Durante a Caravana Agroecológica e Cultural do Araripe, realizada entre os dias 25 e 27 de fevereiro, em Ouricuri (PE), conversamos com Cristina Nascimento, coordenadora do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra) e da coordenação executiva da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). Na ocasião, foram apresentados estudos socioeconômicos territórios da região e debatidos métodos de assessoria técnica e extensão rural à agricultura familiar.
Na entrevista, Cristina fala sobre os cortes de recursos nos projetos da ASA, a importância de formas de prestar assessoria técnica à agricultura familiar com um olhar diferenciado e seus principais desafios, além luta das mulheres no campo. Para ela, é preciso pautar o governo para as políticas públicas se adequarem à realidade dos pequenos agricultores e agricultoras.
Ocorreram cortes na equipe e projetos da ASA em 2015, como estão atualmente?
Fechamos 2015 com uma baixa no desembolso de recursos sem novos contratos no ano, mas finalizamos fazendo aditivos para continuar a ação. Então a ASA mantém-se num ritmo abaixo do que executamos, e estamos ainda dialogando com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para a construção de 2016. Estamos preocupados, até porque o orçamento aprovado foi muito abaixo do que historicamente era. As cisternas, por exemplo, passou dos R$ 700 milhões para R$ 150 milhões. Então, isso nos criou certa expectativa de como vai ser trabalhado.
Vai depender também do nosso processo de mobilização e articulação. Mas o programa de 2015 está em novo contrato do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), mas ainda não chegamos a construir todas as metas e estamos aguardando o orçamento. A Cisterna nas Escolas a gente teve uma etapa e um diálogo com o governo na perspectiva da continuidade em 2016. E o Programa de Sementes está na execução até maio, porque tivemos um aditivo e 2016 é um ano ainda de incerteza para nós. Não tivemos ainda nenhuma definição clara com o governo. Tínhamos provocado ele nos chamou para uma reunião no início do ano, que acabou sendo mais discutido o orçamento de 2015 ainda. Nossa primeira reunião da coordenação da ASA será em março, então daqui para lá a gente vai definindo e com certeza entrará nossa pauta de 2016.
Estamos num evento de apresentação de estudos com um método diferente de prestar Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). Como vocês estão trabalhando este tema e como vêem esse tipo de iniciativa?
Aqui no nordeste temos uma rede de organizações, chamada Rede Ater Nordeste, que já vem trabalhando há mais de 10 anos essa ideia de agroecossistemas e busca entender a perspectiva da visão sistêmica. Isso tem contribuído na nossa ação metodológica, e esse estudo vem fortalecer cada vez mais essa estratégia. A ASA, também a partir do P1+2, trouxe ao debate a questão da assessoria técnica para as famílias que recebem a segunda água. Temos pautado isso com o governo, e essa pesquisa revela caminhos metodológicos importantes para podermos aprimorar o processo. Também já traz indicadores de como é a ação, por exemplo, com uma família que tem uma cisterna calçadão, a primeira água, um barreiro, e como que é a mudança efetivamente disso na trajetória dessas famílias: na geração de renda, de vida mais sustentável. Então, essa pesquisa reafirma o que temos construído na região com as estratégias de convivência com o semiárido.
Quais são os principais desafios e avanços que a Ater proporciona?
Tivemos no final do ano passado um seminário nacional de avaliação dos 10 anos do Plano Nacional de Ater. Há um balanço importante, a Ater voltou para a pauta do Brasil, do governo, tivemos a Lei de Ater, que foi importante para a sociedade civil com a conquista das chamadas públicas. Poder participar, concorrer e executar ação de Ater pública para a gente foi extraordinário. Mas temos grandes desafios no âmbito do financiamento da Ater, porque ainda não está claro. E ainda tem a ANATER (Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural), que não se consolidou como agência mesmo. A política pública avançou, inclusive incorporando algumas dessas dimensões metodológicas, mas ainda precisamos ampliar para dentro dela métodos que realmente sejam participativos e tragam as experiências dos agricultores e agricultoras. Ainda existe hegemonicamente uma visão de assistência técnica que leva o saber, então esse ainda é um desafio grande que precisamos estar pautando e dialogando. Haverá a Conferência Nacional de Ater, a gente espera que seja um espaço para denunciar a falta de financiamento e serviços às vezes prestados sem continuidade. Mas também será um espaço de debater o caminho que queremos para a Ater no Brasil. A agroecologia como referência, as metodologias de trabalho, os agricultores como protagonistas do processo de construção do conhecimento.
