Por Articulação Nacional de Agroecologia
Na tragédia-crime que ainda abala o Rio Grande do Sul, até o momento, três conclusões já podem ser tiradas: a primeira, é que a população mais pobre foi a mais afetada; a segunda, é que os ‘deslocados climáticos’ (pessoas obrigadas a saírem do seu local de moradia em busca de sobrevivência) são, de forma cada vez mais nítida, realidade no Brasil; e a terceira conclusão é que qualquer dimensionamento sobre a perda da agrobiodiversidade é subestimado, e isso não é nada bom para o estado, nem para o país.
Como prática agrícola baseada numa perspectiva ecológica, a agroecologia possibilita um entendimento muito evidente do que aconteceu. No Rio Grande do Sul, apesar de haver grande presença da agricultura familiar e da agroecologia, prevalecem as monoculturas e as pastagens. A remoção da vegetação natural faz com que o solo absorva menos água das chuvas. Em sentido oposto, os sistemas biodiversos absorvem melhor o impacto das mudanças climáticas, e também são eles que regeneram solos degradados.
Já como prática que leva a sociedade a uma visão sociotécnica do sistema alimentar, as experiências em agroecologia promovem justiça climática, conceito que associa a luta contra a crise climática à garantia e defesa de direitos. Diante das enchentes, que desencadearam um processo de grave desabastecimento alimentar e aumento da fome, se destacaram na região as Cozinhas Solidárias, fruto de uma articulação que inclui o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Pensando na retomada da lavoura para alimentar essa população, mas também na sobrevivência de espécies, redes agroecológicas da região estão programando outras ações. Até outubro, serão feitas visitas às comunidades para levantar dados e entender a realidade. O MPA programou uma brigada para levar sementes crioulas e mudas de mais de 20 diferentes instituições e movimentos sociais, e está em curso uma proposta para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) de compra de sementes varietais, denominação que atesta sua qualidade genética.
No pacote de medidas de apoio ao Rio Grande do Sul, o governo federal autorizou a liberação de R$1 bilhão para desconto nos juros dos financiamentos contratados pelos pequenos e médios agricultores do estado por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp). No entanto, estima-se que 70% do campesinato brasileiro ainda não têm acesso ao Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), inviabilizando o acesso a políticas públicas. Com apoio das universidades e de organizações não governamentais, será organizada uma equipe de técnicos para facilitar o acesso das famílias a políticas públicas como essa.
Diante da probabilidade de novas enchentes, é provável que parte do agronegócio migre para outra região. Seus representantes já têm solicitado crédito e abono de dívidas, o que pode facilitar o deslocamento.
Pela mesma dificuldade de acesso às políticas públicas, o direcionamento desse recurso de R$1 bilhão do Pronaf tem tudo para significar o replantio de commodities, como milho e soja. Essas culturas têm sido justamente as responsáveis pela mudança no uso da terra, que a tornaram mais vulnerável às enchentes.
Será, então, que esses investimentos não deveriam ser mais direcionados às famílias agricultoras que não têm a possibilidade de abandonar seu território e que podem iniciar uma transição agroecológica que preserve o solo e não provoque o mesmo impacto climático das monoculturas e pastagens?
Um exemplo concreto de apoio às iniciativas de agroecologia desenvolvidas nos territórios é o Programa Ecoforte, apontado como uma das experiências mais inovadoras da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Fundação Banco do Brasil anunciaram a intenção de alocar parte dos recursos destinados à reconstrução do Rio Grande do Sul para a implantação do Ecoforte na região. No início de julho, foi lançado um edital do Programa de R$100 milhões para financiar redes de agroecologia em todos os estados do Brasil, porém com um recurso suplementar para o estado.
Financiar a reconstrução de programas como o Ecoforte é fortalecer redes territoriais de agroecologia. Hoje, são essas redes que estão se mobilizando, com mecanismos de distribuição de alimentos e água. Mudanças climáticas afetam a produção, a saúde e acirram injustiças. Isso é um problema global, mas o que a agroecologia diz é que a solução pode e deve, sim, ser local e deve estar de acordo com quem pode fazer diferença nos territórios.
Essa matéria foi publicada originalmente no site da Mídia Ninja. Para acessar, clique aqui.