Entrevista com André Ruoppolo Biazoti do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana
Por Eduardo Sá
Há algumas décadas, o tema da agricultura urbana vem sendo pautado pelos movimentos agroecológicos, culminando com o surgimento do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU), em 2014. No meio da pandemia, que exigiu o isolamento social e suspendeu vários comércios, esse modelo de produção de alimentos sustentável se revelou um dos importantes instrumentos de combate à fome. No meio de uma grave crise econômica, as redes solidárias se destacaram nas grandes metrópoles no fornecimento de alimentos às populações mais vulneráveis, conectando agricultores e agricultoras em áreas rurais a grupos de consumidores em regiões urbanas.
Para abordar esses assuntos, entrevistamos André Ruoppolo Biazoti, mestre em agricultura urbana pelo Programa Interunidades em Ecologia Aplicada na Universidade de São Paulo (USP) e integrante do CNAU e da União de Hortas Comunitárias de São Paulo. Na entrevista, ele fala sobre o potencial pedagógico, ambiental e econômico da agricultura urbana, e alerta sobre a falta de políticas públicas mais duradouras para o setor. As redes que se consolidaram durante a pandemia deveriam ser mais apoiadas pelos poderes públicos, segundo ele, como um modelo estrutural de gestão das cidades junto à sociedade civil.
Quando começou o debate sobre agricultura urbana e com quais pautas?
Nas décadas de 1970 e 1980 surgiram algumas políticas públicas locais para estruturar programas de agricultura urbana nos municípios, principalmente para lidar com o boom de urbanização das décadas anteriores. Muitas populações empobrecidas passaram a habitar as grandes cidades e, para estimular o mercado interno, essas pessoas precisavam gerar renda, e a industrialização não estava dando conta. Então, esses projetos diminuíram a pobreza da população por meio da produção e comercialização de alimentos no interior das cidades. A agricultura urbana surge em momentos de crise, mas assim que as condições de vida melhoram, os programas retrocedem ou deixam de funcionar. Há essa dinâmica sanfonada, que produz em qualquer terreno e garante a segurança alimentar, promove geração de renda, mas quando estão todos bem, os programas são descontinuados.
A agricultura urbana vem sendo construída em âmbito federal desde 2002, com o Programa Fome Zero, que articulou um conjunto de políticas públicas a nível nacional. A agricultura urbana passou a ser vista como uma estratégia de governo para o combate à fome e a garantia de qualidade de vida. Foram estruturadas e respaldadas algumas experiências a nível nacional, principalmente com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) iniciou a discussão acerca de uma política nacional no âmbito do Grupo de Trabalho em Agricultura Urbana. Com o objetivo de aprofundar essa construção com participação social, e a partir das experiências nos territórios, surgiu o Coletivo Nacional de Agricultura Urbana e começou um diálogo e troca de experiências junto às agricultoras e aos agricultores urbanos, técnicos e organizações da sociedade civil, que se mantém até hoje.
A articulação se fortaleceu a partir de atividades como o Encontro Nacional de Agricultura Urbana, realizado em 2016 e gestado durante o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), em 2014. Eram identificadas as experiências de agricultura urbana dispersas no movimento agroecológico, trazendo a importância do tema e do diálogo da agroecologia na cidade. Uma proposta para além do mercado, na perspectiva da cidade não só como consumidora, mas também produtora relevante de alimentos. Mas com a pandemia. percebemos cada vez mais um fluxo que sai do nacional para o municipal ganhando muita força.
Atualmente, há o Projeto de Lei nº 906/2015 em tramitação no Senado, de autoria do deputado federal Padre João (PT-MG), que pretende instituir a Política Nacional de Agricultura Urbana e incentivar ações que contribuam para aumentar e melhorar a produção nas cidades. A proposta apresentada no PL prevê a cooperação entre a União, os estados e os municípios e contou com a participação de alguns movimentos da sociedade civil.
O Consea, por exemplo, que foi citado, já não existe mais, foi extinto no início do governo Bolsonaro.
