O IV ENA atraiu 40 mil pessoas para o Parque Municipal de Belo Horizonte (MG), onde ocorreram mais de 100 atividades. O evento também promoveu um ato público e um banquete, ofertando uma tonelada de alimentos saudáveis à população


Gilka Resende e Viviane Brochardt¹

Leia a síntese da Carta Política do IV ENA

A Carta Política do IV Encontro Nacional de Agroecologia (IV ENA), formulada a partir da contribuição de 2 mil pessoas inscritas no evento, apresenta denúncias contra a violência do agronegócio e de projetos do grande capital, que exploram a natureza e promovem violações de direitos. Evidencia também lutas e conquistas dos povos que constroem a agroecologia, dos movimentos social e sindical, organizações, redes e articulações da sociedade civil. Experiências territoriais apontam soluções concretas para problemas ambientais, econômicos e sociais no país, dando sentido político ao lema “Agroecologia e Democracia, Unindo Campo e Cidade”.

Banquete ofertou uma tonelada de alimentos. (Foto: Cecília Figueiredo/ANA)

Esta edição do ENA foi a primeira a acontecer em praça pública. A opção sinalizou o empenho do movimento agroecológico em estabelecer diálogos com a sociedade. Entre os dias 31 de maio e 3 de junho, pelo menos 40 mil pessoas visitaram o Parque Municipal de Belo Horizonte (MG), que se transformou em território nacional da agroecologia, reunindo povos de todos os biomas do país (Pampa, Caatinga, Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal), além populações do litoral e de metrópoles. Foram seis plenárias, 16 tendas com instalações artísticas e pedagógicas, 20 seminários e mais de 50 atividades autogestionadas. Houve representantes de organizações e movimentos sociais de 14 países. Também foram promovidas a Feira de Saberes e Sabores, a Feira da Agrobiodiversidade, a Ciranda das Crianças e o Espaço da Saúde, dentre outros locais de convivência entre os participantes do IV ENA e a população da capital mineira.

Dênis Monteiro, da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), diz que o evento evidencia o crescimento do movimento agroecológico no Brasil. Além de demonstrar porque é importante apoiar a agroecologia, ele avalia que a ANA e outras redes regionais saem fortalecidas do IV ENA. “Também ficou muito claro, a partir das vozes dos territórios, o aumento da violência contra as lideranças populares depois do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016. Tivemos oportunidade de denunciar as violações de direitos humanos numa tenda com a presença do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Seguiremos lutando pela restauração da democracia em nosso país”, afirma Dênis. A ANA pretende apresentar a Carta Política do IV ENA às candidaturas dos partidos do campo democrático e popular nas Eleições 2018.

Unidade na diversidade

O ato público unificado da ANA, do Movimento Quem Luta Educa e do Sindicato Único dos Trabalhadores na Educação (SindUTE) percorreu ruas do centro de Belo Horizonte em direção ao Parque Municipal, onde ocorreria logo depois um Banquete Agroecológico Popular. As duas atividades, realizadas no domingo (3), reuniram pelo menos 10 mil pessoas que, em tempos de desabastecimento, puderam se fartar de alimentos saudáveis e de qualidade servidos gratuitamente. Cerca de uma tonelada de comida foi ofertada durante a atividade. “Esta iniciativa já entrou para a história do movimento agroecológico”, ressaltou Dênis.

Foram mais de 100 atividades no Parque Municipal. (Foto: ANA)

“Esse é um banquete da resistência. Ele faz a gente pensar sobre a nossa política alimentar”, disse Patrícia Brito, que integrou a equipe de cozinheiras e cozinheiros que preparou diversas receitas a partir de alimentos que chegaram de delegações de todo o país. “Mais do que alimentar os corpos, o banquete nutriu um diálogo que mostrou a nossa capacidade de produzir comida de verdade em quantidade e qualidade para abastecer a população”, completou.

A Carta Política, inclusive, mencionou a greve dos caminhoneiros, que praticamente parou o país pela interrupção do fornecimento de combustíveis. O documento aponta a “vulnerabilidade e a insustentabilidade do sistema de produção e abastecimento alimentar imposto por um punhado de corporações empresariais”. “A natureza anti-popular e anti-ecológica do modelo que desconecta a produção do consumo alimentar e o campo da cidade foi exposta pela crise de desabastecimento gerada em poucos dias de paralisação. Esse é um sistema de distribuição que depende do transporte a grandes distâncias e do consumo voraz de combustíveis fósseis, fazendo com que os territórios importem cada vez mais o que consomem e exportem cada vez mais o que produzem”, aponta o documento.

