Por Jamil Chade
Do O Estado de S.Paulo,
Depois de dez anos de Bolsa Família, chegou o momento de o governo brasileiro reconhecer que a estratégia de combate à fome chegou ao seu limite e que uma “mudança de 180 graus” terá de ser adotada se de fato Brasília estiver comprometida em acabar com a fome no País. O alerta é de um dos principais sociólogos hoje na Europa, Jean Ziegler, que lança nesta semana no Brasil seu novo livro, Destruição em Massa – Geopolítica da Fome. pela editora Cortez, com capa do Pintor Portinari.
O suíço foi relator da ONU para o combate à fome e passou anos estudando o modelo utilizado pelos brasileiros para enfrentar a miséria.
Em entrevista exclusiva ao Estado, Ziegler deixa claro que não é contra o Bolsa Família e que o programa de fato terá de continuar. “Mas ele chegou a um limite. Novas ações terão de ser tomadas”, disse. O sociólogo ainda critica as decisões adotadas pelo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, segundo ele, teria cedido à bancada ruralista e abandonado suas próprias ideias. “Não há motivo para o Brasil não conseguir alimentar sua população”. Eis os principais trechos da entrevista, concedida em Genebra:
Como o sr. avalia a luta contra a fome hoje no Brasil…
O problema da fome no Brasil não acabou. O caminho precisa mudar radicalmente. A prioridade deve ser outra, depois de anos do Bolsa Família. Por favor, não estou dizendo que o Bolsa Família não é positivo. Claramente ele foi um marco. Mas chegou a um limite. Trata-se de um programa assistencialista. Obviamente que tirou milhões de uma situação de fome. Foi histórico. Mas ele terá de ser mantido por mais 50 anos se nada mais for feito. A Bolsa Família é como a ajuda humanitária da ONU. É boa por si só. Ela acabou com as angústias diárias de famílias. Mas a estrutura não muda com ela e é a estrutura que é perversa. Portanto, não é abolir a Bolsa Família. Ela é a medida de urgência, quando a casa está pegando fogo. Mas ela não vai reconstruir a casa.
Qual, então, a solução?
O País deve investir na agricultura de subsistência, nos pequenos agricultores. Nesse ponto, o MST tem razão. Um país que é uma grande potência econômica e política ainda tem 18% de sua população com algum risco de falta de alimento, isso é escandaloso. A agricultura de base é a mais eficiente. Ela evita que as periferias das grandes cidades explodam, ela ataca o desemprego, ela preserva o solo. Um agricultor não vai matar seu próprio solo. Mesmo a FAO (órgão da ONU para alimentação e agricultura) alerta que a agricultura familiar é a mais eficiente para lidar com a fome. O problema é que o Brasil faz uma política contrária.
Em que sentido o Brasil fez o caminho contrário?
Não houve a reforma agrária prometida por Lula e Dilma. Isso é condição básica para que o Brasil possa lidar de uma forma decisiva contra a fome. Nos últimos dez anos, a taxa de pessoas que tinham dificuldades para se alimentar no Brasil caiu pela metade. Mas, ainda assim, ela é alta para um país que quer ser uma potência. Outro aspecto é que essa redução ocorreu de uma forma muito frágil. O problema é que, a partir de agora, só o assistencialismo não dará resultado. No fundo, o Brasil precisa fazer um giro de 180 graus em sua política de combate à pobreza.
Porque o sr. acredita que o Brasil até agora não partiu para um novo modelo?
É verdade que o Brasil adota uma política de superávit comercial. Além disso, Lula precisava governar e isso exigiu acordos com a bancada ruralista no Congresso. O PT nunca teve a maioria e, ao mesmo tempo, a distribuição de terra é o diabo para alguns dos políticos com os quais o PT teve de se aliar. Como resultado, nos últimos dez anos, a reforma agrária foi colocada no congelador. O Incra deixou de existir como uma entidade com poder. Politicamente, eu entendo tudo isso. Mas, intelectualmente, precisamos deixar claro que o modelo fracassou. Com um país do tamanho do Brasil, não há motivo para não conseguir alimentar sua população. Não há nenhuma justificativa.
O sr. foi, por anos, muito duro contra o programa de etanol no Brasil. Por que?
Quando eu era relator da ONU contra a fome, o governo brasileiro me criticou por não entender nada de etanol. É verdade que o impacto do etanol americano é muito maior que no caso do Brasil. É verdade também que, no Brasil, não se queima comida para fazer combustível. Mas, ao ocupar milhões de hectares para a cana, o Brasil transfere a fronteira agrícola. O gado precisa mudar de local. O impacto é indireto. Mas é real.
Fora do Brasil, como o sr. avalia hoje a situação da fome no planeta?
A cada cinco segundos, uma pessoa morre de fome. 57 mil pessoas por dia morrem. Ao mesmo tempo, no estado atual, a agricultura mundial poderia alimentar 12 bilhões de pessoas. Uma criança que morre de fome hoje no mundo é simplesmente assassinada. Esse é o maior escândalo de nossa era. No ano passado, 70 milhões de pessoas morreram no mundo. Desse total, 18 milhões são vítimas da fome.
E porque isso ainda ocorre?
É a indiferença que está matando. As crianças da Somália não estão morrendo no centro de Paris. São pessoas totalmente invisíveis. Elas não votam e não são mercado de ninguém. É verdade também que Angela Merkel ou Mariano Rajoy foram eleitos por seus cidadãos para resolver seus problemas. Não para resolver os de outros países. Não é uma surpresa que, numa crise, eles estejam cortando a ajuda internacional. Mas, ao mesmo tempo, isso não exclui o fato de que o massacre cotidiano está, de fato, ocorrendo.
(*) Entrevista reproduzida da página do MST.