Intelectuais do campo progressista defenderam na última sexta-feira (17) a volta do Ministério do Desenvolvimento Agrário e apontaram diversos retrocessos realizados pelo governo interino de Michel Temer. O debate “A Conjuntura Política Atual: dilemas e perspectivas dos setores agrário e agrícola”, promovido pelo Programa de Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRJ) ocorreu no Ocupa Minc, ocupação de movimentos sociais no Palácio Capanema, no Centro do Rio de Janeiro.
Para contextualizar o cenário atual, o professor Renato Maluf, do CPDA/UFRRJ, iniciou o debate lembrando que a dimensão econômica do que está se passando vem desde 2008 com a crise mundial e, embora tenham ocorrido ações equivocadas do governo Dilma, tem fortes aspectos externos ao país. Os componentes internos são graves, porém superdimensionados, acrescentou. Há razões de gestão orçamentária e fiscal, mas o aspecto político também tem forte influência e não é citado, disse Maluf.
“Os próprios capitalistas retraíram seus investimentos alegando incerteza do cenário. Todas as categorias tiveram ganhos nos últimos anos, segundo o Dieese, embora o pleno emprego signifique mais lucro para os capitalistas eles não gostam. Então havia um componente político que comprometeu um pouco mais o quadro, e a presidente Dilma tentou várias vezes um diálogo inócuo com o empresariado e o capital financeiro em nome da governabilidade. Teve concessões fiscais, a nomeação do [Joaquim] Levy na [Ministério da] Fazenda, mas as tentativas de dialogar com o capital foram inócuas. Voltamos então a enfrentar um cenário de desemprego, que é o dado fundamental que está por baixo”, afirmou.
A progressiva dificuldade de governabilidade com o Congresso mais conservador das últimas décadas foi outro fator apontado pelo professor. Ele foi enfático ao dizer que o processo de impeachment foi um golpe de fundamentação frágil e facilmente desvendável. “Esse espetáculo em que dia após dias as pessoas se traem e caem representantes do ministério de um presidente inclusive sob suspeita. Tem quadros absolutamente preocupantes como o [Henrique] Meireles e o [José] Serra, que desmontam e promovem o retrocesso. Na dimensão política e ideológica, o preocupante é o debate sobre políticas sociais. Assim como os rumos da política econômica com uma pretensão não apenas conservadora, mas também agressiva com o desmonte de componentes fundamentais”, concluiu.
Na questão rural, o contexto não está trazendo mudança significativa para o modelo hegemônico do agronegócio porque este nunca esteve em questão nos governos do PT. Sempre recebeu apoio e continuará recebendo na produção de grande escala, mas a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário é simbólica, acrescentou Maluf, ao observar que estão querendo apagar a divisão dos ministérios para a agricultura. “Querem dar uma só direção com a especialização produtiva em grande escala, agrotóxicos, transgênicos, etc. Houve um documento escrito por acadêmicos intelectuais orgânicos do agronegócio e outro dos ruralistas extremamente preocupantes”, finalizou.
Esses documentos foram analisados por Clóvis Caribé, da UEFS. “A economia brasileira: o que fazer?” é um deles, e argumenta que todos com pensamento diferente ao dos seus autores têm incapacidade de ver que a agropecuária brasileira mudou. A tese apresentada, segundo o pesquisador, traz um processo de radicalidade para, dentre outras coisas, liderar uma estratégia de desenvolvimento rural para ser posta em execução em 2017. “Querem desmontar tudo o que há e agir: produção e comércio, estado e políticas para as regiões, e a nova forma da questão social mudando essa discussão dos dois ministérios, além de ações de médio prazo e urgentes nas legislações trabalhistas para o campo”, disse.
No jornal Valor Econômico, o atual ministro da agricultura, Blairo Maggi, disse que essas propostas são corretas e devem ser executadas em pouco tempo, como tirar as travas para a venda de terras para estrangeiros no Brasil. Nenhum ministro das relações exteriores entrou nesse debate com tanta clareza nos últimos anos como o José Serra, complementou. “Isso entrou na mídia sistematicamente. A discussão também com o ministro das minas e energias, Fernando Coelho, sobre a necessidade de se quebrar todas as interferências no novo código mineral do país. Notícias ainda sobre a primeira audiência do Temer depois da posse, que foi com o agronegócio para uma série de situações com mudança da legislação trabalhista e da cédula do produto rural”, destacou.
