Rogério Rocco é professor de direito ambiental, foi superintendente do IBAMA no Rio de Janeiro e já passou alguns órgãos públicos relacionados. Durante o Congresso de Direito ao Patrimônio Genético, realizado na Ordem dos Advogados Brasileiros (OAB-RJ), ele falou sobre a entrada dos transgênicos no Brasil. Nesta entrevista ele analisa o contexto histórico dessa nova produção agrícola, a deficiência das leis ambientais e patentes relacionadas, a reforma agrária nesse cenário, e a forte influência das grandes multinacionais das indústrias farmacêuticas e alimentícias no setor. Para ele, o Brasil continua sendo celeiro das nações ricas, produzindo os alimentos e bens que elas consomem com a nossa energia e recursos naturais.
Você pode fazer uma análise sobre a questão dos transgênicos no Brasil, levando em consideração sua afirmação de que a Embrapa só detém a patente do feijão?
A produção de alimentos geneticamente modificados entrou no Brasil de forma ilícita, e ganhou escala industrial rapidamente. Conseguiu se antecipar à própria normatização do setor, através de decretos que legalizavam safras de soja transgênica. Tem um começo de entrada pela porta dos fundos. Nós da sociedade sofremos uma grande derrota. A lei que institui a Política Nacional de Biossegurança dispensou de licenciamento essa atividade, que é potencialmente poluidora: utiliza recursos ambientais, altera a composição genética desses produtos, utiliza agrotóxicos, etc. Tem todas as características para ser uma atividade que exija não só o licenciamento, mas em especial a avaliação de impactos ambientais. E, infelizmente, isso tudo foi abolido nessa política.
A atividade está totalmente desregulada no aspecto ambiental, e a gente não sabe o que isso vai causar. Pode não causar nada num primeiro momento, mas já há indícios fortes do que isso está causando. Pode ser rum legado para as futuras gerações de irresponsabilidade. Pesquisando no Ministério da Agricultura, vi que 4 alimentos estão sendo produzidos com sua genética modificada: soja, milho, algodão e feijão, sendo que o único com patente brasileira é o feijão. E na proporção das plantações, ele sequer aparece com dados relacionados à sua produção. Na soja transgênica são índices na casa dos 24 milhões de hectares utilizados no Brasil, por exemplo. Mas o feijão sequer aparece, então confirma que essa atividade vem para atender ao interesse de empresas estrangeiras na produção de alimentos voltados para o seu consumo. Sendo que boa parte desses países não permite a produção de transgênico, mas estimula e consome os transgênicos produzidos no Brasil. É um quadro muito negativo no ponto de vista ambiental, social e econômico.
Você afirmou que o Brasil serve de celeiro para os países mais ricos. Por quê?
Houve uma mudança de rumo na economia mundial. Com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, a gente teve a hegemonização do capitalismo no mundo inteiro e operando sem fronteiras à revelia das próprias estruturas governamentais. Algumas dessas mudanças econômicas geram a alguns brasileiros a sensação de que o Brasil está bombando, mas na verdade é uma mudança organizacional do sistema capitalista.Eles têm interesse no Brasil e outros países com essas características territoriais de dimensões continentais, como os emergentes dos BRICS. O Brasil tem também solo fértil, clima temperado e água em abundância, então nossa economia cresce porque nós temos elementos naturais que servem para esse tipo de economia. Temos a maior população bovina do mundo, só perde em número de bois para a Índia, que não mata o boi. Temos cerca de 209 milhões de bois ocupando cerca de 150 milhões de hectares do solo brasileiro. Podemos afirmar que o Brasil fez reforma agrária para boi dormir, porque o povo não tem terra mas os bois têm. Usam quase ¼ do território brasileiro. A soja usa quase 50 milhões de hectares, e os minerais também estão nessa grande fase de exportação. Só que nós não agregamos valor nenhum ambiental a esses produtos, então nossa água é exportada até hoje gratuitamente. Pagamos a água que consumimos, mas os países que compram nossos produtos não pagam o valor agregado da água. Servimos de celeiro das nações desenvolvidas, produzindo os alimentos e bens que eles consomem gastando a nossa energia e recursos naturais.
