No dia 01 de outubro, o presidente da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Pedro Arraes, foi exonerado de seu cargo. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) enviaram um ofício conjunto ao governo federal pedindo a indicação de um substituto que seja aberto ao diálogo com as organizações e movimentos sociais que defendem a agroecologia como enfoque científico para o desenvolvimento agrícola. Até o fechamento desta entrevista ninguém foi indicado à presidência da instituição.
Para falar sobre essa conjuntura e o papel da Embrapa para as políticas direcionadas à agricultura no Brasil ouvimos Paulo Petersen, vice presidente da ABA-Agroecologia e coordenador executivo da AS-PTA, organização que integra a coordenação da ANA. Para ele, essa mudança na direção da Embrapa tem um forte significado nesse momento em que a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica será definida e implantada. Segundo Petersen, para o bem ou para o mal, a Embrapa tem um papel fundamental a desempenhar no avanço da persepctiva agroecológica.
O que sinaliza a saída do presidente da Embrapa para os movimentos da agroecologia e os pesquisadores?
O presidente exonerado da Embrapa interrompeu um diálogo iniciado pelo antigo presidente, Silvio Crestana, que havia criado o Fórum Permanente de Agroecologia durante sua gestão. A criação desse espaço de interlocução havia sido uma demanda da ABA-Agroecologia e da ANA que não encontravam nos demais espaços formais de diálogo, como os conselhos assessores externos, ambientes adequados para a elaboração e o monitoramento de ações concretas voltadas para a internalização da agroecologia nos projetos de pesquisa da instituição. De forma geral, as organizações do campo agroecológico se apresentavam muito diluídas frente ao domínio dos grupos do agronegócio nesses espaços. Pedro Arraes interrompeu esse canal de participação social o que é muito grave pois não acredito que a Embrapa consiga avançar na agenda de pesquisa em agroecologia se não o fizer em sintonia e em cooperação com as organizações da sociedade civil.
Mas certamente sua destituição não ocorreu por conta de suas posições avessas ao enfoque agroecológico e à pesquisa em agricultura familiar. Aliás, logo após a sua posse, estivemos com ele em uma audiência para debater a continuidade do Fórum de Agroecologia e fomos recebidos com a seguinte frase: “para mim só existe uma agricultura, não há porque fazer essa diferenciação entre familiar e patronal, agronegócio e agroecológico”. Já ali percebemos que enfrentaríamos tempos difíceis no diálogo com a direção da Embrapa. Negar as evidentes diferenciações foi a forma mais simples de suprimir a agenda que propúnhamos.
No Encontro dos Povos do Cerrados, Pedro Arraes falou à ANA que os transgênicos são cientificamente comprovados, de forma que não trazem malefício à saúde humana. Na semana seguinte foram divulgados os resultados de uma pesquisa francesa apontando tumores em ratos alimentados com o milho transgênico que é largamente cultivado no Brasil…
É muito lamentável que o presidente de uma prestigiosa instituição científica venha a público para afirmar fatos de tamanha importância para a sociedade que não encontram nenhum respaldo na ciência. Nesse caso, a ironia do destino se incumbiu de repor a verdade dos fatos em menos de uma semana. Como vimos dizendo há muito tempo: a falta de evidência da existência de riscos dos transgênicos à saúde e ao meio ambiente não significa que os riscos não existem. E dificilmente serão detectados se pesquisas independentes sobre biossegurança, como a divulgada pelos franceses, não forem realizadas. Apesar de ser uma empresa pública, a Embrapa não vem tendo a independência necessária para se posicionar nessa e em outras matérias de interesse da sociedade. Outro exemplo vem da novela do Novo Código Florestal. Os ruralistas pressionaram a Embrapa para que se manifestasse favoravelmente às suas propostas de alteração no Código. O antigo presidente, Sílvio Crestana, não se prestou a esse papel ao afirmar que a Embrapa só se posiciona com base em resultados de pesquisa e não em função de conveniências políticas. Não tenho dúvida de que essa sua posição foi determinante para a sua saída da presidência da instituição. Infelizmente, a mesma postura não foi seguida pelo seu sucessor, agora exonerado. Esses episódios revelam uma crise de institucionalidade gravíssima que coloca em risco a credibilidade da Embrapa perante a sociedade.
Qual a expectativa com relação às mudanças na direção da Embrapa, levando em consideração a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO)?
