Considerado um importante instrumento de compra governamental, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) está de volta. O PAA foi criado em 2003 e, após ser paralisado na gestão passada do governo federal, foi relançado oficialmente em março de 2023. O passo seguinte foi dado no dia 11 deste mês, quando o novo Executivo anunciou que, até o dia 14 de junho, estarão abertas as inscrições de projetos de associações e cooperativas da agricultura familiar de todo o país. As propostas apresentadas neste ano deverão ter a participação mínima de 50% de mulheres rurais. Também serão priorizados os projetos com participação de povos e comunidades tradicionais, de assentados/as da reforma agrária e da juventude rural. Outro critério definido para a seleção das propostas diz respeito ao modo de produção dos alimentos, uma vez que os projetos agroecológicos e orgânicos terão preferência.
O PAA é um dos programas públicos existentes no Brasil que consiste na compra governamental de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Na modalidade “Compra com Doação Simultânea”, que é a categoria para a qual os projetos atuais se destinam, os alimentos adquiridos são doados à população em situação de vulnerabilidade, por meio da rede de assistência social ou dos equipamentos públicos de segurança alimentar e da rede pública e filantrópica de ensino.
Para entender a relação das políticas de compras governamentais com o fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia, conversamos com Helena Lopes, pesquisadora em agroecologia e integrante da Plataforma Agroecologia em Rede.
Com doutorado no Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), Helena já participou da elaboração de diversas publicações sobre a temática, sendo que a mais recente é “Sementes para a construção de políticas públicas com o enfoque agroecológico: a iniciativa Agroecologia nos Municípios”, da Articulação Nacional de Agroecologia. Segundo ela, quando as políticas públicas entendem e incorporam as diversas formas de organização social, ecológica e econômica presentes nos territórios, elas conseguem atender as demandas e serem executadas de acordo com as especificidades de cada local.
Como as políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à agroecologia podem enfrentar a fome e a insegurança alimentar e nutricional no Brasil?
Helena Lopes – A primeira coisa que me vem à cabeça é que a agroecologia e a agricultura familiar têm a alimentação como elemento central. Durante a pandemia, em uma conversa com agricultoras e agricultores familiares do Norte de Minas Gerais, eles colocaram como estavam preocupados por não conseguirem escoar suas produções. Não somente porque isso poderia diminuir suas rendas, mas porque não estavam cumprindo com a missão de serem agricultores, que seria, exatamente, “garantir alimentos para quem precisa”. Essa história coloca em evidência quais são as preocupações da agricultura familiar e o que as políticas públicas que apoiam esse setor significam. Reitera ainda como os alimentos não se limitam ao aspecto produtivo, pois trata-se de pensar também como eles chegam às pessoas, especialmente àquelas em situação de vulnerabilidade social. Assim, essas políticas colocam em perspectiva outras formas de pensar o próprio sistema alimentar, conectando quem produz e quem precisa dos alimentos. Isso é fundamental, porque no modelo convencional, que concebe o alimento estritamente como uma mercadoria, a lógica operante é de que o acesso se dá por quem pode comprar, o que o torna completamente excludente e acaba, por sua vez, reproduzindo desigualdades. É sob essa lógica de construção de novas economias, pautadas na solidariedade e na reciprocidade, que as políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à agroecologia contribuem com o enfrentamento da fome e da insegurança alimentar e nutricional. Quando a gente pensa, por exemplo, nos programas governamentais, seja no PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) ou no Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), estamos pensando na possibilidade das populações mais vulnerabilizadas terem acesso a esses alimentos. Vale destacar que, diferentemente da agricultura convencional, estamos falando de alimentos saudáveis, livre de transgênicos e agrotóxicos, e também de conflitos. A proposta das políticas públicas para agricultura familiar, além de garantir o enfrentamento da fome no nosso país, algo que, além de muito triste, chega a ser inacreditável, reafirma a dimensão política do alimento, o que precisa de tratamento adequado e urgente.
Quais são os desafios encontrados para elaborar essas políticas públicas?
