Marquito no lançamento do programa Moradia Urbaba com Tecnologia Social, da FBB

Marquito no lançamento do programa Moradia Urbaba com Tecnologia Social, da FBB/Cepagro.

Como uma experiência exitosa de tratamento de resíduos, que atinge a todos, pode ser replicada a partir de um bairro para as grandes metrópoles? A Revolução dos Baldinhos, projeto realizado em Santa Catarina, busca algumas respostas para esse questionamento. Promovida pelo Cepagro (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo), está sendo ampliada para outros bairros catarinenses e começando a dialogar com as políticas públicas, como o programa federal Minha Casa Minha Vida.

Para entender melhor sua origem e funcionamento, conversamos com Marcos José de Abreu, o Marquito, mestre em agroecossistemas e coordenador dos Projetos Urbanos do Cepagro. Na entrevista, ele fala sobre a eficiência do modelo de gestão descentralizado, além da importância ambiental e econômica de se reutilizar os resíduos orgânicos. A entrevista foi realizada durante o I Encontro Nacional de Agricultura Urbana, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em meados de outubro.

De acordo com o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, são coletados no Brasil cerca de 1,1kg lixo por pessoa a cada dia. Sendo que aproximadamente 51,4%, segundo estudos de 2012 do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), são orgânicos derivados das sobras de comida, podas de árvores, dentre outros resíduos orgânicos produzidos nas cidades. Em 2014 foram coletadas e aterradas 191.841 toneladas de resíduos sólidos em Florianópolis (COMCAP, 2014), o que representou um custo anual de aproximadamente R$ 24.993.045,48. Considerando que, no mínimo, 28% do total desses resíduos sólidos são matéria orgânica compostável, pode ser estimado que foram gastos R$ 6.998.052,73 em 2014 para aterrá-los. Todo o recurso poderia ter sido reinvestido em políticas públicas para melhoria da cidade.

Na tarde de ontem (17/11) foi inaugurado o pátio piloto do projeto Feiras e Jardins Sustentáveis, na Subprefeitura da Lapa, na capital paulista, com apoio do Cepagro. A área de três mil metros quadrados recebe, desde setembro, cerca de 35 toneladas semanais de resíduos orgânicos coletados em 26 feiras da região. O primeiro lote de adubos ficará pronto em dezembro, e será utilizado nos jardins de praças públicas. A expectativa é de que até agosto de 2016 o bairro sirva de referência para outros pátios e quatro centrais de compostagem, cada uma com capacidade para processar 50 toneladas de lixo, que a prefeitura pretende implantar na cidade no próximo ano. A meta da gestão do prefeito Fernando Haddad é realizar esse serviço nas 900 feiras de São Paulo e nos serviços de poda.

Por que em Santa Catarina e quais circunstâncias geraram o projeto Revolução dos Baldinhos?

A Revolução dos Baldinhos é um modelo de gestão comunitária de resíduos orgânicos e agricultura urbana, que acontece no bairro Monte Cristo, na região continental de Florianópolis, em Santa Catarina. Surgiu por causa de uma epidemia de ratos numa agricultura urbana em 2008. Teve mortes e ataques, até que um médico da família super sensível chamou uma reunião para resolver. Explicou o ciclo de vida do rato, e anunciou que não dava para só desratizar: tem que tirar a comida do animal. É uma ação super agroecológica porque ao invés de ter uma ação paliativa ou medicamental tem prevenção, pois ao retirar a comida faz uma espécie de controle biológico.

Formação em Gestão Comunitária de Resíduos Orgânicos do Cepagro. Foto: Arquivo Cepagro

Formação em Gestão Comunitária de Resíduos Orgânicos do Cepagro. Foto: Arquivo Cepagro

A ideia era cada família ter o seu baldinho e recolher os seus orgânicos para, até o caminhão vir buscar o seu lixo na rua, não ficar tudo espalhado e servir de foco de ratos. Em 2009 começamos a coleta com um grupo que a sensibilizou as famílias e implantou Pontos de Entrega Voluntária (PEVs). A família leva seu baldinho para a rua, deposita no tambor que é coletado toda terça e sexta por um grupo comunitário de jovens que está formalizando uma associação. Começou com cinco famílias e são mais de duzentas, mais de cinqüenta PEVs com um volume de aproximadamente 15 toneladas por mês de resíduo orgânico transformado em adubo. Parte desse adubo retorna às casas na agricultura urbana, na horta escolar ou comunitária, e outra parte é peneirada e comercializada.

Hoje em Florianópolis tem outras comunidades implantando, como o Rio Vermelho e o Maciço do Morro da Cruz, e há pouco tempo recebemos o prêmio de tecnologia social da Fundação Banco do Brasil, que vai replicar a Revolução dos Baldinhos através dos programas Minha Casa Minha Vida. Sendo escolhida como uma das tecnologias sociais entre os 124 empreendimentos financiados pelo Banco do Brasil, o Cepagro junto a Associação vai fazer uma capacitação no conjunto habitacional entregue aos moradores.