Com a extinção do Consea, o Coletivo de Agricultura Urbana perdeu um importante espaço de articulação a nível nacional, pois o Consea promovia vários encontros, plenárias do próprio Conselho, momentos em que o CNAU foi se fortalecendo. Por outro lado, percebemos que o debate foi ganhando muito mais força a nível local, até porque a agricultura urbana começou a ir para a mídia, com o surgimento de várias políticas municipais etc. O tema voltou à tona com a crise gerada pela pandemia, porque a agricultura é uma das principais alternativas de combate à fome e de garantia de produção e geração de renda para a população empobrecida nas cidades.
As agricultoras e os agricultores urbanos que tinham algum canal de comercialização tiveram, durante a pandemia, um aumento na comercialização. As feiras e os mercados fecharam, as pessoas começaram a ter medo de comprar os alimentos na rua, então passaram a comprar direto com o produtor e a produtora na horta urbana. Por ser invisibilizado/a e não ter políticas públicas mais estruturantes nos municípios para ele/a, esse/a agricultor/a, em muitos casos, não conseguiu lidar com essa demanda, que aumentou da noite pro dia.
Os problemas históricos foram potencializados, como ausência de assistência técnica, dificuldade de acesso às políticas públicas, obrigatoriedade de emissão da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), pouca disponibilidade de insumos agroecológicos nas cidades. A agricultora e o agricultor urbano continuaram sem apoio das prefeituras, dos governos estaduais, mas sua demanda aumentou. Muitas hortas surgiram, protagonizada por pessoas desempregadas precisando produzir alimento para sobreviver, vendo aí uma oportunidade de ganhar dinheiro. Mas, as políticas públicas que surgem acabam sendo muitos pontuais, em muitos casos são pequenos programas, que não chegam a ser estruturantes. Por isso, a mão-de-obra na agricultura urbana tem uma característica: a pessoa fica desempregada e arruma uma horta para produzir, mas, no primeiro momento que consegue um bico, deixa a horta para ganhar dinheiro em outra atividade.
A pandemia tem potencializado o desenvolvimento de muitas iniciativas: redes solidárias de abastecimento, gente que arrecadou dinheiro para comprar de agricultor e agricultora e distribuir cesta básica etc. São alianças que há muito tempo falamos no movimento agroecológico, da necessidade de nos aproximarmos dos coletivos de cultura, de jovens, de moradia etc. Esse sempre foi um objetivo, apesar dos inúmeros desafios para conseguir promover essa integração. A pandemia possibilitou essa aliança entre os movimentos, a partir das necessidades urgentes no território, promovendo hortas nas periferias e redes solidárias de abastecimento. No entanto, já percebemos que nesta segunda onda de contágio pelo coronavírus, esses coletivos estão com menos gás, até porque não recebem apoio público das prefeituras.
Com as escolas fechadas, muitas prefeituras não entregaram alimentos da agricultura familiar previstos no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), isso foi muito sentido por agricultoras e agricultores nas cidades?
Em Belo Horizonte e São Paulo, por exemplo, os agricultores e agricultoras que tinham contato direto com os consumidores conseguiram manter e até ampliar sua comercialização, mas quem estava com acesso restrito ao mercado institucional, via PAA [Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar] ou PNAE, passou por dificuldades. É preciso criar uma diversidade de canais a partir da construção social de mercados, buscando evitar a dependência exclusiva de mercados institucionais. Agora, um dos desafios é como manter essas alianças para além da pandemia e dar continuidade ao debate de agricultura urbana junto aos coletivos de direito à cidade, transporte, moradia e cultura.
Quais são as iniciativas que têm dado certo na agricultura urbana?
O que segurou muito durante a pandemia foram os quintais produtivos, menos impactados que os dependentes de mercados ou feiras. Essa produção caseira e de trocas comunitárias com os vizinhos se mostrou mais promissora em termos de modelo. As hortas comunitárias promovidas por voluntários e voluntárias tiveram um baque no início da pandemia, mas não chegaram a fechar. Foram criados protocolos sanitários pelos próprios integrantes das hortas, por causa dessa falta generalizada de orientações dos governos.
