Através da produção agroecológica de plantas nativas da Serra dos Paus Dóias, em Exú (PE), terra de Luiz Gonzaga, rei do baião, é que a família Lermen tira seu sustento. Há quinze anos chegaram da região sul do país, cujo clima é totalmente diferente, e se adaptaram à vida do semiárido nordestino, numa Área de Proteção Ambiental (APA), na Chapada do Araripe. Com uma propriedade de 12 hectares, cercada por cercas vivas de plantas típicas da região, cultivam frutos e flores que enchem suas vidas de orgulho e entusiasmo.
Agricultor florestal convicto, Vilmar Lermen, marido de Silvanete e pai de três filhos, se considera um experimentador. Atento aos movimentos da natureza, está sempre adaptando e ampliando sua plantação. Também militante, luta ativamente pelos direitos dos agricultores às políticas públicas. Parceiro da ONG Caatinga, que atua na região, tem diversos trabalhos na sua associação e participa do Conselho Municipal de Desenvolvimento de Exu (CMDER). Por isso é beneficiário dos programas P1MC e P1+2, relativos à aquisição de cisternas de água, e do Pronaf Agroecologia dentro do Banco do Nordeste, um dos primeiros em Pernambuco.
“Nosso trabalho é baseado nos princípios da agroecologia, dentro do sistema agroflorestal. Produzimos as plantas anuais, como milho, feijão e a fava, as de ciclo mais intermediário, como a macaxeira e a mandioca, e as frutíferas nativas e exóticas ao bioma, como o caju, a manga e a goiaba. Mas temos um foco bastante grande em cima do cambuí, da murta, do maracujá, do jatobá, que são nativas. Tem as abelhas nativas e as africanizadas, de onde tiramos nossa produção”, explicou Vilmar.
Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, a chapada não é tão ruim para o cultivo. Por isso eles também trabalham com viveiro de mudas, que são comercializadas ou trocadas de acordo com a necessidade e a oportunidade. As hortaliças são utilizadas mais no consumo da família, exceto as suas sementes nativas cujo excedente é comercializado ou trocado. O tomate cereja às vezes tem uma produção maior em canteiro econômico. Tudo é aproveitado em sua propriedade, que é bastante diversificada.
Como a altitude da Chapada chega a quase mil metros, o clima é um pouco mais frio à noite, e devido ao sedimento poroso há dificuldade no armazenamento de água por causa da infiltração rápida. Então, sua agrofloresta às vezes sofre com o fenômeno chamado seca verde, como existe em outros ecossistemas dentro da caatinga e do semiárido. A terra também é fraca do ponto de vista natural, e sofre ataque severo de formigas saúvas, que são controladas pelo manejo agroecológico. Para a criação do gado e da abelha é preciso fazer a mudança de local dos bichos até duas vezes por ano, para recompor a nutrição dos animais. Todo conhecimento de manejo ele aprendeu graças às suas experimentações e observações.
Alguns vizinhos têm feito experiências com o exemplo da sua agrofloresta. “Estamos preocupados com desmatamentos de quem cria gado e planta mandioca, porque criam áreas extensivamente abertas e faz com que o vento tenha força e possa provocar um mini tornado que já arrancou telhados. Dentro do contexto da agrofloresta, a gente planta as forrageiras, as melíferas, as adubadoras, para que haja uma constante reciclagem de nutrientes e tenha produção no inverno e no verão para as pessoas, os animais e o próprio solo”, disse.
Conhecimento tradicional X acadêmico?
Muitos assessores técnicos, formados geralmente em agronomia, ajudam os agricultores a aperfeiçoar suas plantações. Esse é o caso de Giovanne Xenafonte, da ONG Caatinga, que atua na região do Araripe pernambucano. Segundo ele, a experiência de Vilmar e tantos outros agricultores é o que dá sentido à ação dessas organizações. São exemplos vivos, complementa, de que é possível viver na região e conviver com o clima semiárido e períodos de seca.
“É possível produzir alimentos de qualidade, limpos de agrotóxicos e transgênicos, preservando o ambiente. Esses agricultores têm feito um trabalho que além de estudar, pesquisar, observar a natureza, de plantar e sustentar a sua família, passa para outras famílias agricultoras. Nosso papel enquanto técnico e organização é facilitar um pouco esses processos de intercâmbio de conhecimento e estimular outras descobertas”, afirmou.