Helena Lopes – Quando falamos de políticas públicas de fomento da agricultura familiar, o que está colocado é o desafio de pensar como elas são capazes de se estruturarem ou de se inspirarem a partir de uma lógica da diversidade em contraposição à lógica monocultural que a gente tem agora. Como a gente consegue pensar em sistemas alimentares ao invés de um único modelo, um único sistema alimentar, que é o que predomina no Brasil e, de certa forma, no mundo. Talvez o maior desafio dessas políticas públicas seja se constituir através da lógica da diversidade dos territórios, da diversidade dos modos de produzir os alimentos. Para isso acontecer, é preciso entender as diversas formas de organização social, ecológica e econômica do alimento nas diferentes regiões do Brasil. Precisamos pensar essas políticas públicas cada vez mais conectadas, não só com as dinâmicas regionais, mas com as dinâmicas locais e territoriais também. As políticas públicas de apoio à agricultura familiar precisam incorporar a diversidade dos territórios. Quando a gente olha para essa escala do território, a gente consegue deslocar o nosso pensamento, a nossa criatividade para pensar em políticas públicas que atuem, diretamente, na vida das comunidades, de quem produz o alimento. E, ao mesmo tempo, é possível pensar na construção de mercados específicos para a distribuição desses alimentos.
Portanto, as políticas públicas de fomento da agricultura familiar precisam operar numa lógica diferente do que a gente está acostumado, que é muito de cima para baixo. Precisamos fazer uma virada metodológica das políticas públicas, para que elas comecem a absorver a escala dos territórios e as diferentes dimensões produtivas, sociais e ecológicas que existem em nosso país. As políticas públicas precisam ser diversas, porque, assim, a gente vai conseguir olhar e entender por que existe insegurança alimentar e nutricional em determinado território, por que existe insegurança hídrica e, então, implementá-las de acordo com as especificidades de cada local. O que se coloca para nós é que as políticas públicas devem ser encontros entre os recursos do Estado e aqueles que existem nos diferentes lugares e territórios. A política pública não acontece no vazio, ela precisa aprender com quem ali está há muito tempo.
Você comentou sobre a construção de mercados específicos para distribuição de alimentos. Qual a relação dos programas de compra governamental de alimentos da agricultura familiar com a construção desses mercados?
Helena Lopes – Os programas de compra governamental cumprem um papel muito interessante que é repensar a nossa concepção de mercados, inclusive, de mercados regulados. Muitas vezes, no campo da agroecologia, no risco das generalizações, o mercado é colocado naquele “não lugar”, porque a gente vive em um tipo de sistema econômico, que é o sistema capitalista, que produz, se não todas, grande parte das mazelas que a gente enfrenta na nossa sociedade. Acho que os programas de compra governamental colocam uma possibilidade de construção de outros tipos de mercados, pois são constituídos a partir de uma lógica diferente, que não é da competição, nem liberal, nem individualista. São atores coletivos, através das suas organizações, sejam elas associações, grupos, cooperativas, que passam a construir esse mercado.
Por que você usa o termo “construir mercado” ao se referir às compras governamentais?
Helena Lopes – As compras governamentais, como é o caso do PAA, não se baseiam em compras, vamos dizer, verticalizadas, ao contrário, elas são constituídas em referência à própria produção da agricultura familiar, considerando, por exemplo, a sazonalidade dos alimentos e a variedade deles de acordo com cada região do Brasil. Esse é um ponto super importante das compras governamentais, porque, ao buscarem atuar em referência às especificidades agrícolas e ecológicas de cada lugar, permitem que diferentes grupos se fortaleçam. De certa forma, o PAA vai sendo construído por esses grupos, vai ganhando corpo por quem vende seus produtos e por quem recebe. Essa participação social permite, ainda, tanto na escala do território quanto nos espaços do Estado dedicados para isso, que o PAA seja constantemente revisitado e qualificado, num processo de avaliação da política pública. Para mim, é incrível pensar em uma política que se orienta pela combinação de diferentes esferas de participação, a ponto de o mercado, ou este tipo de mercado, não ficar apartado da sociedade, mas ser parte dela, se tornando, inclusive, uma forma de garantir direitos sociais, como uma alimentação adequada e saudável.