As doações de alimentos mostraram a força que esses coletivos têm nos territórios e evidenciaram os laços comunitários, que facilitaram a identificação dos que precisavam de ajuda. São os vínculos entre o urbano e o rural, são as pessoas da cidade tratando diretamente com as produtoras e os produtores urbanos ou rurais. O contato direto do consumidor por meio de modelos solidários de mercado, como a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) que são sócios comprometidos a financiar mensalmente o produtor, distribuição de cestas etc. Esses arranjos são modelos muito promissores, porque partem do entendimento de que na cidade se produz alimento e de que há uma necessidade de encurtar os circuitos de comercialização. Esses modelos têm mais sustentação num momento de crise e colapso do sistema capitalista, são exemplos para investir em programas mais estruturantes com propostas também mais pedagógicas. É muito importante potencializar esse encontro, que nesse momento foi o que sustentou as comunidades mais carentes nos territórios.
Onde estão os gargalos para a construção de cidades mais sustentáveis?
O acesso a políticas públicas mais estruturantes é o principal gargalo histórico, porque todas são voltadas mais para o rural. Os agricultores e as agricultoras precisam de crédito para investir na sua produção, botar um sistema de irrigação etc. E também tem a questão da normatização da agricultura urbana. Muitas hortas não têm um contrato de cessão de terreno e acabam sendo muito informais ou com instrumentos precários. Em São Paulo, várias foram ameaçadas pela especulação imobiliária. Esses empreendimentos se aproveitaram do afrouxamento do tecido social para avançar com projetos de moradias. Falta um reconhecimento mais formal com instrumentos jurídicos que dêem maior estabilidade ao agricultor. Um contrato de cessão por 10 anos, por exemplo, que a prefeitura não pode simplesmente ignorar. Os agricultores e as agricultoras precisam investir nas suas terras com mais tranquilidade e segurança jurídica de sua permanência no espaço.
E em relação ao meio ambiente e à sustentabilidade, há alguma proposta diferenciada da agricultura urbana para as cidades?
Em Belo Horizonte (MG), há uma discussão sobre inserir a agricultura urbana nos planos diretores como integrante do sistema de infraestrutura verde das cidades. Parques, praças, hortas, espaços de produção agrícolas etc., também podem ser enxergados nessa perspectiva, aumentando a capacidade de permeabilidade urbana, refúgios de fauna e flora, mitigando impactos climáticos e das ilhas de calor, por exemplo. Essas áreas de agricultura urbana têm um benefício ambiental enorme com uma questão de zoneamento urbano e de infraestrutura da própria cidade. Em São Paulo, temos discutido uma economia circular, de como a agricultura consegue reutilizar recursos jogados fora pela cidade. Não só a utilização de resíduo orgânico resultante da compostagem, mas também resíduos secos, como estruturas de canteiros de horta utilizando materiais da construção civil e garrafas pet. Tem também a dimensão da educação ambiental, porque uma coisa é falar de meio ambiente como algo distante, outra é com a mão na massa, com as hortas trazendo também a educação alimentar. É muito importante ter as pessoas colhendo o próprio alimento, pois as engaja no cuidado ambiental da cidade, e isso tem um potencial muito grande.
Vivemos um momento importante para agricultura urbana, porque, apesar da crise econômica grave e do retorno da fome, foram gerados novos laços com o intuito de minimizar os impactos da pandemia na vida das pessoas e nas dinâmicas das comunidades. Muitos grupos se uniram para assessorar os setores mais vulneráveis na sociedade, isso reforça a necessidade de termos políticas públicas a nível municipal mais estruturais para a agricultura urbana. Não de programas pequenos, feitos por decreto, sem orçamento, que acabam sendo mais frágeis. Precisamos dar visibilidade às experiências em curso e fortalecê-las com políticas públicas duradouras para se sustentarem ao longo do tempo.
Esta entrevista foi publicada originalmente na Mídia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI!