Ouricuri (PE) – Regada a muita poesia sertaneja, a Caravana Agreocológica e Cultural do Araripe iniciou com animação nesta manhã (25/02) os debates territoriais e visitas às experiências que potencializam e prejudicam a agroecologia na região. Integrantes de organizações e agricultores (as) de todos os estados do Nordeste vão debater nos próximos dias formas de contabilizar a produção agroecológica e denunciar grandes projetos e políticas públicas que impedem essas atividades locais. Também está prevista a participação de gestores para debater políticas públicas.
De acordo com Flavia Londres, da secretaria executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), os 18 estudos realizados em 7 territórios em todas regiões do país fazem parte do projeto “Promovendo Agroecologia em Rede”, executado pela ANA com apoio da Fundação Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Fruto dos debates realizados no III ENA, em Juazeiro (BA), ano de 2014, vem na sequência de desforços para responder à pergunta: “Por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia?”
“Continua sendo uma prioridade da ANA produzir evidências e respostas a esse mote. Aproveitamos um esforço da AS-PTA, com uma nova metodologia de avaliação econômica e ecológica de agroecossistemas. Foi realizada uma oficina em maio do ano passado com os consultores para fazer coletivamente esse planejamento. O objetivo desse processo é dar visibilidade e apontar aspectos econômicos para comprovar a superioridade da agroecologia na contexto da agricultura familiar. Divulgar esses resultados para a sociedade, além de fortalecer as redes e organizações locais. Ler de forma mais profunda as experiências e aperfeiçoar as políticas nos territórios”, disse.
Esse mesmo estudo está sendo realizado pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e o Instituto Nacional do Semiárido (INSA) em outros territórios da região para avaliar a capacidade dessas famílias de conviver com o bioma a partir das inovações tecnológicas que têm transformado suas vidas. A caravana, nesse sentido, é o resultado de esforços e recursos de várias organizações e Redes locais para o fortalecimento da agroecologia nos territórios.
Os estudos são, na opinião de Giovanni Xenofonte, diretor da ONG Caatinga, uma tentativa de entender uma história que não está nos livros e é contada por seu povo e organizações. “Está oculta e se expressa na oralidade, especialmente das mulheres. Processo muito rico, relembrou lutas antigas, nos inspirou para lutas futuras, a fim de entender como a agricultura familiar no território se comporta”, afirmou.
O território do Araripe
A região do Araripe é composta por onze municípios no extremo oeste do Estado de Pernambuco, na divisa com Piauí e Ceará. Terra do forró de Luis Gonzaga e de poetas do Pajeú, seu componente cultural se destaca e renova com as novas gerações. Segundo o IBGE, metade da população é rural, e suas lideranças lembram que as famílias da cidade ainda têm ligação muito forte com o campo. São mais de 28 mil estabelecimentos de agricultura familiar, de forma a movimentar expressivamente a economia embora não tenha a importância e visibilidade que deveria, pontuaram alguns participantes.
Desde a época da colonização portuguesa a região é caracterizada pela bovinocultura, seja para o corte do couro, o transporte da cana à época ou os laticínios nos dias de hoje. A cultura do vaqueiro permanece muito forte, e criar gado é sinal de prosperidade. Mas a agricultura tradicional acompanha toda essa história com policultivos associados à pecuária, além da criação de pequenos animais para consumo, uma integração até hoje muito presente na lógica de produção. Descendentes de escravos e índios desenvolveram uma agricultura tradicional com elementos e conhecimentos de convivência com o semiárido. Só a partir da década de 70 no século passado a produção se torna mais especializada, com o melhoramento genético do gado, a introdução de herbicidas e outros pacotes tecnológicos das grandes empresas. É neste momento que os movimentos sociais surgem.
“As organizações dos agricultores (as) começaram antes da década de 60 com a formação das ligas camponesas e comunidades eclesiais de base construindo sindicatos. O Caatinga chegou em 1986 já identificando um processo forte de organização e resistências para o território com força e luta ativa. Grupos de mulheres foram se formando, fóruns, chegada do MST com a luta pela terra, ações de ocupações da Sudene, etc. Esse ambiente segue até a década de 2000. Atos em Petrolina tiveram um papel fundamental de articulação”, contextualiza Xenofonte.
Com a chegada de políticas públicas como o Luz para todos, mais de 10 mil cisternas para combater a seca, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), dentre outras, as famílias conseguiram avançar noutra lógica de produção e mercado. Embora tenham atingido melhor qualidade de vida e saído da pobreza, essas políticas estão ameaçadas devido à crise política e econômica no país. Por outro lado, outras iniciativas do governo prejudicaram os moradores da região, como a construção da Transnordestina cortando terras da agricultura familiar com indenizações prometidas não pagas e a produção do gesso.