Agroecologia: encontro de lutas

Cacique Anália Tuxá. (Foto: ANA/Reprod.)

O IV ENA foi um espaço de compartilhamento de saberes adquiridos ao longo dos inúmeros encontros preparatórios realizados em diversos locais do país. Na Plenária Final, além da Carta Política, foram apresentados documentos específicos das plenárias das mulheres, das juventudes e dos povos indígenas e quilombolas. Mulheres negras e indígenas ocuparam o palco para reforçar o lema “sem feminismo não há agroecologia”, mas dizer também que “se há racismo, não é agroecologia”, uma das mensagens mais fortes do encontro. “Essa palavra de ordem diz justamente que as organizações e movimentos sociais do IV ENA devem traçar estratégias para enfrentamento dessas questões. Enquanto mulher negra ressalto a importância de superação das desigualdades de gênero por meio dos múltiplos feminismos, sobretudo com recorte racial. A agroecologia é instrumento de superação de desigualdades”, afirma Fran Paula de Casto, educadora da FASE.

Ficou evidente que diversas outras lutas são travadas na construção da agroecologia. Apesar de não ter sido promovida uma plenária específica em relação à luta LGBTI, as juventudes do IV ENA fizeram questão de pautar o tema. Dê Silva lembrou que o machismo e o conservadorismo condenam à marginalização e à invisibilidade os sujeitos LGBTI, em especial no meio rural. Forçados a esconder sua sexualidade, muitos acabam migrando para as grandes cidades. “É tempo de escancarar as portas da hipocrisia, abrindo caminhos para uma nova postura, dentro e fora do movimento agroecológico. Que o movimento acolha os sujeitos LGBTI e suas lutas, pois eles também fazem parte da construção de um novo paradigma para o campo brasileiro”, destacou ela, que integra o Grupo de Intercâmbio em Agroecologia (Gias) do Mato Grosso. “Agroecologia e LGBTIfobia não combinam. Qualquer ação que estiver ligada à violência contra as mulheres, ao racismo e à LGBTIfobia não é agroecológica. Por isso, ‘as gay, as bi, as trans, e as sapatão’ estão todas organizadas para construir um projeto agroecológico, feminista, colorido e antirracista”, completou Luiz Filho, da Pastoral da Juventude Rural (PJR) de Pernambuco.

Globalizemos a luta, globalizemos a esperança

As vozes dos territórios mostraram que a agroecologia contribui diretamente para o alcance da soberania e da segurança alimentar e nutricional no Brasil. “As redes territoriais de agroecologia são decisivas na construção da sociedade justa, igualitária e sustentável pela qual lutamos”, destaca outro trecho da Carta Política. Ao mesmo tempo, o documento chamou atenção para os impactos do desmonte neoliberal sobre o Estado Democrático de Direito. Dentre eles, está o aumento da violência e da criminalização das lutas sociais. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 71 assassinatos somente em 2017, um aumento de 15% em relação a 2016. Isso é mais que o dobro dos registros feitos em 2013, sendo o maior número desde 2003.

(Foto: ANA/Reprod.)

“Fico triste de ver tanta negação de direitos dos povos indígenas e quilombolas em pleno 2018. Ao mesmo tempo, fico feliz de encontrar aqui esses e outros povos. É minha primeira vez no ENA. Levo para o meu povo uma mala de conhecimentos. A Mãe Terra está ficando que nem roupa velha. É tempo de unir e lutar por ela. O país vive a maldição dos deuxins [golpistas]. O momento é de conscientização, de amar uns aos outros, de se alimentar do melhor da terra, sem agrotóxicos”, concluiu Anália Tuxá, cacique da Aldeia Tuxá Setsor Bragagá, Buritizeiro (MG), uma das 38 etnias indígenas presentes no IV ENA.Enquanto acontecia o IV ENA, por exemplo, Katison de Souza, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foi assassinado em uma estrada de terra em Santa Izabel (PA). O militante vinha recebendo ameaças desde o ano passado. “Katison, presente!”, gritou a plateia na Plenária Final do IV ENA, que também homenageou Osvalinda e Daniel Pereira, casal do município Trairão (PA). Recentemente, ao saírem para colher maracujá, deram de cara com duas covas e cruzes cravadas no quintal. “Eles estão ameaçados por quem defende a morte e não quer a agroecologia. O ENA, ao prestar essa homenagem, está se solidarizando com todas as pessoas que constroem a agroecologia e estão, nesse momento, sofrendo ameaças”, disse Darci Frigo, da organização Terra de Direitos.

[1] Comunicadoras da FASE e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), respectivamente.