Na última segunda e terça-feira, 25 e 26 de março, aconteceu no Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC) o Seminário Sobre Agrotóxicos nos Alimentos, na Água e na Saúde. O evento, organizado pelo Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT), foi dividido em quatro painéis: Agrotóxicos e Saúde, Agrotóxicos e Água, Regulação e Comércio de Agrotóxicos e Agrotóxicos e Alimentos. Ao final do último dia, foi realizada uma Plenária conjunta do FCCIAT com os Fóruns Gaúcho e Paranaense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Agrotóxicos e Saúde
O tom do primeiro painel do Seminário foi de denúncia do começo ao fim. O debate contou com a presença da Dra. Sílvia Brandalise, pediatra referência nacional e internacional no tratamento do câncer infantil, do Dr. Jackson Rogerio Barbosa, professor e pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso e do Dr. Pablo Moritz, médico Pneumologista do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (CIATox-SC).
O Dr. Pablo Moritz abriu o debate com a informação de que a tolerância mínima de toxicidade dos agrotóxicos caiu por terra. Ele mostrou que pesquisas tornam cada vez mais evidente a gravidade da contaminação por substâncias químicas na saúde da população. A lista de doenças causadas direta ou indiretamente pelo uso de agrotóxicos e pesticidas é imensa e vai desde distúrbios psiquiátricos e neurológicos, até efeitos de mutação genética. Entre essas doenças está o câncer.
Referência no assunto, a Dra. Sílvia Brandalise apresentou dados alarmantes do aumento da incidência de câncer e de má formação congênita em crianças de 0 a 14 anos. A pediatra afirma que a exposição aos venenos usados nas plantações está relacionada com a leucemia e tumores no cérebro e que o consumo excessivo de alimentos contaminados também representam fatores de risco. Como ela mesma lembrou, esses dados mostram que a contaminação por agrotóxico atinge a todos, sobretudo aqueles sem poder de escolha; e que a tendência é aumentar.
Em 2012, a exposição anual aos agrotóxicos era de 5,2 litros por pessoa. Cinco anos depois, se constatou que a palavra ‘exposição’ era muito branda e passou-se a considerar o consumo de agrotóxicos, que em 2017 saltou para 7,3 litros anuais por pessoa. Os dados apresentados pelo Dr. Jackson Rogério Barbosa mostram a liderança do Brasil no consumo de agrotóxicos, onde diversas substâncias já proibidas na União Europeia ainda são utilizadas em grande escala.
Jackson e Pablo chamaram atenção para o ciclo vicioso desse modelo de negócio: quanto mais veneno se usa nas lavouras, mais resistentes se tornam as pragas e mais veneno é necessário. Quem ganha com isso? O agronegócio é o grande beneficiado, demonstra Jackson: “Esses que estão ricos e milionários não estão no Brasil, estão fora daqui. Aqui nós estamos morrendo e o nosso ambiente, nossos ecossistemas e nossa vida está sendo destruída para alguns, pouquíssimos, ficarem multibilionários no mundo”.
Agrotóxicos e Água
Ainda na terça-feira, as pesquisadoras Prof. Dra. Sonia Hess, da Universidade Federal de Santa Catarina e a Dra. Larissa Bombardi (USP), autora do atlas “Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil“, chocaram o público com mais dados alarmantes, dessa vez com relação a água que consumimos, que pode ser considerada também o nosso principal alimento.
De acordo com Larissa Bombardi, o Brasil é extremamente permissivo quando se fala em limites de resíduos permitidos na água. No caso do herbicida Diuron, por exemplo, a legislação brasileira considera “seguro” uma quantidade até 900 vezes maior de resíduos dessa substância na água do que é tolerado na União Europeia. Se considerarmos o glifosato, o agrotóxico mais utilizado no Brasil, esse limite chega a 5 mil vezes mais: se na Europa fosse permitido ter 1 grama desse princípio ativo em 1.000 litros de água, por exemplo, no Brasil estaria ok ter 5 quilos.