Sempre foi uma iniciativa do Cepagro, nunca houve diálogo com o poder público no sentido de políticas nessa perspectiva?

Sempre foi uma iniciativa do Cepagro e hoje acontece em parceria com a Comcap (Companhia de Melhoramentos da Capital), que é a autarquia mista que faz a limpeza pública de Florianópolis. A gente vê isso como um modelo da gestão descentralizada de resíduos, não faz sentido nenhum enterrar nosso lixo. Tem que sair da cidade cerca de 60km para enterrar e virar um nada, sendo que podemos tratar localmente esse resíduo orgânico e transformá-lo em adubo. Mais de 50% do nosso resíduo é orgânico.

Se é aparentemente um modelo tão racional, quais as barreiras para não ganhar escala? Há disputa política e ou econômica?

A gestão descentralizada é muito simples, barata, vai gerar trabalho e renda para muito mais gente. Temos uma Política Nacional de Resíduos Sólidos regulamentada por uma lei nacional que prevê o tratamento de orgânicos para compostagem prioritariamente, mas temos um modelo instituído de centralização da gestão dos resíduos: aterros, lixões, incineradores, etc. Estão nas mãos de grandes grupos empresariais e esse é o problema, porque é uma grande fonte de renda e recursos. A gestão de resíduos e a limpeza pública nas cidades estão sempre entre os três gastos públicos municipais, imagina o que isso significa. Então desconstruir esse modelo centralizado na mão de grandes empresas numa gestão comunitária, transformando o orgânico a partir de uma coleta seletiva em adubo para uma prática agroecológica é um ato revolucionário. É simples e possível, só que tem esses jogo de interesses.

Temos que nos pautar pela Política de Agroecologia e pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, além disso o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), na sua Instrução Normativa IN 25/2012, que fala sobre fertilizantes orgânicos, também tem que rever a questão do composto orgânico a partir dos resíduos sólidos urbanos, do lixo domiciliar. Quando é separado na fonte, na coleta seletiva, tem alta qualidade e pode ser considerado como classe A e não como C que inviabiliza para o uso agrícola, especialmente das olerículas. Então temos marcos regulatórios para ajustar, e a sociedade precisa conhecer esse sistema e entender que lixo não é um problema e sim recurso. Podemos ter um modelo de tratamento do lixo para recolocá-lo no ciclo produtivo e da vida.

Compostagem em uma zona de uso intensivo de uma Unidade de Conservação, o Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho. Foto: Arquivo Cepagro.

Compostagem em uma zona de uso intensivo de uma Unidade de Conservação, o Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho. Foto: Arquivo Cepagro.

Mas essa é uma solução só para parte do lixo, certo? Sua dinâmica e logística não exclui totalmente outras formas…

São muitos resíduos orgânicos (domiciliar urbano, roçada, varrição de folhas e gramas na cidade, poda urbana, resíduo de restaurante, supermercado, lanchonete, sacolão, ceasas, etc) que são desperdiçados e enterrados no aterro ou no lixão. Mas quando a gente faz uma gestão de resíduos baseada na separação na fonte muda completamente, porque quando tira o orgânico sobra o reciclável seco e o rejeito. É muito mais fácil de fazer uma triagem quando você tira aquilo que suja e lambuza, dá rato e mal cheiro, então o modelo de gestão de resíduos baseado na valorização da fração orgânica e transformação dele em composto pode mudar todo o sistema de coleta. Precisa de sistemas adaptados para isso, caminhões menores, coleta seletiva, maior educação ambiental, investimento. O investimento no aterro e no lixão é gigantesco, com ele faria um sistema completamente descentralizado com muito mais qualidade. Apenas o rejeito, que representa entre 20 e 25% do nosso resíduo, é que seria enterrado ou feito reaproveitamento energético.

Esse modelo criado em pequena escala num bairro de um estado pequeno é aplicável em grandes metrópoles densamente povoadas?

O modelo de gestão comunitária de resíduos, a Revolução dos Baldinhos, é viável para qualquer cidade só que não vai salvar sozinho. É uma das soluções, o trabalho com a compostagem doméstica, minhocários, pátios e centrais de compostagens, compostagens institucionais, escolas, creches, etc. Resumindo, com sistemas diversificados, descentralizados, é possível dar conta do resíduo orgânico de todas as cidades e cada uma delas vai adaptar à sua situação. Mesmo Florianópolis sendo uma cidade pequena, com 400 mil habitantes, esse bairro tem adensamento como Rio de Janeiro e São Paulo. Era uma ocupação e foi reurbanizada, tudo isso tem características de realidades muito presentes em todo Brasil. Mas não é a solução que vai resolver o problema, é um dos modelos que tem de estar em conjunto com vários outros. Essa é a nossa percepção do sistema, e levar a visão da agroecologia para a gestão de resíduos. Não é tratamento de lixo: é transformar resíduo em recurso para o ciclo da vida e produtivo.