“Surgem mais recentemente as feiras agroecológicas, esses espaços têm estruturado melhor as famílias nos seus estoques, na articulação de redes, muita expressão das mulheres nesses espaços de comercialização, etc. Mas continuam as feiras e exposições com outras lógicas. Com esse trabalho percebemos certa retomada de famílias ao território, mas tem o problema da migração da juventude e dos homens sobrando para a mulher as economias que restam nas famílias”, destacou Lana Fernandes, do Caatinga.
Estudos de caso
O projeto “Promovendo Agroecologia em Rede” viabilizou quatro estudos nos territórios do Araripe, além de mais três independentes em curso pelos consultores. Neles foram apresentadas as tipologias dos atores, a lógica campesina com as inovações que foram criadas nos territórios. A partir desta diversidade se apresenta a dificuldade de lidar com políticas públicas para agricultura familiar, que visam atender a todos com um só modelo padronizado.
De acordo com Laeticia Jalil, professora do NEPAS/UFRPE e consultora de alguns dos estudos, no projeto era preciso construir a história a partir dos atores do território. “A importância de contar uma história invisibilizada dos camponeses, mulheres e juventude. Dividimos por grupos para garantir um olhar através da vivência diferenciada desses sujeitos, então fizemos três atividades de formação e construção coletiva desse olhar. Vimos como esses diferentes sujeitos veem de forma diferente o território. Um entendimento mais coletivo, percebendo que é uma luta só e para isso precisa aprofundar o conhecimento no território”, afirmou.
Ela destacou ainda a importância da chegada dos movimentos como o MST e MPA, que tem uma relação direta do endividamento dos agricultores com o PRONAF do governo federal. Muitos agricultores perderam a terra por estarem totalmente endividados à época. “A dificuldade de acesso a terra dificulta o desenvolvimento da agricultura familiar e impede o processo sucessório das famílias”, complementou Vilmar Lerner, agricultor de Exú.
Violência Contra a Mulher
A questão de gênero, com vários indicadores apontando para a divisão desigual do trabalho, foi uma das evidências dos estudos . Reflexo da origem de uma luta construída há anos pelas mulheres na região. Território marcado pelo alto índice de violência contra a mulher, onde não há nenhuma delegacia especializada para atendê-las. Relatos revelam alto índice de prostituição e contaminações da AIDS por conta dos fluxos de caminhoneiros nas rodovias em função da produção do gesso.
Para Lana Fernandes, da ONG Caatinga, de 2010 a 2015 a força das mulheres lutando pelo fim da violência veio aumentando com atos, audiências e outras mobilizações para pautar essa luta e implementação das políticas e mecanismos para mulheres. “Desse grande número de estabelecimentos da agricultura familiar vemos uma desigualdade de gênero imensa, as mulheres têm apenas 16% dos estabelecimentos em nossos nomes. Em termos de terra, temos mais de 12 mil km², apenas 11% na gestão e uso pelas mulheres. Percebemos certo nível de desigualdade no acesso à questão fundiária. E não temos no Araripe um conselho, só um Fórum, muitos municípios não têm a coordenadoria das mulheres então dificulta a manutenção das políticas”, criticou.
Muitas vezes as mulheres se frustram ao pedir ajuda e passam constrangimentos nas delegacias. Só resta a elas, segundo a agricultora Francisca, de um sindicato local, ir às ruas e fazer o movimento de mulheres. Na opinião da Vera Guedes, do Centro Nordestino de Medicina Popular, outro problema é a falta de empoderamento. “Há mulheres em associações e direção de sindicatos, mas muitas precisam ser fortalecidas porque às vezes estão lá legalmente porque o homem não pode mais e são eles quem mandam. Não basta estar só na diretoria, precisa ter o poder de decisão. As mulheres estão participando mais, mas precisamos fortalecer para elas gerenciarem. Muitas estão se organizando em grupos separados”, destacou.
“O método desses estudos nos ajuda a trazer a discussão da economia feminista e interelacionar com os problemas estruturais. E pensar isso nas nossas práticas. Toda a sociedade vive a dor do patriarcado e sofre influência dela, independente da classe, cor, dentre outras questões. É preciso atentar para essas lentes e construir um novo olhar”, concluiu Laeticia Jalil.
(*) Foto de Ilka Oliveira.