“Talvez seja porque devido à mistura de raças nós brasileiros somos mais fortes, né”, ironiza a professora Sônia Hess, que também trouxe dados alarmantes sobre a contaminação da água por esgoto e também agrotóxicos em Santa Catarina. Enquanto menos de 30% dos municípios catarinenses fazem coleta de esgoto – e ainda nem todos esses fazem o tratamento -, Sônia constatou que em 22 cidades a água está contaminada com pelo menos 7 princípios ativos – todos proibidos na União Europeia. A professora baseou-se num levantamento do Ministério Público que analisou amostras de água em 90 municípios catarinenses, e ressalta que esses dados vieram de uma única coleta. “Se for feita uma análise sistemática, veremos que o índice de contaminação é bem maior”, explica. “Estamos cozinhando e tomando banho de veneno porque permitimos o uso”, alerta. Para Sonia, “o Brasil é a maior lixeira química do mundo” e “não temos soberania quando permitimos que lixo dos outros seja depositado aqui”, criticando a comercialização de agrotóxicos aqui que são proibidos em outros países do mundo. Ela sugere a diminuição do consumo de carne e derivado de animais como uma ação prática que pode ser adotada pela sociedade para desestimular a poluição e o consumo exagerado de água.
Isso porque o elevado consumo de agrotóxicos no Brasil está diretamente relacionado ao nosso modelo agroexportador de commodities agrícolas e minerais. O Brasil consome 20% dos agrotóxicos utilizados no planeta, sendo que três culturas respondem por 72% desse montante: soja, milho e cana. “A gente se insere na economia mundializada de forma subalterna, exportando produtos com baixo valor agregado”, afirma Larissa Mies Bombardi, autora do atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil”.
Larissa aponta que entre 2007 e 2014, o Brasil registrou uma média de 25 mil intoxicações por agrotóxicos ao ano. Entretanto, considerando que para cada caso registrado outros 50 não são notificados – de acordo com a Organização Mundial de Saúde – esse índice pode chegar a 1.250.000 intoxicações. Destes, cerca de 20% envolvem crianças e adolescentes até 19 anos. E são nas áreas com culturas como soja, cana, milho, algodão e eucalipto que existem mais intoxicações por agrotóxicos: “Uma parte das intoxicações está relacionada ao modelo agrícola que não privilegia a segurança e soberania alimentar, mas atender a demanda de um mercado internacional de commodities”, completa.
Considerando a proporção populacional, Santa Catarina tem um dos maiores índices de intoxicação por agrotóxicos no Brasil. O estado também desponta em casos de tentativas de suicídio com essas substâncias.
“No Brasil, a agricultura deixou de ser sinônimo de produção de alimentos”, afirma Larissa Bombardi. Hoje, o Brasil importa feijão enquanto a monocultura de soja ocupa uma área correspondente a 3,5 vezes o tamanho de Portugal, sendo que essa produção absorve aproximadamente 52% do total de agrotóxicos comercializados no país. Outros 10% do agrotóxico comercializado vão para o milho (mais de 90% transformado em ração animal) e 10% também para as plantações de cana-de-açúcar, utilizada na produção de etanol. Ou seja, todo esse veneno agrícola absorvido pela terra e que vai parar nos rios e na água que consumimos, é destinado à exportação e não para alimentar a população.
Fiscalização e Regulação de Agrotóxicos
Este painel teve a participação de representantes das Secretarias de Agricultura do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, abordando as principais ações de controle e fiscalização sobre falsificação, contrabando, comercialização e uso de agrotóxicos nestes estados.
No Rio Grande do Sul, estado onde são consumidos 23 litros de agrotóxicos por habitante, Rafael Friedrich, do Departamento de Defesa Agrícola, afirma que “até a população urbana está exposta à deriva dos agrotóxicos que não atingem o alvo”. Ele relatou casos de contaminação por agrotóxicos em áreas urbanas de Bagé, Santana do Livramento e Dom Pedrito, no sul do estado, muitas vezes a grandes distâncias das áreas pulverizadas. Além disso, o Rio Grande do Sul também vem registrando grande mortandade de abelhas, cuja relação com o uso de agrotóxicos também está comprovada. A Secretaria de Agricultura realiza o acompanhamento destes casos, mas certamente tem essa atividade comprometida pela falta de profissionais para atender a todo estado, de acordo com Friedrich.