Do ponto de vista jurídico, quais são as implicações em relação às questões das patentes com as empresas?
O direito é uma ciência humana que funciona de acordo com as decisões humanas, então nós tivemos na década de 90 a discussão da nossa Lei de Patentes e lamentavelmente a decisão foi em grande parte influenciada pela indústria farmacêutica multinacional. Os interesses econômicos estrangeiros estiveram muito bem representados no Congresso Nacional, numa proporção muito semelhante com os interesses dos pecuaristas e ruralistas. Como o meio ambiente não é uma indústria, não tem um lobby econômico poderoso, a gente vem perdendo espaço e conquistas importantes das políticas ambientais em nome de interesses internacionais. Nós não temos até hoje um crime de biopirataria, que é nada mais que apropriação de patrimônio genético brasileiro para patenteamento por empresas estrangeiras de medicamentos e alimentos. Temos um conjunto de regras jurídicas que não protegem devidamente o nosso patrimônio genético.
Tudo isto envolve o direito, a técnica e a economia, mas qual é a influência política nesse cenário?
O direito é feito pelos seres humanos, nós que produzimos o conhecimento jurídico, nós que estamos representados nas casas legislativas e o conhecimento científico também é resultado de nossas investigações. Tudo isso tem política envolvida, porque quem financia a ciência e a tecnologia é o capital. O estado financia muito pouco, então o capital vai financiar aquilo que dê respostas para atender aos seus interesses. Ele não vai botar dinheiro em quem contesta o status quo científico existente. Nas representações políticas vemos no Congresso Nacional uma bancada ruralista forte, que recebe financiamento dos que desenvolvem e acumulam terras no Brasil, vide o caso de deputado Aldo Rebelo, que de comunista só tem agora o partido, sua campanha foi financiada por esse setor. Ele se alinhou completamente ao pior capitalismo, o mais subserviente e atrasado, do ruralismo nacional. Então não dá para falar de direito, legislação ambiental, ciência e tecnologia sem considerar que essas estruturas e o resultado dos seus investimentos são construídos por setores que formam os lobbyes mais fortes e financiam essas informações e conhecimentos. Eles transformam essas suas ações e movimentações em políticas públicas em detrimento do interesse nacional, então estamos falando de política o tempo todo.
E como você vê a participação da mídia sobre esses temas que abordamos?
A mídia hoje tem um poder fantástico, considerado por alguns como 4° poder, porque ela tem condição de produzir subjetividades. As pessoas não sabem por que, mas pensam assim. Essa subjetividade é construída nas propagandas, marketings, novelas, filmes, na programação em geral dos meios de comunicação. A televisão, rádios e jornais constroem entendimentos e a chamada opinião pública. A propaganda constrói valores para as sociedades, então a mídia tem um papel importante e pode construir e desconstruir processos. Quando há um interesse econômico muito forte e ele acaba sendo financiador de espaços midiáticos, a gente tem uma mídia comprometida. Hoje, porém, em razão da internet e da diversificação dos meios de comunicação, existem algumas mídias independentes. Não podemos esperar informações muito independentes das grandes estruturas de comunicação, portanto eu acredito que a sociedade está se preparando para isso. O sistema Globo tem lá seus dirigentes que pensam de determinada forma, que se manifestam. A gente vê como o sistema Band foi contrário à manutenção do texto do Código Florestal, porque os donos do sistema são proprietários rurais, têm grandes áreas de terras no Brasil, e manifestaram sua opinião em defesa dos latifúndios. A mídia sempre estará comprometida com um lado, basta analisar caso a caso. Eu não acredito em imparcialidade da mídia, nem do poder judiciário ou do estado, nem de ninguém. Todo mundo tem um lado.