A Ater não é algo somente em cima da agricultura em si, abrange outros aspectos?
Por isso que esses estudos aqui apresentados nos levam a olhar o agroecossistema, a unidade familiar, na sua totalidade. É olhar para a família, a agricultura, as atividades não agrícolas, tipo o artesanato que é uma característica muito forte da região nordeste. As mulheres no Ceará, por exemplo, fazem na região mais praiana renda de birro no cotidiano. É uma renda a mais, a história mesmo de costureira, criações de animais, um pequeno comércio, etc. Então como enxergamos isso como processo todo daquela unidade familiar, como a gente chega numa família e não vai lá achando que é assistência técnica para a horta ou roçado. Ver tudo isso, inclusive como é que se dá a relação homem e mulher na divisão do trabalho. É um chamado para a Ater ter um olhar sistêmico, do todo e não da parte. Na linha das cadeias produtivas, por exemplo, às vezes olham de forma tão linear que não vêem o que a família está gerando de auto consumo. Então é sair dessa forma linear e de cima para abaixo, para a visão holística que envolve toda a ação que essa família desenvolve.
Um indicador que saiu muito nesses estudos foi o da questão da desigualdade de gênero. Quais são as principais pautas e como vocês têm trabalhado esse tema?
Teve um marco importante na 1ª Conferência de Ater, que foi a conquista de 50% do público atendido por esse serviço ser de mulheres. E nas Chamadas Públicas de Agroecologia também foi garantido que 30% do recurso seja para ações específicas com mulheres. No arranjo da política temos conseguido estabelecer algumas possibilidades que tragam essas mulheres para a centralidade. Porque essa mesma assistência técnica que hoje tem esse recorte era direcionada para a família, que geralmente é representada pelo homem. Tem a questão da DAP (Declaração de Aptidão ao PRONAF) também, são instrumentos que precisam ser revistos porque precisam acompanhar a atualidade. A DAP é do início do PRONAF, inclusive isso sempre sai na Conferência Nacional, mas mesmo com esses arranjos a gente não conseguiu efetivamente. Claro que é algo histórico e não dá para quebrar de uma hora para outra, mas quando a gente vai para uma unidade que já viemos trabalhando ainda sentimos muito a falta da fala das mulheres e da juventude. É um processo mais lento, mas precisamos estar reafirmando essas ações com as mulheres para que elas consigam ter sua voz e expressão com autonomia. Há um longo caminho, que ainda é muito desafiador na vida real.
Tem muita coisa também entre o espaço público e o privado domiciliar, né?
Também, ainda se torna extraordinário quando você chega numa área em que uma mulher é quem lidera. Acontece, mas quando você consegue visibilizar não consegue ver isso. Então precisa avançar muito mais do que conseguimos até agora.
Tem mais algo a destacar que não foi pautado?
Destacar a importância da caravana trazendo esse estudo, e dialogando com vários sujeitos. Mesmo sendo uma ação direta da ANA, é uma ação que dialoga com os sindicatos, os movimentos sociais e organizações, além do próprio governo. É com momentos desse que a gente vai conseguindo fazer incidência maior, que tenha impacto nas políticas públicas. As organizações podem até ter um projeto pontual, que trabalha isso, mas é importantíssimo que na perspectiva de universalização ou de atingir um número maior de pessoas seja através da política pública. Não podemos abrir mão das políticas públicas para agricultura familiar e, especialmente, para a agroecologia.