Então, o que está colocado pra gente no campo das políticas públicas é a possibilidade não só de construir mercados, mas de construir mercados que possuem novas referências. A sociedade ocidental, moderna, capitalista, tem como ideal a construção individual da autonomia. E aí a gente vai ouvir muito que a participação nesse tipo de mercado, como o PAA, promove autonomia. Isso desafia a própria lógica de autonomia que está colocada na nossa sociedade, porque essa autonomia que é construída pelo PAA se dá de forma coletiva e não está associada somente à produção e geração de renda, de riqueza. Está associada ao processo organizativo que acontece nas cooperativas, nas associações, nos grupos. Está associada aos processos organizativos liderados pelas mulheres, nos quais os momentos de produção e comercialização se conectam também à política, à auto-organização, à escuta ativa entre elas. O direcionamento mínimo de 50% do PAA para mulheres também aponta para essa noção de que o mercado convencional reproduz lógicas machistas e, por isso, novas formas e transformações são necessárias, sendo papel das políticas públicas, especialmente as que apoiam a agricultura familiar e a agroecologia, exercitá-las.
O que representa iniciativas como o PAA terem sido desestruturadas no governo anterior?
Helena Lopes – Acho que o desmonte das políticas públicas, pensando especificamente no PAA, significa que elas estavam demonstrando a potência da agricultura familiar na produção de alimentos saudáveis e adequados. Isso incomoda, e incomoda muito o setor do agronegócio no Brasil. As perseguições que a gente viu ao PAA, aos agricultores e gestores foram uma demonstração de como o apoio à agricultura familiar surte muitos efeitos e pode, realmente, ser um processo transformador da agricultura no nosso país. Eu estou falando do PAA, mas isso pode ser aplicado também a outras políticas que estão associadas à agricultura familiar e ao próprio campo da agroecologia. Quando se tem apoio adequado à agricultura familiar, aos povos e comunidades tradicionais, aos grupos de mulheres, rapidamente a gente pode ver que isso promove transformações produtivas, sociais e políticas no campo e na cidade. Acho que esse é um dos principais significados do desmonte do PAA: o Programa colocava em evidência a fragilidade da produção de alimentos pelo agronegócio, pautado no monocultivo e nos agrotóxicos, ao mesmo tempo que apontava para caminhos tecidos pela agricultura de base familiar. Essa capacidade que a agricultura familiar tem de responder, sobretudo quando ela tem o apoio adequado, é super importante e foi evidente no caso do PAA.
E qual a importância de retomar programas como o PAA?
Helena Lopes – Retomar programas como o PAA é recriar condições de existência, de produção e reprodução da própria vida no campo e nas cidades. Trata-se de reestabelecer fluxos que foram rompidos no âmbito da dimensão política do alimento. De forma bem prática, acho que poderíamos elencar três pontos dessa importância. Primeiro, pela possibilidade de garantia de alimentação às populações em situação de vulnerabilidade. Segundo, pela geração de renda. Terceiro, pela possibilidade de diversificação dos sistemas produtivos. A partir desses pontos, é possível identificar como o PAA se constitui numa espécie de ciclo ganha-ganha. Ao adquirir a produção das roças, quintais e hortas, seja ela de frutas, hortaliças ou cereais, promove geração de renda e possibilita que novos investimentos sejam feitos. É também este arranjo que garante segurança alimentar e nutricional, porque, dessa forma, alimentos serão produzidos todo o ano, considerando as especificidades do calendário agrícola.