O cenário para a substituição da presidência da Embrapa não é muito favorável levando em conta o fato de que os ruralistas, através de suas organizações, têm exercido um forte pressão no sentido de pautar o perfil do novo presidente. Para esse setor, é esencial que a Embrapa continue sendo funcional aos seus interesses. Por isso tomam a iniciativa de indicar nomes por meio da imprensa. O próprio Ministério da Agricultura solicitou a indicação de nomes à Sociedade Rural Brasileira. Me pergunto porque essa precedência a uma organização ruralista. É importante que o governo saiba que as organizações da sociedade civil e os movimentos sociais vinculados à ANA estão atentos a essa nomeação. Ela será um termômentro que nos sinalizará o efetivo compromisso da Embrapa com a PNAPO e, de forma mais ampla, com a agricultura familiar e os povos e comunidades tradicionais. Nossa expectativa, portanto, é que a nova direção da Embrapa defenda e exerça o caráter público da instituição, estabelecendo processos de gestão democráticos, transparentes e afinados com as demandas da sociedade. Temos a convicção de que o avanço da agroecologia dependerá do aporte do conhecimento científico e por isso a Embrapa está chamada a desempenhar um papel essencial. Esperamos também que a nova direção da Embrapa soterre as movimentações em curso que apontam para a privatização da empresa. Um crime que vem sendo tramado à sombra da sociedade.
O Consea enviou uma carta de recomendações à Embrapa questionando esse caminho da privatização…
Trata-se de um duro questionamento ao projeto “Conserva Brasil”, uma expressão dessa tentativa de privatização dos bens comuns que estão sob a guarda da Embrapa. Nesse caso, relaciona-se à possibilidade de transferir à iniciativa privada, leia-se grandes corporações do setor biotecnológico, o acesso aos recursos genéticos que vêm sendo mantidos nos bancos de germoplasma da Embrapa há décadas sob os auspícios do povo brasileiro. Depois de acessarem legalmente essas sementes, as empresas ficariam livres para introduzir suas modificações genéticas e justificar a apropriação privada desse patrimônio genético por meio do patenteamento. A influência corporativa sobre os rumos da agricultura depende cada vez mais desse processo de patenteamento dos recursos genéticos. É a partir daí que o capital cria a cadeia de dependência tecnológica que o sustenta. Por essa razão a Embrapa é hoje um elo fundamental no sistema de poder do agronegócio. Dependendo da forma para onde ela se oriente a partir de agora, poderemos assistir ao avanço desse caminho da privatização dos bens comuns e do avanço das monoculturas transgênicas ou, como defendemos, o desenvolvimento de estilos de agricultura fundamentados em processos ecológicos e respaldados por marcos regulatórios que assegurem o direito das populações ao livre uso da biodiversidade. A manifestação do Consea contra o projeto “Conserva Brasil” foi precisa exatamente porque apontou o significado dessa medida de privatização dos recursos genéticos no que se refere à perda de soberania alimentar do Brasil.
Nesse cenário, como ficam os direitos dos povos e comunidades tradicionais no manejo das sementes crioulas?
O material que é de domínio das comunidades não é afetado por essa determinação. O que está em jogo é o material já de posse da Embrapa. Esse material deveria ser repatriado para as comunidades, de onde saíram. Muito dele foi recolhido há anos e boa parte das comunidades já não possui essas sementes. Inexplicavelmente, a Embrapa coloca grandes obstáculos ao acesso desses materiais, mesmo sendo o Brasil signatário do Tratado da FAO que regula os direitos dos agricultores sobre os recursos fitogenéticos. Esse material precisa voltar ao uso social nas comunidades rurais porque são essenciais para a reconstrução de autonomia tecnológica e para a soberania alimentar.
E o que o agronegócio brasileiro ganha com essa privatização?
O irônico nessa história toda é exatamente o fato de que os grande produtores de grãos já se deram conta de que entraram numa enrascada com o domínio corporativo do mercado de sementes. São obrigados a pagar royalties pesadíssimos por conta da tecnologia transgênica incorporada nas sementes que usam. Nessa hora cobram o papel público da Embrapa no sentido de intervir nesse campo, ofertando sementes de qualidade no mercado e os dispensando do pagamento dos royalties. Não é sem razão que começamos a assistir na imprensa um aparentemente contraditório discurso nacionalista, contrário às transnacionais biotecnológicas, emitido pelos ideólogos do agronegócio. Ao dar as suas voltas, o mundo vai confirmando tudo aquilo que denunciávamos há alguns anos quando os transgênicos começaram a ser liberados no Brasil.
Que papel o campo agroecológico espera da Embrapa?