O Secretário Adjunto de Agricultura de Santa Catarina, Ricardo Miotto, trouxe dados sobre a comercialização de agrotóxicos em Santa Catarina, mostrando como a questão do receituário agronômico ainda é problemática no estado. Santa Catarina é o 9º consumidor de agrotóxicos no país, comercializando cerca de 25 mil toneladas de veneno por ano, e uma das principais infrações identificadas pela Secretaria/CIDASC é a prescrição de agrotóxicos em desacordo com a legislação. “É preciso ter um trabalho forte com os agricultores, mas também com quem autoriza o uso”, avalia Miotto. De acordo com ele, o receituário agronômico é um documento importante para o controle de uso de agrotóxicos, mas vem sendo tratado com descaso por profissionais que o assinam e também pelos estabelecimentos de comercialização.
Agrotóxicos e Alimentos
Na terça-feira, 26, os alimentos foram o foco do debate. A mesa composta por Dra. Elisabetta Recine, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Brasília, Dr. Renato Zanella, professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Maria e a Dra. Ana Paula Bortoletto Martins, nutricionista e líder do programa de alimentação saudável no Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Sindemia Global foi a expressão destacada pelas pesquisadoras durante o debate. O termo trata da relação entre três pandemias: mudanças climáticas, desnutrição e obesidade. Ou seja, um Sistema Alimentar que prioriza o uso de agrotóxicos, resulta na contaminação do solo, água e ar, provocando as mudanças climáticas. O uso do veneno agrícola também diminui a qualidade nutricional dos alimentos, provocando a má-nutrição. Por fim, a grande quantidade de alimentos destinados a produção de ultraprocessados resulta em altos índices de obesidade.
Pensando nisso, Elisabetta Recine diz que não é efetivo tratar dos Sistemas Alimentares de forma fragmentada: “Quando fragmentamos a compreensão, fragmentamos também os problemas, os culpados e as soluções”, afirma. Ela já foi presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e sugere que as políticas públicas para alimentação sejam construídas de forma coletiva.
A pesquisadora ainda chamou atenção para a mudança de narrativa e de formas de consumo. Segundo ela, a afirmação de que só é possível alimentar essa e as gerações futuras com o uso de agrotóxicos é falsa e é nosso papel também dar visibilidade às práticas que fogem do modelo hegemônico.
A Dra. Ana Paula, do Idec, concorda com Elisabetta e defende o fortalecimento das agendas agroecológicas e de produção orgânica. Ela frisou a importância do acesso à informação confiável e a Educação Alimentar e Nutricional como formas de contrapor o discurso hegemônico do agronegócio e de disputar a narrativa. Ela menciona o Guia Alimentar para a População Brasileira, material educativo e confiável produzido pelo Ministério da Saúde em 2014 e que está disponível gratuitamente on-line para consulta.
Ao final dos dois dias de seminário, a constatação de que a saída é coletiva foi unanimidade entre os palestrantes. Cabe a todos e todas da sociedade civil contribuir com a mudança: não consumir produtos contaminados, se alimentar de orgânicos, estimular o uso de pouco ou nenhum veneno agrícola, comprando de agricultores familiares agroecológicos e cobrar um posicionamento dos governantes são algumas atitudes que nós enquanto consumidores podemos adotar.
Outra solução apontada pela procuradora do Ministério Público do Paraná e membra do Fórum Paranaense contra os Agrotóxicos, Margaret Matos de Carvalho, é a construção de legislações municipais e estaduais pra controle e redução dos agrotóxicos. “Nesta conjuntura complicada em que vivemos, a resistência está nos municípios”, afirma Margaret. Através da realização de audiências públicas no interior do estado e da atuação do Fórum Paranaense de Combate aos Agrotóxicos, foram construídas no Paraná projetos de lei municipais e estaduais para:
– proibir a pulverização aérea de veneno
– inserção de alimentos orgânicos na merenda escolar
– obrigatoriedade de barreiras verdes para áreas pulverizadas com agrotóxicos
– acabar com a isenção fiscal para agrotóxicos
A organização Terra de Direitos publicou uma cartilha com orientações para propor leis de controle e redução de agrotóxicos, que pode ser consultada aqui.