Por Juliana Dias, editora do site Malagueta
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) elegeu 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Sua finalidade é contribuir para reposicionar esse modelo de produção no centro das políticas públicas agrícolas, ambientais e sociais das agendas nacionais. Também se propõe a identificar lacunas e oportunidades para “promover uma mudança mais equitativa e equilibrada”. No dia 16 de outubro é comemorado o Dia Mundial da Alimentação, promovido pela mesma entidade, com o tema “Alimentar o mundo, cuidar do planeta”. Essas duas datas comemorativas são oportunas para colocar em pauta a relação intrínseca entre o modo de produção agrícola e a Segurança e Soberania Alimentar.
A agricultura moderna posiciona-se no centro do cenário da crise ecológica mundial, num duplo papel de algoz e vítima . De acordo com Paulo Petersen, coordenador-executivo da AS-PTA, organização que atua no fortalecimento da agricultura familiar e agroecologia há 30 anos, essa dualidade explica-se pela fato de que a monocultura industrializada e os mercados agroalimentares estão entre as principais atividades geradoras da degradação ambiental e das mudanças climáticas mas, ao mesmo tempo, são vulneráveis aos efeitos do uso indiscriminado dos recursos naturais.
A ambiguidade do sistema industrial de produção também pode ser observada nos resultados sociais e econômicos da crise em curso. O relatório O Estado de Insegurança Alimentar no Mundo (SOFI, sigla em inglês), divulgado pela FAO em setembro, informa que existem 805 milhões de pessoas com fome no planeta. Petersen salienta que o número de famintos e subnutridos iguala-se ao de pessoas sujeitas à epidemia de sobrepeso e obesidade – que muito frequentemente acompanha a subnutrição. A insegurança alimentar é o elo mais evidente na articulação entre a crise econômico-social e a crise ecológico-climática.
Essa análise do coordenador da AS-PTA soma-se aos dados do sociólogo Jean Ziegler ao informar que a produção alimentar atual já é suficiente para alimentar cerca de 20 bilhões de pessoas num planeta com sete bilhões de habitantes. Para Petersen, o paradoxo da fome e da abundância indica “a existência de uma única crise, de caráter sistêmico complexo e multidimensional”.
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A produção agrícola local, de base familiar, é o elo vital na conexão campo-cidade devido à capacidade de ampliar o acesso ao alimento de qualidade e em quantidade; preservar a cultura; e promover o desenvolvimento ambiental, social e econômico. O documento SOFI demonstra qual modelo tem sido mais eficiente no enfrentamento dos desafios contemporâneos. O Brasil é apontado como referência no combate à fome e se destaca a importante contribuição da Agricultura Familiar para essa realidade. O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Daniel Balaban, ressalta que 70% do consumo interno do país é proveniente dos pequenos agricultores. Ele afirma que esses trabalhadores largavam suas terras em busca de emprego na cidade. Hoje, por meio de políticas de incentivo, permanecem no campo, recebem capacitação técnica e têm garantia de venda dos seus produtos.
Francisco Caldeira, de 56 anos, é agricultor familiar em Vargem Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro e vem participando do Projeto Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, realizado pela AS-PTA, com o patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Francisco acompanha de perto a efetivação dessas políticas, entre elas, a Lei Federal de Alimentação Escolar (11.497/2009) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que abriu novos caminhos ao determinar que 30% da compra para as refeições escolares seja adquirida da agricultura familiar local. Existem ainda muitos desafios para efetivar essa legislação num município como Rio de Janeiro. Entretanto, após cinco anos de aprovação da referida lei, os esforços para ampliar a oferta de alimentos locais e saudáveis na escola – uma articulação da Rede Carioca de Agroecologia (RCAU), composta por mais de 30 entidades e grupos – são uma das principais motivações dos agricultores da Zona Oeste da cidade que já acessam essa política.
Francisco foi um dos primeiros agricultores participantes dessa Rede a obter a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), espécie de carteira de identidade do agricultor familiar que permite efetuar a venda para o governo, e garante outros direitos. Além de incrementar a renda, comercializar para uma escola do próprio bairro, estimula um circuito mais curto de comercialização e qualifica o agricultor como um agente de educação importante para abordar as questões alimentares, do refeitório à sala de aula. Com isso, amplia as possibilidades da função social da terra. Não se trata apenas de vender alimentos, mas de estabelecer uma relação em que os alunos têm a oportunidade de conhecer a origem de seus alimentos e ter o direito de escolha. Francisco tem recebido estudantes em seu sítio para conhecer de perto a agroecologia; aprender sobre plantas medicinais e ter a oportunidade de participar do plantio e da colheita. Aprendizados que criam laços entre agricultor e consumidor, os cidadãos que plantam e os que dependem desse alimento.