Apesar de sua orientação francamente favorável ao avanço da agricultura industrial e do agronegócio, a Embrapa conta com um número já significativo de profissionais que procura atuar a partir da perspectiva agroecológica e em defesa da agricultura familiar camponesa. O pouco de recursos financeiros alocado na pesquisa nessa direção tem dado mostras de que muitas soluções tecnológicas poderiam ser desenvolvidas a partir da reaproximação entre a agricultura e os processos naturais. Um exemplo típico é o desenvolvimento de uma tecnologia para o manejo orgânico que permite o controle do vírus do mosaico dourado do feijoeiro, um problema que aflige os produtores da leguminosa. Em vez de aprimorar e disseminar a tecnologia, a Embrapa investiu rios de dinheiro para o desenvolvimento de um feijão transgênico exatamente para que essa patologia fosse controlada. Como se vê, muitas soluções tecnológicas para problemas de nossa agricultura poderiam ser desenvolvidas a custos mais baixos, com a participação efetiva das comunidades e sem submeter a saúde da população aos riscos inerentes à modificação genética e ao uso de agrotóxicos em seus alimentos.
Em termos quantitativos, quanto representa as pesquisas na área da Agroecologia na Embrapa?
Esse é um número muito difícil de ser apurado porque muitas pesquisas não são explicitamente identificadas ao enfoque agroecológico mas seguem seus princípios. Infelizmente, o inverso também é verdadeiro. Mas podemos tomar como ponto de partida o levantamento divulgado pelo Sindicato dos Pesquisadores Agropecuários (Sinpaf), segundo o qual os recursos dirigidos à pesquisa à agricultura familiar é de apenas 4% do orçamento da Embrapa. Esse dado é em si muito significativo, pois revela o desprezo da Embrapa para com o setor que produz 70% da alimentação consumida pelos brasileiros. Além da baixa alocação orçamentária, os pequisadores que tentam desenvolver seus projetos de pesquisa em conjunto com as comunidades rurais, um pressuposto metodológico da pesquisa em agroecologia, não vêm encontrando suficiente respaldo institucional para isso. Portanto, o problema para o avanço da agroecologia não se limita à quantidade de recursos financeiros investidos, mas também à qualidade da relação estabelecida entre a Embrapa e o mundo real, onde os problemas de pesquisa devem ser elaborados. Esses desafios vêm sendo enfrentados por redes nacionais de pesquisa em agroecologia e em agricultura orgânica que articulam pesquisadores das várias unidades operacionais da empresa espalhadas pelo Brasil. Mas esse esforço vem sendo feito feito à contracorrente dos processos de gestão da empresa. Por exemplo: os pesquisadores não são valorizados internamente pelos trabalhos que desenvolvem junto às comunidades. O sistema avaliação de desempenho dos pesquisadores e das unidades valoriza um viés mais academicista, ligado ao número de trabalhos científicos publicados, ou empresarial, ligado ao número de patentes registradas. Definitivamente, os problemas de nossa agricultura não serão enfrentados com o maior número de papers publicados ou de patentes registradas. Mudar esse sistema de avaliação é condição essencial para que as metodologias de pesquisa participativa sejam consolidadas e desenvolvidas na Embrapa.
Por que a Embrapa é tão importante no quadro político?
A Embrapa desenvolve tecnologias, referenda recomendações técnicas, define zoneamentos reguladores de práticas agrícolas etc… Atua, portanto, como caucionador científico às decisões dos gestores públicos. É claro que as universidades e empresas de pesquisa estaduais também desempenham esse papel. Mas a Embrapa coordena o chamado Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária e está presente em todo o território nacional por meio de dezenas de unidades de pesquisa, possuindo um quadro profissional de quase 10 mil funcionários e um orçamento anual de mais de 2 bilhões de reais. Diante disso, sua presença no processo político é decisiva não só pelo que aporta em termos de inovações científico-tecnológicas mas também por sua influência ideológica sobre os rumos da agricultura. Ciente desse seu papel, ela tem se empenhado em produzir mensagens à sociedade que exaltam o seu protagonismo na promoção da agricultura sustentável, incorporando o discurso histórico dos movimentos sociais e confundindo os termos do debate político. Mas o que a Embrapa identifica como sustentável em suas propostas muito frequentemente se identifica à nova retórica da economia verde com a reafirmação das monoculturas extensivas mantidas com base no emprego intensivo de agroquímicos, motomecanização e transgênicos.
Há, portanto, uma linha tênue na relação entre a ciência, a política e o poder econômico?
Exatamente, porque a ciência institucional está sendo crescentemente dominada pelo poder econômico das corporações. Não tenho dúvidas de quem orienta o principal das agendas de pesquisa de nossas empresas públicas são as grandes corporações. Por ser uma instituição pública, a Embrapa tem a obrigação de se blindar diante do poderio econômico das transnacionais. É isso o que esperamos dela daqui para frente.