Além disso, é preciso entender que as políticas públicas de compra governamental vão se associando aos diferentes mercados que também estão sendo construídos nos territórios. Por exemplo, o PAA se alia à feira da qual uma agricultora participa, se alia à comercialização que acontece na comunidade de porta em porta ou nas quitandas. Nessa perspectiva, temos aquilo que a gente chama de mercados territoriais, que são mercados construídos em aliança. Não existe competitividade entre esses mercados. Por exemplo, a partir do momento que o PAA é uma venda certa, o agricultor consegue se organizar e investir na diversificação da sua produção. Com isso, ele fortalece seu processo produtivo e passa a comercializar mais na feira. E essa maior comercialização na feira permite também mais diversificação e venda para o PAA. Então, é interessante pensar que, quando a gente olha para o PAA, não deve entendê-lo de forma isolada, mas a partir das possibilidades que ele tem de interagir com os diferentes mercados que existem no território. Por isso é interessante pensar na construção social de mercado, na construção desses mercados territoriais que acontecem em aliança. E isso é potente, não? Principalmente quando pensamos em estratégias de enfrentamento da fome. Estamos falando de mercados que colaboram entre si para a circulação de alimentos de qualidade.
O que significa a construção de políticas públicas com o enfoque agroecológico?
Helena Lopes – A construção de políticas públicas com enfoque agroecológico passa, especialmente, pela necessidade urgente do Estado em reconhecer o tecido social super rico e diverso que existe no Brasil. Estou me referindo aos movimentos sociais, aos povos e comunidades tradicionais, aos povos indígenas, à agricultura camponesa, seja na cidade ou na área rural. São atores que, historicamente, têm tanto garantido a produção de alimentos no nosso país quanto construído estratégias de organização coletiva nos territórios para acesso a direitos.
Assim, quando a gente fala em políticas públicas com enfoque agroecológico, a chave é reconhecer e garantir estratégias para que esses atores possam participar ativamente da construção dessas políticas, pois são eles que, há muito tempo, e em alguns casos sem nenhum apoio do Estado, têm feito agroecologia e fortalecido a agricultura familiar cotidianamente em diferentes contextos sociais, econômicos e ecológicos.
Você considera que políticas públicas de apoio à agricultura familiar e promoção da agroecologia podem ajudar a construir uma sociedade mais democrática, justa e sustentável?
Helena Lopes – A agroecologia tem se pautado por princípios que desafiam o modelo de sociedade que a gente tem. Nessa perspectiva, as políticas de apoio à agroecologia devem se basear, por exemplo, no feminismo, abrindo possibilidade de questionar as desigualdades de gênero, bem como de construir caminhos justos para as mulheres. E é somente entendendo as experiências conduzidas pelas mulheres no seu cotidiano que isso se torna possível. Essa é uma das formas como a agroecologia se constitui, a partir das experiências. Isso desloca a gente do lugar comum de que existe uma única sociedade e faz a gente repensar que as respostas, seguindo princípios, devem ser múltiplas e diversas. Para mim, a agroecologia, assim como a agricultura familiar, adicionam camadas políticas aos debates. No caso, do alimento, o que a agricultura convencional busca é despolitizá-lo, como se bastasse produzir e pronto. Na agroecologia, essa é uma relação inseparável.
Pensar uma política pública que garanta o alimento para as populações vulnerabilizadas é uma forma de pensar que existem desigualdades na nossa sociedade e que a gente precisa enfrentá-las. Nossa responsabilidade é compreender que os lares, por exemplo, que têm as mulheres negras como principais responsáveis são os lares onde existe mais fome no Brasil; e que, por isso, é papel da agroecologia, das políticas públicas, ter no seu foco como o alimento chega de forma prioritária para essas pessoas.
Eu comecei falando como o alimento é uma dimensão central da agroecologia e da agricultura familiar; e isso se dá de forma complexa, conforme destacado, mas também de forma bem objetiva, de nutrição do nosso corpo, de garantir nossa vitalidade, nossa disposição de estar vivas e vivos. A privação de alimentos pode condenar as pessoas e até mesmo gerações de pessoas. Para mim, isso responde porque a agroecologia ou as políticas públicas que apoiam a agroecologia e a agricultura familiar promovem uma sociedade mais democrática, justa e ecológica.
Por Articulação Nacional de Agroecologia
Esta entrevista foi publicada originalmente pelo site Mídia Ninja. Para acessar, clique aqui.