“As técnicas que se praticam na agrofloresta se comunicam com os saberes ancestrais. Assim, o processo que fazemos de acompanhamento das famílias agricultoras em Exu (PE) é também um trabalho de reavivamento e valorização da benzedeira, do raizeiro, da parteira, do mateiro, da curandeira”, explica Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen, agricultora agroflorestal e extrativista, benzedeira e estudante do curso de graduação de Ciências Humanas.
A família de Silvanete começou a agrofloresta em sua propriedade há 16 anos, assim como outras famílias da região. Desde então, várias agricultoras e agricultores vêm aderindo a esse sistema, que combina o cultivo de alimentos com espécies da floresta. Atualmente, são 37 famílias acompanhadas pela Associação dos Agricultores Familiares da Serra dos Paus Doias (Agrodoia), por meio da parceria com outras organizações. Segundo Silvanete, as famílias são assessoradas pela Associação independentemente do tempo que iniciaram a agrofloresta, porque assim conseguem potencializar e difundir diversas técnicas de plantio sustentáveis.
Silvanete conta que, além de fazer parte da Agrodoia, integra outros coletivos, como a rede de agricultoras e agricultores experimentadores, a Rede Aroeira – Saúde da Mulher do Campo e Cidade e a Articulação no Semiárido de Pernambuco (ASA-PE), onde se interligam com diversas associações da região e do estado. “A gente faz questão de ressaltar as redes e parcerias porque é uma forma de dizer como que nós estamos articulados. São formas de construção em rede, de nos reafirmarmos em nossos territórios, em nossas comunidades”, justifica. A agricultora acredita que, dessa maneira, é possível fazer um trabalho mais abrangente, que contempla não apenas a comunidade, mas todo o município.
O planejamento de uma agrofloresta, que Silvanete também chama de “roça das nossas bisavós”, busca considerar o tempo de plantio e produção de diversas espécies, com diferentes objetivos, como a regeneração ambiental, a conservação da biodiversidade e o aproveitamento dos frutos e da madeira ao longo dos anos. Mas a agricultora ressalta também outros aspectos importantes do trabalho, como o envolvimento das juventudes e a valorização dos saberes existentes nas famílias. “É a partir disso que nós, enquanto associação de agricultores, passamos a perceber que era necessário espalhar, até para podermos ficar mais fortes”, avalia.
Assim como acontece em várias partes do Brasil, a comunidade Serra dos Paus Doias, na Chapada do Araripe, em Exu (PE), está cercada por atividades econômicas do agronegócio, como monoculturas de milho, soja e pastagem para criação de gado. Essa situação deixa as famílias “ilhadas”, sofrendo com a pressão de aderirem às práticas e tecnologias das indústrias do agronegócio (como os agrotóxicos e as sementes transgênicas), em substituição aos saberes e culturas da região (como o plantio diversificado e as sementes crioulas).
O apoio às comunidades com o intuito de fortalecer seus trabalhos com agroecologia e agrofloresta é uma forma de enfrentamento à tentativa de eliminação de saberes que acontece nos territórios. Para Silvanete, uma agrofloresta está em comunicação com os seres vivos, mas também com vários aspectos da vida, como a educação formal e não formal, o que favorece a mobilização e o pertencimento dos sujeitos nos processos de enfrentamento e construção do conhecimento. “Não tem condição de você trabalhar a agrofloresta, a regeneração da terra, de discutir a questão das mudanças climáticas, a questão da renda, sem discutir o conjunto das atividades que têm que acontecer para que haja um equilíbrio. Tudo está interligado”, analisa.
Assistência técnica e extensão rural
No Brasil, desde 2010, existe uma legislação específica com o objetivo de apoiar o acompanhamento técnico às famílias agricultoras. É a Lei Federal 12.188, que institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER) e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária (PRONATER).
Mas de acordo com Giovanne Xenofonte, da Rede ATER Nordeste de Agroecologia, apesar da existência das normativas legais, os recursos destinados para assistência técnica e extensão rural (ATER) são desproporcionalmente menores do que o volume de recursos para investimento e a quantidade de contratos de crédito. Além de mais robusto, o crédito é direcionado quase que totalmente para aquisição de insumos. Isso se dá devido ao interesse do Estado e ao lobby das indústrias do agronegócio, uma vez que a família agricultora que acessa esse recurso, geralmente, o utiliza para compra de insumos como sementes transgênicas, adubos químicos e agrotóxicos.
Por outro lado, há muitas ações e programas públicos destinados à agricultura familiar que deixam de ser acessados por falta de uma orientação adequada. Giovanne considera que a retomada de políticas públicas federais e de conselhos de participação social relacionados às pautas da agricultura familiar, que têm acontecido desde o ano passado com o início do governo Lula, reforça a necessidade de aprofundar a discussão sobre ATER até mesmo para garantir um bom acesso e funcionamento das políticas.
Ele cita, como exemplo, a volta do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que demanda uma série de medidas para ser acessado e executado pelas agricultoras e agricultores. A assessoria técnica pode facilitar o engajamento das famílias ao PAA, explicando como o programa funciona, como prepara uma proposta e como organiza todo o sistema de entrega dos alimentos. Esse trabalho pode ser feito por alguém da própria comunidade, por profissionais das empresas públicas de ATER ou por organizações da sociedade civil que prestam esse serviço. “Muitas vezes, não se considera isso e acaba que o programa não funciona porque não tem essa figura mediadora com tempo e condições de fazer esse trabalho”, afirma.
