo de diálogo com a Presidência da Câmara dos Deputados para pautar esta matéria tendo como base o substitutivo do Estatuto (PL 2.057/1991) e as propostas discutidas na CNPI.
Não entanto, causou estranheza o fato de o governo priorizou a reinstalação de uma Comissão Especial para discutir em separado a mineração em terras indígenas, acarretando, no momento, um clima de apreensão e tensionamento que só agrava a insegurança jurídica e social já instalada nos territórios indígenas por conta da Portaria 303.
A APIB denuncia: mais uma vez, os povos indígenas tem que pagar o custo da governança e da troca de favores que o governo faz com sua base de sustentação, que reúne senadores e deputados do PMDB, PR e PDT, entre outras siglas partidárias, envolvidos direta ou indiretamente com empreendimentos minerários. Fazem parte dessa lista, entre outros nomes, o ministro das Minas e Energia, Edson Lobão e o Senador Romero Jucá, autor da proposta original do PL 1610. Ambas as autoridades tem filho e filha, respectivamente, em empresas de mineração.
Contudo, aos povos e comunidades indígenas a mineração em seus territórios é apresentada como a solução de todos os seus problemas e precariedades, pois as empresas disponibilizarão, além da inexpressiva participação nos seus lucros – o que não é dito! -, medidas compensatórias como benefícios nas áreas da saúde e educação, que levam a ignorar os impactos de hoje, mas não, com o passar do tempo, as desgraças que ficarão para as gerações futuras.
É sabido, e nem o governo e a sua base parlamentar provam o contrário, que em lugar nenhum do mundo a mineração deixou de impactar, deixando para trás lastros de degradação ambiental, miséria e problemas sociais. Pois não poderia ser outro o resultado das grandes estruturas essenciais para seu funcionamento: grandes minas, ferrovias, estradas, parques industriais, minerodutos, migração de conglomerados humanos. Grande, média ou pequena, mecanizada ou artesanal, a mineração faz estragos de qualquer jeito, afetando áreas primordiais para os ecossistemas, como topos de morros, margens de rios, lagos, igarapés, lençóis freáticos e nichos de biodiversidade. Sem falar dos locais históricos, religiosos e sagrados (cemitérios, áreas de ritual) que fazem parte da relação espiritual que os povos indígenas mantêm com o seu território; e dos impactos e conflitos sociais decorrentes da presença de população não indígena: desagregação sociocultural, prostituição, alcoolismo, drogas, violências e outros impactos sociais e ambientais, subdesenvolvimento e degradação, direcionados ou distribuídos diabólica e desigualmente para atingir as classes menos favorecidas, entre elas os povos indígenas. Já para as empresas de mineração e demais envolvidos sobra a concentração dos lucros exorbitantes.
Que os povos e organizações indígenas não se iludam. As poucas migalhas advindas dos royalties ou de programas sociais e ambientais são na verdade paliativos, mecanismos para minimizar os violentos impactos, no futuro insanáveis, produzidos pelos empreendimentos, que incluem as hidrelétricas, obras fundamentais para os projetos de instalação de indústrias de transformação mineral. Tenham certeza, a mineração pode gerar crescimento econômico para o pais e muito lucro para as empresas nacionais ou transnacionais, mas jamais desenvolvimento condigno, bem-estar social e qualidade de vida para as populações locais.
Já se o governo federal acredita e aposta num outro modelo de desenvolvimento e numa outra lógica de exploração dos recursos naturais, hídricos e mineras do país, tem a obrigação, na atual conjuntura, de inviabilizar a aprovação do PL 1.610, somando enquanto dito governo democrático e popular na quebra de velhos paradigmas, em busca de outra sociedade menos materialmente consumista, socialmente excludente, ambientalmente devastadora e, sobretudo, menos anti-indígena, ou seja, tolerante e respeitosa com a diversidade étnica e cultural do país, que atinge mais de 305 povos indígenas diferentes, conforme último levantamento do IBGE. Deve ainda, se movimentar para tornar realidade os compromissos assumidos com o movimento indígena, priorizando a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas e outras iniciativas legislativas de interesse dos povos indígenas como o PL que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista, inviabilizando, ainda, projetos e PECs destinados a restringir ou reverter os direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988. A informação de que o governo prepara um novo marco regulatório para a mineração no país, é um motivo para impedir a aprovação do PL 1.610, que busca não só legalizar esta atividade, mas, sobretudo, programar a desagregação e descaracterização sociocultural dos povos indígenas.
Aos povos e organizações indígenas, APIB alerta para a tentativa de setores do governo de amenizar os impactos de todas as medidas administrativas, jurídicas e legislativas em curso. Informa, ainda, que a comissão especial que discute a matéria é composta por parlamentares cuja maioria tem apresentado requerimentos e iniciativas legislativas de interesse do governo, contrárias à demarcação das terras indígenas e voltadas a regulamentar a mineração em terras indígenas. O próprio relator, deputado Édio Lopes, entre outras propostas, já apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC-117/2007, apensada à PEC 215/2000) que dá nova redação ao artigo 231, da Constituição Federal. A proposta “estabelece a competência da União para demarcar as terras indígenas através de lei. Altera a Constituição Federal de 1988, dizendo que: “As demarcações, pela sua complexidade, efeitos e três resultados, com reflexos políticos, sociais e econômicos, não podem, na verdade, passar ao largo do Congresso Nacional.” Segundo nosso entendimento, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados, que compõem o Congresso Nacional, têm competência e legitimidade para examinar, debater e votar matéria de tal relevância, além do que seus membros são, respectivamente, os legítimos representantes dos Estados e da sociedade brasileira, que os elegeu. É necessário, pois, que seja alterada a redação do caput do artigo 231, de forma que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, pois, assim, essas questões passarão pelo crivo do Congresso Nacional, onde serão examinadas.”
A APIB chama os povos e organizações indígenas e seus aliados a reforçarem a luta pela garantia dos seus direitos especialmente territoriais reconhecidos pela Constituição Federal e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que vergonhosamente ignora em prol dos interesses do capital e do modelo neodesenvolvimentista que escolheu para se firmar como hegemônico na comunidade internacional.
Brasília – DF, 23 de outubro de 2012.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB