Celebrar a resistência da agricultura familiar camponesa através da defesa de suas sementes crioulas, sua história genética e a cultura alimentar que carregam. Este foi o sentimento partilhado pelas mais de 250 pessoas que compareceram à inauguração da Unidade Agroindustrial de Beneficiamento de Derivados do Milho Crioulo Ecológico, livre de transgênicos, realizada na última quarta-feira, dia 23/10, na Comunidade Guaiaca dos Pretos, zona rural de São João Triunfo, no centro sul paranaense.

Conhecer a importância do milho crioulo na história da agricultura familiar camponesa na região foi o convite do Túnel do Tempo, uma instalação artístico-pedagógica organizada por estudantes do Colégio Estadual do Campo Profª Adelaide W. Prins. Toda a escola foi mobilizada para construir o percurso, aberto com desenhos de crianças e adolescentes do sétimo e oitavo ano que retrataram as propriedades rurais onde vivem. O intuito foi refletir sobre a diferença entre uma produção diversificada e agroecológica e os extensos campos de monocultura de milho, em grande parte transgênico e com uso de agrotóxicos.

O evento enfatizou o papel central atualmente desempenhado por guardiãs e guardiões da agrobiodiversidade ao assegurar os direitos das famílias agricultoras de cultivar, plantar, trocar e beneficiar as sementes protegidas e desenvolvidas por gerações e gerações. Acordos internacionais constantemente violados tornam urgentes estratégias coletivas de proteção à produção familiar camponesa. A agroindústria surge nesse contexto como a materialização de uma grande conquista da rede regional de guardiões e guardiãs, uma iniciativa articulada pelo Coletivo Triunfo com assessoria da AS-PTA.

Para Naiara Bittencourt, advogada popular da Terra de Direitos e representante da Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) e do Grupo de Trabalho Agrobiodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), “esta agroindústria é um grande avanço na conquista da efetivação de direitos, construída a partir de muitas mãos e organizações, principalmente a AS-PTA e o Coletivo Triunfo”. Mesmo com tantos retrocessos, um avanço no desenvolvimento produtivo para que as sementes continuem germinando e crescendo. “É necessária a ação do Estado no freio à contaminação. Estudos científicos já demonstraram que os 100 metros de distância entre os campos de produção não são suficientes para evitar a contaminação (das sementes crioulas por transgênicos). Estamos perdendo as sementes cultivadas a décadas e séculos. A inauguração dessa unidade de beneficiamento é um sopro de esperança para todas e todos nós”, conclui Naiara.

Estratégias no enfrentamento a contaminação

O Centro Sul do Paraná é marcado por uma presente tradição camponesa que começa a mudar, de forma mais expressiva, no final da década de 1990 com a aprovação do plantio de sementes geneticamente modificadas. A partir da crescente contaminação das sementes crioulas por transgênicos e a expansão do uso de agrotóxicos, traçar estratégias no enfrentamento nos campos econômico e político é fundamental. As redes territoriais de guardiãs e guardiões desempenham um papel indispensável para garantir a permanência das diferentes iniciativas e na comunicação entre elas.

O entendimento de que as sementes crioulas são bens comuns e que os agricultores e agricultoras têm direitos sobre elas é um grande avanço político. É esse entendimento que sustenta as ações de defesa das sementes e de denúncia da contaminação. Reconhecer as famílias guardiãs e todo seu trabalho de proteção das variedades locais é uma das estratégias que vêm sendo colocadas em prática na região. A construção de casas e bancos comunitários de sementes é um dos caminhos adotados para fortalecer as estratégias coletivas de conservação da agrobiodiversidade. Elas contribuem para a articulação dos grupos comunitários e coletivos, para melhoramento das variedades e para a troca de experiências e tecnologias sociais desenvolvidas nos territórios.

“Em 2009 sofremos um golpe muito grande com a liberação das sementes transgênicas de milho. Sabemos que as normas estipuladas pela CTNBio (Comissão Nacional de Biossegurança, órgão colegiado responsável por avaliar a liberação de OGMs) não são suficientes para evitar a contaminação.  Com o perigo iminente, iniciamos um trabalho mais forte de monitoramento da contaminação das sementes, realizando sistematicamente testes de transgenia. Essa é uma maneira de resistir à contaminação causada pelo milho transgênico e de resguardar as sementes puras”, afirma André Jantara, assessor técnico da AS-PTA no Programa Paraná. O Grupo Coletivo Triunfo foi criado em 2010 para articular lideranças da agricultura familiar da região na defesa da agroecologia, o que significa também organizar a luta contra a contaminação por agrotóxicos e transgênicos que viola direitos dos agricultores.