O trabalho na chapada do Araripe com o sistema agroflorestal tem possibilitado várias reflexões, principalmente do ponto de vista técnico de como se comporta a região. Porque muitas vezes os agricultores derrubam e não dão o devido valor às plantas fundamentais para o equilíbrio ecológico do ambiente. “É através desses exemplos que colocamos nos espaços políticas públicas. Dá credibilidade à ASA e tantas outras organizações que trabalham com famílias agricultoras. Hoje já tem no Araripe outra perspectiva de convivência com o semiárido e fortalecimento da agroecologia. Crescimento da agricultura familiar e valorização desse importante segmento da sociedade, tanto para alimentação quanto para a preservação do meio ambiente”, observa Xenafonte.
No caso de Vilmar, ele tem feito diversas experimentações há seis anos. Muitas delas foram aproveitadas, e outras estão em avaliação. Uma de suas constatações foi que se utilizava muita água, trabalho, energia e matéria orgânica para resultados às vezes ruins economicamente. Há também todo um trabalho de beleza cênica, segundo ele, pois a propriedade deve ser bonita e agradável de viver, além da produção econômica e nutricional da família.
“A gente vem testando, fazendo intercâmbios com as famílias, técnicos e estudantes. Fazemos capacitações em termos de recursos hídricos de forma integrada nos municípios da chapada, isso faz com que a gente acumule experiência e tenha uma produção no horizonte. Nem sempre é fácil, porque tem anos com o clima mais favorável tanto do ponto de vista das chuvas quanto da questão dos ventos e quantidade de radiação solar. Chegamos a perder 40% das plantas. Fomos adaptando e fazendo uma agricultura ecológica que pudesse ir de contraponto e como alternativa para um novo caminho para as famílias da região”, diz Vilmar.
Muitos agricultores que queimavam, usavam veneno, não preservavam as frutas nativas, que geram geléias, licores e vinhos, dentre outros produtos comercializáveis, hoje seguem o caminho agroecológico de Vilmar. Em todas as comunidades têm aqueles que são a favor e os que são contra essas perspectivas. Um dos desafios, segundo o agricultor, é incorporar a agroecologia como ciência nas escolas do campo.
“O trabalho com as crianças e a juventude para compreender esse processo das tecnologias, das políticas públicas, porque se não amanhã não adianta a gente ter energia, unidades de beneficiamento, feiras, tecnologias de armazenamento da água, se os jovens não ficarem no campo. Têm que ficar com acesso à informação, produção, trabalho, renda e qualidade de vida. Para participarem nas lutas, assumir as ONGs, as associações, conselhos, sindicatos, e por que não dizer a câmara de vereadores e as secretarias do município. Os agricultores devem ocupar esses espaços para transformação da sociedade que a gente precisa”, concluiu.
Não se deve diferenciar o conhecimento tradicional do técnico, pois, na avaliação de Xenafonte, o conhecimento é algo que se constrói junto. O problema, na sua visão, é que na prática isso não é tão fácil pois a formação acadêmica molda as pessoas na visão do agronegócio. Os estudantes passam por um processo que não ajuda a enxergar com bons olhos o saber tradicional dos agricultores, na sua opinião.
“Cada um tem os seus acúmulos, conhecimentos, que lhes traz ensinamentos e observações. A gente procura entender como isso está organizado e valoriza e visibiliza. Na nossa prática institucional e metodológica estamos sempre nos momentos de formação, intercâmbio, articulação política, com o agricultor sendo o protagonista da história, que de fato é sua. Isso não pode ser tirado e negado dele. Esse registro de forma escrita e em imagens para o mundo é um dos caminhos, e tem mostrado eficiência. Eles se sentem valorizados, e outras famílias têm a possibilidade de perceber que deixaram de fazer aquilo por conta de uma influência externa”, ressaltou.
A preocupação das organizações é que muitos conhecimentos tracionais já foram perdidos por causa da “modernização”, e são saberes que apontam para soluções locais. Daí a necessidade de um amplo processo de sistematização de registro dessas experiências, que pela falta de estrutura ainda é muito limitado, pois são muito importantes para enfrentar futuras situações de estiagem, que certamente virão.
“O povo do semiárido vive nessa região há quase 500 anos, então conseguiu sobreviver em todas as épocas de crise com o conhecimento que têm acumulado sobre a natureza. Substituir isso por um conhecimento dito acadêmico não gera bons frutos. Essa foi uma das piores secas nos últimos 40 anos, e a gente vê que quem está melhor são os agricultores que estão experimentando uma nova trajetória de trabalho, como o Vilmar. Eles têm estoque de forragem, água para se virar, e uma série de conhecimentos a respeito da vegetação e do clima. Quem pegou crédito oficial, derrubou a caatinga, usou a lei do ferro e do fogo, hoje está apertado porque não tem alimento para os animais, água, nem nada. Temos aprendido a conviver com a seca, e aprendemos cada vez mais nesses momentos de crise observando a natureza e o enorme legado que fica de algumas famílias num período como esse”, avalia.