Há anos, o agronegócio vem tentando se instalar no lado potiguar da Chapada do Apodi a partir do projeto de perímetro irrigado. A partir da resistência das famílias e organizações sociais e sindicais que trabalham com agricultura familiar no território, o projeto não foi implementando como previsto, mas as empresas de monocultivos de frutas para exportação estão em ação através da exploração das águas subterrâneas fora da área do perímetro, através da escavação de poços profundos.
As obras que permitirão a irrigação a partir das águas da barragem de Santa Cruz estão paradas por uma determinação judicial até que o Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS), ligado ao Ministério da Integração Social, responsável pelo projeto, refaça o relatório de impacto social e ambiental. No lado cearense da Chapada, as famílias já sofrem com o processo de desterritorialização a partir da implementação do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi.
A água subterrânea usada pelo agronegócio pertence ao aquífero Jandaíra, um dos maiores mananciais de água do Rio Grande do Norte, responsável inclusive pelo abastecimento da capital. De acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi, Agnaldo Fernandes, o uso desenfreado e sem controle desse recurso pode gerar um rebaixamento do lençol freático atingindo diretamente 600 famílias assentadas que podem ficar sem água. De forma indireta, o sindicalista afirma que duas mil pessoas serão afetadas. Há também um risco alto de contaminação da água pelo uso intensivo de veneno usado nos monocultivos.
A conjuntura antidemocrática e a diminuição nos investimentos de recursos públicos em políticas voltadas para o campo, como o Pronaf e as tecnologias de captação de água de chuva têm favorecido o avanço do agronegócio no território e, consequentemente, o aumento da violência e o êxodo rural. “A sucessão rural vinha num processo que garantia os povos no campo, os filhos dos agricultores casando, constituindo família naquele território e isso gera uma demanda [por cisternas], mas se as políticas não chegam, o pessoal não tem outra oportunidade a não ser trabalhar para essas empresas como mão de obra escrava”, denuncia Fernandes.
Entre as várias formas de resistência ao projeto do DNOCS, conhecido como Projeto da Morte, as mulheres têm tido um papel fundamental. São elas que estão à frente das lutas seja através dos seus quintais produtivos e de geração de renda, seja através de ações diretas como o fechamento dos portões para que as empresas não se instalem no território; com as mobilizações no dia 8 de março e até ações no âmbito internacional como a campanha 24 horas de Ação Feminista “Somos todas Apodi”, junto à Marcha Mundial das Mulheres, em 2012.
A apicultora e assentada da reforma agrária, Francisca Eliane de Lima, mais conhecida como Neneide, vivencia cotidianamente essa luta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres e coordenadora da Rede Xique Xique, ela explica o papel das mulheres no processo de resistência na Chapada do Apodi: “Nós, mulheres, quando chegamos no território a gente já demarca o nosso espaço que é o espaço de plantar, que é o espaço do quintal, de sobreviver daquilo ali, das relações com os vizinhos, das relações comunitárias. Como somos nós que temos a necessidade do uso das águas, de deixar o filho na escola, de necessitar dos vizinhos, dessa história das relações de troca, então somos nós que fazemos com que essas relações sejam relações de sobrevivência, de resistência, que as pessoas não reconhecem como político, mas que finda a gente fazendo. Então o nosso papel é esse de fortalecer essa história da resistência seja do social, no político e no econômico”.
Em outro território do Semiárido, na Borborema (PB), a auto-organização das mulheres também tem contribuído com as lutas e conquistas do território. Roselita Victor, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio e membro da Coordenação do Polo Sindical da Borborema, explica que as trocas de experiências foram fundamentais para reconhecer o papel das mulheres e construir novas relações sociais baseadas na igualdade de direitos.
“A agroecologia possibilitou a gente discutir umas das questões que até então era invisível e desumana, que era a situação da vida das mulheres e da juventude. Quando a gente começou a trocar experiências agroecológicas, passamos a enxergar que as mulheres eram invisíveis nos seus papéis; que a origem do patriarcado e do machismo também estavam enraizados, inclusive, em algumas experiências que são comunitárias. Então eram questões que talvez no modelo do agronegócio, que pensa apenas no capital e no lucro, essa dimensão da qualidade de vida desses sujeitos não seria um elemento forte de debate”, contextualiza Roselita.
A história da luta camponesa na Borborema tem como um dos principais símbolos Margarida Alves, que foi a primeira presidente mulher de um sindicato de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Hoje várias mulheres comandam os sindicatos rurais e estão à frente das ações do Polo da Borborema, uma articulação de 14 sindicatos e aproximadamente 150 associações comunitárias que mobilizam mais de 5 mil famílias agricultoras em torno da agroecologia na região da Borborema, no Agreste Paraibano.
Uma das principais conquistas do Polo da Borborema é a realização da Marcha das Mulheres pela Vida e pela Agroecologia que todos os anos debate questões do dia a dia da vida das mulheres. Já são nove edições da Marcha e todos os anos o evento têm conseguido visibilizar e denunciar um dos grandes desafios da região que é a violência contra as mulheres. Outros avanços são as políticas de acesso à água, com a instalação de mais de 12 mil cisternas de água para consumo humano e mais de três mil cisternas para produção de alimentos.
“Isso são lutas da rede de agricultores e agricultoras com outras redes como a Articulação Semiárido Paraibano e a Articulação Semiárido Brasileiro, onde o papel dos agricultores tem uma importância fundamental. Se a gente não organiza essas redes em torno de um planejamento e de troca de conhecimento, a gente não teria a força política e organizativa que precisamos para poder fortalecer esse projeto”, destaca a sindicalista.
ENA – As histórias da Chapada do Apodi (RN) e do Polo da Borborema (PB) são dois dos seis territórios agroecológicos do Semiárido Brasileiro que serão apresentados no IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que acontecerá de 31 de maio a 03 de junho, em Belo Horizonte (MG). Os demais territórios são os Sertões do Pajeú (PE), do Araripe (PE), do São Francisco (BA) e também o Norte de Minas, que também terão suas histórias de construção da agroecologia contadas no site da ASA Brasil.
Durante o IV ENA, haverá apresentações e debates sobre as principais lutas e conquistas a partir da organização das redes agroecológicas nos territórios e do reforço da resistência às investidas do agronegócio e da construção de políticas públicas adequadas para a agricultura agroecológica.
Para que o IV ENA aconteça, há um processo intenso de preparação dos territórios rurais de todas regiões do país. Segundo Roselita, um dos aprendizados do processo preparatório na Paraíba foi a possibilidade de atualizar as leituras sobre o próprio território de forma coletiva, envolvendo outros atores sociais. “Como a gente constrói essa leitura coletiva com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], com o MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], como a CPT [Comissão Pastoral da Terra], com outros atores que estão no território e de entender que a nossa luta é coletiva, que a gente pode se somar nesse processo. E muito mais nessa conjuntura antidemocrática e que exige a capacidade dos movimentos de se juntarem para a gente enfrentar essa conjuntura de opressão”, disse.
No Rio Grande do Norte, Neneide destacou a importância do debate entre o campo e cidade a partir do lema do ENA: Agroecologia e democracia unindo campo e cidade. “Eu acho que a própria discussão do ERÊ [Encontro da Região Nordeste preparatória para o encontro nacional] e a discussão que a gente fez aqui no estado em torno desse tema fez a gente refletir que a agroecologia não é simplesmente uma forma de produzir diferente, mas uma forma de olhar a sociedade diferente principalmente nesse contexto de retrocessos”.