Dentre as estratégias de ação do Coletivo está a luta pela criação de legislações que reconheçam e apoiem as famílias guardiãs de sementes. “Precisamos entender que sem semente crioula não se faz agroecologia. Essa unidade de beneficiamento não é da AS-PTA e de nenhuma cooperativa ou organização específica, mas sim de todas as famílias agricultoras que lutam há anos pela preservação das sementes crioulas”, finaliza Jantara.

O financiamento da unidade de beneficiamento foi viabilizado pelo Projeto 17.008, da Fundação Banco do Brasil, no âmbito do Programa Trabalho e Cidadania, Inclusão que transforma apresentado pela AS-PTA em construção conjunta com o Coletivo Triunfo.

De fato, o esforço de organização que resultou na agroindústria vem de longe. Vem de uma trajetória iniciada ainda na década de 1990 em defesa das sementes crioulas na região. Entre encontros, intercâmbios, cursos e outras atividades realizadas pela rede de guardiões na região, destaca-se a realização de 77 feiras municipais e 18 feiras regionais.

Dona Terezinha, agricultora da Comunidade da Invernada, município de Rio Azul, que no ato de inauguração representou a rede de guardiãs e guardiões afirma a força e o papel da organização feminina na defesa das sementes. “É uma batalha, mas com uma grande alegria quando vamos nos movimentos, quando vemos a diversificação, com as escolas envolvidas e o alimento protegido. Na nossa comunidade, o teste de transgenia trouxe o resultado positivo com a certificação das sementes como puras e vemos também um aumento da procura por elas. Hoje estou feliz de estar aqui, com o Coletivo de Mulheres de Rio Azul, que são minhas companheiras de luta”. Segundo sua visão, os campos de sementes na comunidade são realizados a partir da força da organização das mulheres.

Cultura alimentar e merenda escolar

A alimentação escolar gratuita e universal, com a determinação de que 30% seja adquirida da agricultura familiar, se tornou direito em 16 de junho de 2009, com a sanção da Lei nº 11.947, a nova lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Garantir o acesso de milhares de crianças, adolescentes e adultos a uma alimentação saudável e adequada foi uma das ações previstas na lei.

No intuito de compreender, por meio da pesquisa-ação, a importância da nova Lei do PNAE e a inserção de alimentos da agricultura familiar e agroecológicos na merenda escolar, diversas organizações da sociedade civil participam da iniciativa “Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade”, lançada no ato de inauguração da agroindústria.

As experiências de sete municípios brasileiros serão analisadas como locais de aprendizagem. São João do Triunfo foi o município selecionado na região Sul para a realização da pesquisa. A Lei Municipal nº 1730/2017 prevê o fornecimento de 100% da alimentação escolar proveniente da agricultura familiar, hoje em torno de 80% e representa a importância das políticas públicas e legislação específica.

Para Paulo Petersen, no ato representando a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o intuito do projeto da ANA é “replicar os avanços e fazer com que os municípios se comprometam com a alimentação saudável e adequada, com a soberania e segurança alimentar, com sementes crioulas e com a agroecologia”.

De quando é colhido até o consumo, o alimento carrega e representa a cultura dos povos. Pensar a alimentação escolar a partir do território, culturalmente referenciada, é uma maneira de preservar a história e dialogar dentro e fora da comunidade escolar.

“Garantir comida de verdade no prato de milhares de estudantes e trabalhar a cultura alimentar é o grande avanço do PNAE, uma das políticas públicas mais antigas do país, reconhecida internacionalmente”, acredita Islândia Bezerra, vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia. Para ela, “devemos ocupar as instâncias de controle e decisão política que pudermos. São nesses espaços que se decidem as políticas públicas, como o PNAE”.

Participam da iniciativa Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), com apoio da agência alemã de cooperação Misereor e a Fundação Porticus.

O registro das diferentes estratégias em defesa das sementes crioulas e preservação da agrobiodiversidade é fundamental quando pensamos em sua trajetória histórica. O Boletim ‘Sementes Crioulas, por um Brasil Ecológico Livre de Transgênicos’ também foi lançado  no ato de inauguração da agroindústria. Ele retoma e atualiza o boletim Por um Brasil Livre de Transgênicos e Agrotóxicos, produzido pela AS-PTA em parceria com diversas organizações desde o final de década de 1990 com o objetivo de denunciar os impactos dos transgênicos e dos agrotóxicos. Além de seguir denunciando os efeitos perniciosos dessas tecnologias para a sociedade e o meio ambiente, o novo boletim dará destaque aos anúncios das experiências em defesa da agrobiodiversidade que se multiplicam pelo Brasil e pelo mundo no âmbito de movimentos em defesa da alimentação saudável e da agroecologia.

Texto: Luiza Damigo
Fotos: Luiza Damigo e Luciano Silveira