Um “caminhar lentamente”
Compreender a Agricultura Familiar é “um caminhar lentamente”. Foi assim que Francisco, hoje presidente do Consea-Rio (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do município) definiu sua trajetória, enquanto subíamos o Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), em direção ao seu sítio. Durante a caminhada, desviando de obstáculos, apreciando paisagem e os pequenos frutos espalhados pela trilha, (como cambucá, camboatá e grumixama), acenando para a vizinhança, dando passagem a cavalos e motos e identificando os frutos mais apreciados pelos pássaros da região, ouvimos sua experiência e vivenciamos, em parte, a intimidade que tem com a floresta onde vive.
De família de agricultores em Santa Maria Madalena, município do Estado do Rio, e casado com Angélica Caldeira há 34 anos, cuja família está há cinco gerações cultivando alimentos no Maciço da Pedra Branca, ele diz que já nasceu agricultor. Mas a dureza da caminhada o fez desistir da lavoura. “Não conseguia trabalhar, não tinha assistência técnica, a terra não correspondia devido aos usos indevidos do solo. Era uma atividade muito rudimentar. Não tinha reconhecimento”, lembra. Saiu, então, em busca de melhores oportunidades na cidade, mas continuou insatisfeito. Trabalhou por oito anos em feiras livres na Zona Oeste, entretanto, permanecia inquieto. “Quando você tem um umbigo enterrado nessa história, às vezes, você sai dela, mas ela não sai de você”, concluiu o seu desconforto em desistir de seu ofício.
O retorno ao campo foi em 2008, por meio de resgate de seus saberes e sua participação em momentos de formação sobre plantas medicinais, oferecidos pelo Profito – desenvolvido pela Plataforma Agroecológica de Fitomedicamentos (PAF/ Farmanguinhos/ Fiocruz). Durante dois anos, os agricultores locais – distanciados pela árdua rotina – foram se achegando, se inteirando sobre seus direitos e, assim, reuniram forças para continuar semeando. “Tinha gente que há 10 anos não se via, vivendo na mesma região. A história da discussão política começou a fazer sentido. Assim, como conhecer outras realidades que não eram diferentes das nossas, foram se somando às experiências de agricultura aqui e ali. Voltei a cuidar do sítio e fui caminhando mais para o lado da discussão política”, comenta.
O debate iniciado durante as oficinas do Profito deu origem à Associação de Agricultores Orgânicos de Vargem Grande (Agrovargem), com a proposta de contribuir com a formação cidadã dos agricultores, que conta com mais de 20 participantes, entre associados e entidades colaboradoras. Hoje, Francisco divide seu tempo entre o Consea, o sítio e a Feira Agroecológica da Freguesia aos sábados. Futuramente, pretende desenvolver produtos aromáticos e terapêuticos com as ervas medicinais que cultiva.
O relato de Francisco se alinha com as ideias de Jan Douwe van der Ploeg professor de sociologia rural na Universidade de Wageningen, na Holanda, e na Universidade Agrícola da China. Essas novas estratégias, que buscam fortalecer o estabelecimento familiar no campo, são definidas como formas de recampezinização. Ou seja, o emprego de princípios agroecológicos, a participação em novas atividades econômicas ou com a geração de novos produtos e a prestação de serviços em novos mercados socialmente construídos. Petersen esclarece que a recampezinização do mundo rural cria condições objetivas para desenvolver as qualidades da Agricultura Familiar, ao colocar em prática e aprimorar continuamente, – a tal caminhada do Francisco – o modo camponês de produção de vida, inscrito nas memórias bioculturais de suas comunidades. Em sua avaliação, trata-se de um projeto de cunho social, cultural, econômico, ambiental e político, com dimensões quantitativas e qualitativas.
Que modelo é esse?
No Consea, Francisco comemora o fato de ter levado as questões da Agricultura Familiar Agroecológica para a pauta. Em sua opinião, o desafio é contribuir para elaboração de políticas públicas que contemplem o modo de produção local como fundamental para combater a insegurança alimentar. “Temos péssimos hábitos alimentares, com o pensamento de que tudo é produzido na gôndola do supermercado. Tudo vem das caixinhas. Até as sementes tradicionais estão sendo substituídas pelas transgênicas. Precisamos descontruir esse modelo de produção agrícola que não respeita o meio ambiente e as pessoas. É um modelo que produz commodities para exportar. Temos que descontruir esse modelo que é bom para alguns e que tem empobrecido o agricultor, que é aquele que produz comida”, declara.
E que modelo é esse? Jean Ziegler informa que esse modelo agrícola está concentrado em apenas dez corporações – entre as quais Aventis, Monsanto, Pioneer e Syngenta – que controlam um terço do mercado global de sementes, estimado em 23 bilhões de dólares por ano; e 80% do mercado de pesticidas, em torno de 28 bilhões de dólares. Dez outras empresas, entre as quais a Cargill, controlam 57% das vendas dos 30 maiores varejistas do mundo e representam 37% das receitas das 100 maiores fabricantes de produtos alimentícios e de bebidas (p. 152). É um grupo reduzido que controla a produção, o processamento e a comercialização de bens no mercado e hoje detém a maior parte do aparato produtivo vinculado à alimentação, que inclui terra, maquinário, produtos químicos, sementes, conhecimento científico. Também dirigem a pesquisa e as novas aplicações tecnológicas (Contreras, 2011, p. 344).