Querem criar um sistema semelhante ao financiamento imobiliário, como o Minha Casa Minha Vida, além de subsídios e um fundo para o agronegócio. Querem ainda a paridade de custo nos cartórios que formalizam as operações de crédito. Para tratar das questões rurais foi nomeado o ex-integrante do MST, José Rainha, como assessor do Planalto. “Vivemos uma conjuntura sem capacidade de ação, teve a medida para o fim da Ater que interfere no PAA, PNAE, etc, com o cancelamento de vários contratos. Sabem o que estão fazendo ao tirar o ministério com forte atuação, e rompendo as relações no nordeste que deu mais voto ao PT. Isso para eles é custo para o Estado, é um golpe institucional, parlamentar e constitucional”, encerrou.
Segurança Alimentar e meio ambiente
A escolha do local do debate num espaço que representa a cultura foi muito acertada, segundo a presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar E Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco, pois além de ser um local de resistência dos movimentos a agricultura é indissociável da cultura e faz intercâmbio com outros setores. Segundo ela, vivemos um período de permanente violações de direitos e retrocessos através de iniciativas que transferem o dever do Estado para o mercado.
“A história das populações se constrói em interação com a natureza. Quando falamos de agronegócio estamos falando de uma maneira de tratar a natureza contra ela. O princípio da revolução verde com mudanças que mantiveram a estrutura fundiária conservadora, insumos químicos, maquinaria pesada, que não têm nada a ver com nossos solos e a grandiosidade de diversidade de biomas. Falar de agricultura significa defender uma agricultura de outras bases e contestarmos essa orientação da revolução verde”, sentenciou.
As implicações do modelo hegemônico, em sua opinião, são fortes na alimentação contemporânea por causa da indústria alimentar cada vez menos variada. O conceito de segurança alimentar, nesse sentido, dialoga com a questão cultural do direito não só do acesso aos alimentos como também em relação à qualidade destes. A inserção do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nesse processo tem contribuído na defesa da diversidade alimentar. “Os artigos 215 e 216 ampliam o conceito de patrimônio para os aspectos imateriais, como a cultura alimentar. Na nossa oposição ao agronegócio, falamos de sistemas e não de cadeia de produção. Há em curso desconstruções e uma desestruturação das políticas culturais tem implicações na produção agrícola de base agroecológica”, alertou.
A questão ambiental também é fundamental ao tratar da questão agrícola ou agrária. E o processo de desregulamentação em curso vai acentuar ainda mais as contradições e dilemas do governo do PT nesse aspecto, disse Pacheco. “Não tem dilemas para o agronegócio que continua cada vez mais hegemônico, mas nessa questão ambiental tem um avanço nítido do neoliberalismo com a mudança do que significa a tutela ambiental. O artigo 225 como ambiente de bem comum está em desconstrução. No governo Dilma já tinha violações de direitos, mas tinha espaços de diálogos que serão fechados. O decreto de participação social foi suprimido no Congresso”, criticou.
A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário também preocupa a antropóloga. “Significa acabar com a possibilidade de inovações e estímulos da produção da agricultura familiar, e da defesa das linhas de crédito não ligadas aos insumos químicos e de acordo com as características regionais. Muitos programas em curso com um significado importante estão ameaçados. Uma criminalização crescente dos movimentos, os conflitos do campo vêm aumentando segundo estudos da CPT. A concentração de terras e a exploração mineral do Brasil cresceram em demasia, a privatização da natureza e dos conhecimentos daqueles que convivem com ela”, alertou.
Os indígenas foram apontados como fundamentais para a convivência com o meio ambiente. Também destacando a importância da escolha do local, a indígena Cristiane Julião, da etnia Pankararu, mestre em antropologia no Museu Nacional (UFRJ), reforçou que a terra para os índios não é simplesmente um espaço físico: é sustentabilidade, cultura, saúde, educação e agroecologia. Não se trata de apenas um pedaço de terra para produzi alimentos, pois os rios e florestas que estão sendo privatizados com as hidrelétricas são suas vidas.
“Tem o código florestal e a lei da biodiversidade que não compete a nós discutir o que é direito. A PEC 215 que traz um apanhado de projetos contra as populações tradicionais, desmembra o licenciamento ambiental, e nos coloca como outro progresso. Se lutar pela floresta, os ecossistemas, a biodiversidade, é contra o progresso: somos. Vivemos conflitos desde 1500, simplesmente resistimos e queremos o direito de viver no que é nosso. Nessa semana aconteceu mais um massacre no Mato Grosso do Sul, brigar pelo nosso território é a nossa vida. Se tiver que invadir o Congresso de novo a gente invade, e vai ao confronto contra a polícia sim. Estamos sendo massacrados e sucumbidos”, destacou.