Giovanne alerta, contudo, para a disputa em relação à conotação dada ao termo ATER. A expressão foi cunhada no contexto de criação de programas e políticas públicas que tinham o objetivo de difundir o “pacote da revolução verde”, como o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, o plantio em monoculturas, entre outras práticas. Mas assim como as políticas públicas de ATER foram e ainda são significativas para promover um modelo de agricultura baseado no uso de veneno e na destruição da natureza, deve-se reconhecer também o papel potencial que elas possuem para a implantação de sistemas alimentares mais justos, solidários e sustentáveis.
Desse modo, apesar de o termo ATER estar amplamente difundido, seu entendimento e a forma como se expressa na prática segue em disputa. “A Rede ATER Nordeste, inclusive, resolveu manter esse nome para marcar uma posição com relação à política. Mas vira e mexe a gente tem que explicar que a ATER que a gente está falando não é na perspectiva da difusão do conhecimento. É uma ATER na perspectiva da construção do conhecimento”, diz Giovanne.
Assim, as metodologias adotadas nas ações de assessoria técnica devem favorecer o diálogo e a interação de saberes. E as/os profissionais responsáveis por fazer essa medição devem ter o papel de apoiar as agricultoras e os agricultores, as famílias e as comunidades a construírem as tecnologias e os caminhos necessários para se fortalecerem. “A gente vivencia essa realidade todo dia e temos conhecimento acumulado nas organizações e nos movimentos que fazem parte da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). Mas é um trabalho que tem custo. E quem pode cobrir esse custo é a política de ATER fortalecida”, relata Giovanne.
Nos processos de construção do conhecimento agroecológico, as agricultoras e os agricultores têm papel protagonista. Como ressalta Giovanne, é preciso romper a ideia, muito presente nos processos convencionais de assessoria, de que “o agricultor não faz a coisa certa porque não sabe”. Segundo ele, as agricultoras e os agricultores sabem muito e têm vários conhecimentos que, inclusive, precisam ser resgatados e valorizados.
Entre as atribuições da assessoria técnica está contribuir para que as/os agricultoras/es percebam suas potencialidades, viabilizando, por exemplo, o intercâmbio de experiências entre as famílias. Giovanne comenta que as/os agricultoras/es são, por natureza, pessoas experimentadoras. Depois que participam de atividades de troca de conhecimentos com outras/os agricultoras/es, voltam para suas propriedades e organizações e experimentam as técnicas produtivas ou organizativas que aprenderam. E, nessa experimentação, é possível inovar e fazer várias adaptações, de acordo com suas realidades. “Esses ajustes geram novos conhecimentos que podem ser trocados com outras famílias. É um ciclo de construção que vai se retroalimentando”, avalia Giovanne.
Em Exu (PE), uma das ações de assessoria desenvolvidas na comunidade buscou trabalhar a agrofloresta a partir do olhar e das práticas das mulheres. Por meio de uma oficina de bordado, as mulheres trouxeram em seus desenhos as plantas que cultivavam e que eram, muitas vezes, as mesmas plantas utilizadas como alimento, remédio ou para benzer.
“Ao todo, deu vinte e tantas pessoas. Foi muito lindo. Eu estou falando de mulheres com 70, 90 anos. E tem nós, que somos os filhos, os netos, os bisnetos. O menino mais novo que estava participando, bordando também, tinha 7 anos”, lembra Silvanete.
Ela ressalta que esse trabalho contribuiu ainda para perceber tanto a importância da agrofloresta como dos saberes e práticas das mulheres e dos homens que, há mais de 100 anos, constroem seus territórios. “A gente faz a agrofloresta dentro desse olhar pedagógico, criativo, dinâmico e, ao mesmo tempo, terapêutico”, reflete.
ATER feminista
Para Liliam Teles, integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), outro elemento importante que precisa ser incorporado nas políticas e ações de ATER é o reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos de direitos. As mulheres desempenham papel fundamental na conservação ambiental e na produção de alimentos baseada em sistemas agroalimentares sociobiodiversos, além de participarem de organizações sociais e exercerem atividades de cuidado nos âmbitos da família e da comunidade.
O reconhecimento do papel das mulheres na soberania e segurança alimentar e nutricional – das famílias e das comunidades – e o trabalho sociopolítico e econômico que elas desenvolvem relaciona-se ainda com vários outros aspectos, como a necessidade das ações de ATER contribuírem para superar a divisão sexual do trabalho.
Conforme explica Liliam, essa superação passa por reconhecer que atribuir o trabalho doméstico às mulheres é uma construção social. E que esse trabalho de cuidados deve ser compartilhado com o Estado e com os demais membros da família, da comunidade e da sociedade. “É fundamental que a ATER, numa perspectiva feminista, contribua para superar a divisão sexual do trabalho, porque esse tipo de trabalho sobrecarrega as mulheres e impede que elas acessem conhecimentos e participem das organizações e de atividades de formação”, justifica.
A integrante do GT Mulheres da ANA ainda destaca que a ação de assistência técnica, além de feminista, precisa ser agroecológica, antirracista e antilgbtfóbica. Isso significa que a ATER precisa ter uma perspectiva interseccional, que reconheça e valorize a diversidade étnico-racial, a cultura e os saberes ancestrais que as mulheres carregam. “A ATER deve contribuir para superar as desigualdades de gênero, raça e classe que se sobrepõem e que afetam de maneira diferente a vida das mulheres, principalmente as mulheres negras, as mulheres de povos e comunidades tradicionais, das comunidades quilombolas”, argumenta Liliam.
Texto de Marcelo Almeida, da Articulação Nacional de Agroecologia, publicado originalmente no site da Mídia Ninja. Para acessar, clique aqui.