A Agricultura Familiar é um desses fenômenos que as sociedades ocidentais têm cada vez mais dificuldade de compreender, afirma o professor Van der Ploeg. Isso porque se contrapõe à lógica industrial, mas ao mesmo tempo emerge como algo atrativo e sedutor. Ele considera esse modo produtivo como uma forma de vida, que não é somente o lugar onde a família é proprietária da terra e o trabalho é realizado pelos seus membros. O sociólogo define dez qualidades da Agricultura Familiar que nem sempre estão presentes ao mesmo tempo em todas as situações, mas indicam como é rica e diversa essa realidade que promove igualdade e justiça.
Quando a agricultura faz sentido
Francisco conta que quando passou a conhecer a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), compreendeu o sentido de sua lavoura. “Eu já praticava agroecologia e não sabia”, conta. No Parque da Pedra Branca, as mais de 150 famílias de agricultores são responsáveis por preservar a floresta, mantendo frutas e animais nativos da Mata Atlântica, num manejo sustentável, sem uso de agrotóxicos e com cultivos diversos. “As ideias fizeram sentido ao conhecer outras referências agroecológicas. Passamos a pensar o sistema agroflorestal como viável economicamente sendo de preservação”, destaca.
A história de Francisco se soma a muitas outras de agricultores que resistem às dificuldades dessa caminhada, que não é solitária nem sem sentido. Essa teia de relacionamentos que encontra novos caminhos em meio aos espinhos é explicada pelo sociólogo espanhol Manuel Castells como uma nova utopia no cerne da cultura da solidariedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade. Segundo ele, a mudança só pode ocorrer fora do sistema, mediante a transformação das relações de poder, que começa na mente das pessoas e se desenvolve em forma de redes construídas pelos projetos dos novos atores que constituem a si mesmos como sujeitos da nova história do processo (2012, p.166).
A questão agrária se mundializou
A Agricultura Familiar liga o cidadão ao seu alimento local, sua origem, identidade e memória. Exercer um novo olhar sobre essa atividade é essencial para o desenvolvimento da cidade, com sua complexidade e multidimensionalidade. Há a necessidade de preservar os recursos hídricos para prover água de boa qualidade; proteger a fauna e a flora, servindo como atrativos para educação ambiental e o lazer. Francisco considera que investir no turismo rural é fundamental para mobilizar a população quanto à importância desse modo de produção agrícola.
O geógrafo Porto-Gonçalves (2006) destaca que o mais interessante de todo esse debate é que a questão agrária/agrícola se urbanizou. A relação cidade-campo é que está em questão. Por isso, nota-se a crescente importância das lutas camponesas, indígenas e de tantas populações que reivindicam o direito ao território, à sua cultura, aos direitos coletivos e comunitários sobre o conhecimento acerca de cultivares, que hoje se unificam diante da ameaça de ter sua biotecnologia ancestral sendo poluída geneticamente por grandes corporações, que antes de tudo visam seus próprios interesses e não os da humanidade.
Essas populações, vistas por muitos como atrasadas e condenadas à extinção, têm hoje importantes aliados na cidade. A Agricultura Familiar está tentando descobrir novas alternativas para situações difíceis. Por isso, afirma o professor Van der Ploeg, cada passo, não importa o quão pequeno, será sempre útil. Daí a importância de fortalecer as organizações civis e movimentos rurais, e compartilhar as experiências bem sucedidas, como é o caso da história do Francisco e seu engajamento às redes (Agrovargem, Rede CAU, Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro/AARJ e Consea). São passos de uma caminhada que inspira, lentamente. Afinal, estamos falando de comida na mesa não só para hoje, mas para as próximas gerações.
Esta matéria foi publicada originalmente no site da AS-PTA (http://aspta.org.br/)
Notas
[1] Documento Despertar antes que seja tarde – conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
[2] http://www.fao.org/3/a-i4030e.pdf
[4] O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é uma política pública federal destinada a estimular a geração de renda e melhorar o uso da mão de obra familiar, por meio do financiamento de atividades e serviços rurais agropecuários e não agropecuários desenvolvidos em estabelecimento rural ou em áreas comunitárias próximas.
[5] A Feira Agroecológica da Freguesia faz parte do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas, instituída por Decreto Municipal da Secretaria de Desenvolvimento da Economia Solidária (SEDES) e gerida por um Conselho Gestor, do qual a Rede Carioca de Agricultura Urbana faz parte. A Feira recebe o apoio da AS-PTA, por meio dos Projetos Árvores na Agricultura Familiar e Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, que conta com patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental.
Referências bibliográficas
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PORTO GONÇALVES, C.W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2006.
ZIEGLER, J. Destruição em massa. Geopolítica da fome. Trad.: José Paulo Netto. 1ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 2013.