Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia para a Mídia Ninja
A 5ª Feira de Sementes do povo Xavante ocorreu nos últimos dias 08 e 09 de outubro, na Aldeia Ripá, na Terra Pimenta Barbosa, em Canarana (MT), com cerca de 80 participantes. Devido à pandemia, o evento foi realizado internamente com a presença de sete das 18 aldeias na região. Mais de 32 espécies de variedades nativas do cerrado e aproximadamente 12 do roçado tradicional foram trocadas na ocasião, além das atividades esportivas e de troca de saberes sobre a preservação da agrobiodiversidade local. Essa é mais uma experiência divulgada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
O movimento vem ocorrendo desde 2014, quando uma liderança local participou da Feira de Troca de Sementes dos Krahô e levou o aprendizado às suas aldeias. Entre as diversas variedades apresentadas nesta 5ª edição, que contou com o apoio da ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), Instituto Socioambiental (ISA) e da Rede de Sementes do Xingu, estavam milhos, feijões, abóboras e melancias, dentre outras. Ocorreram também troca de artefatos indígenas e a etnomúsica esteve muito presente, inclusive para incentivar a boa produção nas roças. As lideranças conversaram sobre estratégias agroalimentares e a soberania alimentar indígena, e foi servida um pouco da culinária tradicional, como o mingau de jatobá.
“Essas sementes são fundamentais porque não só cuidam da terra, mas também da água e dos alimentos dos povos e animais da região”, explicou Abeldo Virawe, presidente da Associação Indígena Xavante e filho do cacique da aldeia. Além da troca de sementes, o evento contou com a participação de convidados para falar sobre a importância do cerrado na conservação da água e a qualidade do ar no mundo.
“A 5ª Feira de Sementes foi muito importante, porque mostra as experiências com as sementes nativas do cerrado. A proposta envolve nove aldeias e mostramos aos nossos parentes espécies que eles não conhecem, por isso é importante essa troca. Não é só sementes, pessoas jovens também vão conhecer as medicinas naturais que estamos desenvolvendo. Jatoabá da mata, baru e feijão xavante foram algumas das que trocamos com outras aldeias, então esse intercâmbio é muito bom”, afirmou Abeldo.
De acordo com Alexandre Oliveira Lemos, diretor de projetos da Associação AIRE (Associação Indígena Ripá de Etnodesenvolvimento), realizadora do evento, a programação foi curta mas muito rica no sentido de troca de sementes e saberes visando a sustentabilidade ambiental e geração de renda a partir da agrobiodiversidade do cerrado. Os produtores indígenas buscam, segundo ele, não perder essas variedades crioulas tradicionais e o evento contribui muito nesse sentido. Os Xavantes cultivam seis variedades de milhos e estão ampliando cada vez mais a diversidade da sua produção.
“A programação contou com uma expedição pelo cerrado para eles mostrarem como é esse trabalho de preservação das sementes. Houve também uma conversa sobre etnoecologia com a geração de renda a partir da biodiversidade do cerrado e o reflorestamento do bioma, e os serviços que eles prestam não só a toda a comunidade mas às populações que moram na bacia dos rios Araguaia e Xingu. Houve ainda um torneio de arco e flechas antes da feira de sementes, e essa troca de experiências sobre os modos de preservação e para manter essa qualidade genética nutricional dessas espécies”, afirmou Lemos um dos coordenadores do evento.
O resgate histórico das sementes Krahô
A partir de uma reunião no ano de 1994 para a criação da Associação União das Aldeias Krahô – Kapey, no Tocantins, envolvendo 16 aldeias, houve um processo de recuperação e fortalecimento das sementes crioulas. Um dos anciãos manifestou a necessidade de diversificar a alimentação do seu povo, que na época estava prejudicada devido ao direcionamento das suas roças de subsistência à monocultura de arroz, seguindo orientações do antigo Serviço de Proteção do Índio (SPI) e depois da Fundação Nacional do Índio (Funai). Havia uma expectativa de empreendedorismo dos indígenas por parte desses órgãos à época.
Na elaboração do estatuto da Associação, que hoje integra 37 aldeias, foi incluída essa necessidade de procurar suas sementes, principalmente do milho, para lhes dar autonomia e segurança alimentar. Graças à uma comitiva dos Krahôs junto a alguns indigenistas da Funai que acompanharam esse processo, foi conhecido por acaso em Brasília (DF) o Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia (CENARGEN), hoje chamado Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, que guarda as sementes do Brasil inteiro em câmaras frias (Banco de Germoplasma). Nesse momento, foram identificadas seis variedades de milho, originalmente coletadas nas terras indígenas Xavantes e alí depositadas na década de 1970.
Com o apoio do incentivador Dr. Antônio Carlos Guedes, que era curador de recursos genéticos do CENARGEN, foi possível disponibilizar à época pequenas quantidades das variedades de milho aos Krahô, que foram distribuídas em reuniões com as lideranças e levadas às aldeias para o plantio. Toda essa história foi relembrada pelo indigenista Fernando Schiavini, que acompanhou o processo pela Funai, órgão do qual se aposentou após 40 anos de trabalho, em 2015. Segundo ele, dois anos depois, durante uma nova reunião da Associação, surgiu a ideia da Feira de Troca de Sementes.
Desde 1997, milhares de indígenas passaram a se encontrar nesse evento, que foi replicado por outras etnias em todo o País, gerando a autonomia de suas roças sem a dependência de sementes híbridas, transgênicas ou qualquer outra espécie. Há 13 anos, os Krahôs não solicitam mais sementes de fora e voltaram a plantar a mandioca e várias outras plantas, como inhames, caras, feijões, favas, e privilegiar a diversidade das suas roças, que antes estavam dominadas pela monocultura do arroz.
“O encontro foi tão positivo, não só pelas sementes em si, mas também pela troca cultural com festa, que decidiram fazer no ano seguinte. Assim começaram a fazer a Feira de Sementes, que era de ano em ano e depois foi se espaçando cada vez mais. O evento chegou a ter 3 mil pessoas, com mais de 20 etnias do Brasil inteiro, pesquisadores, antropólogos, indigenistas etc. Era uma coisa muito forte e os Krahôs foram recuperando suas sementes, inclusive adquirindo outras, que eram trazidas e trocadas por várias etnias” destacou Schiavini.
De acordo com Terezinha Dias, do Grupo de Pesquisa de Conservação e Manejo de Recursos Genéticos do CENARGEN, a partir dos anos 2000, junto aos Krahô e com apoio da Funai, iniciou-se um projeto relacionado ao fortalecimento do etnoconhecimento, da segurança alimentar e o estímulo à conservação local dos recursos genéticos. Em 2004, o CENARGEN reforçou a reintrodução de milhos tradicionais levando cerca de meia tonelada de sementes e outras espécies. Passaram também a atuar apoiando tecnicamente os Krahô na realização das feiras e a contextualizá-las como método de promover a conservação local das variedades agrícolas tradicionais.
“O objetivo é buscar também fortalecer na Embrapa a prática de repatriação de sementes tradicionais para povos indígenas com reflexos na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). As Feiras Krahô têm fortalecido a rede de guardiões de sementes e, como prática de conservação local, vem sendo replicada em vários territórios indígenas. Permite aos agricultores o resgate de variabilidade de sementes escassas e desaparecidas de seus roçados e amplia a percepção do papel de seus territórios e das suas práticas tradicionais na geração e conservação da agrobiodiversidade nacional”, afirmou a pesquisadora, que atua com os Krahôs há mais de 20 anos.
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