Por Raquel Júnia,
A agricultura industrial significa um ecosuicídio porque em seu manejo produz os gases que afetam o seu próprio funcionamento. A afirmação é de Miguel Altieri, da Sociedade Latinoamericana de Agroecologia, e uma das principais referências mundiais nas pesquisas sobre o tema. Para Altieri, são os sistemas tradicionais de agricultora que oferecem hoje as soluções para a crise ambiental, por exemplo, os cultivos que camponeses fazem em áreas que em parte do ano estão inundadas, nos quais os peixes cumprem importante função no controle de pragas ou então, cultivos cercados por bosques e florestas praticados por pequenos agricultores em várias partes do mundo, que mantêm o equilíbrio climático .
“É preciso olhar para trás, estes sistemas foram capazes de resistir e enfrentar mudanças climáticas, é daí que a agroecologia precisa emergir”, sentenciou. Miguel Altieri participou da mesa “Agricultura e Crises Ambientais”, uma das atividades do “Seminário Internacional Tempo de Agir por Mudanças Radicais – Agricultura familiar camponesa e agroecologia como alternativa à crise do sistema agroalimentar industrial”, realizado de 15 a 17 de junho, no âmbito da Cúpula dos Povos na Rio+20.
Miguel lembrou também que os cultivos sem agrotóxicos e adubos químicos têm resultados muito melhores em tempos de seca do que o sistema convencional. Ele mencionou vários exemplos de práticas exitosas, como as plantações de feijão no sul de Santa Catarina que utilizam um sistema de “tampar” o solo com matéria orgânica e assim preservar a muda de feijão por mais tempo no interior da terra no período mais frágil de seu crescimento. “Albert Einsten tem uma frase que se relaciona muito com o momento atual.Segundo ele, não se pode resolver os problemas com as mesmas soluções que os criaram. Nesse sentido, a economia verde não resolverá nossos problemas”, ressaltou.
Também participante do seminário, Parviz Koohafkan, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), chamou a atenção para a “escassez de terra per capita” que o mundo assiste desde a chamada Revolução Verde, quando foi incrementado o movimento de concentração de terras nas mãos de poucas pessoas. Segundo Parviz, há políticas públicas distorcidas que dão pouca atenção às chamadas terras marginais, ou seja, áreas consideradas menos produtivas, mas que populações tradicionais mostram que na realidade são produtivas. Ele criticou os incentivos financeiros maiores para a monocultura e a agricultura irrigada. “Enquanto isso, um terço da população vive com escassez de água, essa escassez é física, mas também econômica. Na África, por exemplo, o que vigora é principalmente a escassez econômica, porque há muita água, mas as pessoas não podem utilizá-la”, disse.
Para Parviz, o mundo está no limite da sustentabilidade e há um grande risco de colapso já na próxima década com a possibilidade de os grandes rios cada vez mais terem fluxos menores, serem salinização, bem como as águas subterrâneas. Ele também citou sistemas tradicionais como exemplos a seguir, como o sistema de terraças criados pelos povos andinos. Parviz acrescentou que as soluções para a crise passam pelo acesso à terra, a troca de conhecimentos e o empoderamento das mulheres, que cada vez mais chefiam famílias camponesas.
Nora Inácio, da organização Sea Rice, da Filipinas comentou sobre a redução da biodiversidade provocada pela agricultura industrial e mostrou exemplos de povos da Ásia e África justamente no sentido contrário – o de promover a diversidade com cultivos de arroz. De acordo com Nora, na contramão também caminham as políticas públicas que insistem em garantir incentivos aos pequenos agricultores para que cultivem arroz transgênico. “Mesmo sabendo que daqui a um ano terá que comprar de novo, porque essas sementes patenteadas só dão uma vez, muitas vezes os agricultores as compram porque têm incentivos. E se eles desenvolvem novas tecnologias usando as sementes são processados”, observou.
Segundo Nora, há vários movimentos desenvolvendo clubes de sementes e, juntos, já possuem 249 variedades de arroz. “Os governos precisam entender que devemos investir mais em pessoas. E entender que quando elas são envolvidas no desenvolvimento das tecnologias, elas vão utilizá-las porque foram elas que as criaram”, reforçou.
Para Almuth Ernsting, da organização Biofuelwatch, da Inglaterra, que alerta sobre os impactos negativos da industria dos biocombustíveis no clima do planeta, os milhares de hectares já plantados, sobretudo na África e na América Latina, com cultivos destinados aos agrocombustíveis são um grande equívoco. Segundo ele, na África, 19 milhões de hectares estão sendo destinados ao cultivo de pinhão manso para biomassa. “Dizem que a biomassa é neutra em emissão de carbono, mas isso não é verdade porque as usinas utilizam combustíveis fósseis para a processarem”, explicou.
Além disso, observou Almuth, essa expansão tem ameaçado direitos de comunidades tradicionais. Ele exemplificou com a empresa brasileira Suzano Papel e Celulose que, de acordo com ele, fechou acordo com o Reino Unido para fornecimento de biomassa e aqui no Brasil tem se instalado em áreas de povos quilombolas, expulsando essas pessoas de seus territórios. Segundo Almuth, na Uganda, 20 mil camponeses também já foram expulsos de suas terras para produção de biomassa. “Essa idéia de resfriar o planeta com os agrocombustíveis na verdade tem resultado em grande pressão sobre as terras, o campesinato e as populações tradicionais”, denunciou.
Exemplo brasileiro na luta contra desertificação
Luciano Silveira, da AS-PTA Agricultura e Sustentabilidade, apresentou a experiência das populações da região nordeste do Brasil na convivência com o semiárido. Ele mencionou as características da região, onde 40% da população vive em áreas rurais e a maioria desenvolve uma agricultura de base familiar, embora ocupem apenas 3% do território. O bioma da região é a caatinga, que apresenta alta pluviosidade, mas possui também outros aspectos que dificultam a absorção de água como os solos rasos, a alta evaporação e uma enorme variabilidade climática.
O pesquisador relatou que a visão dominante é a de que se trata de uma região inóspita, sem potencial de desenvolvimento e baseada na idéia de que é preciso “combater a seca”. “O resultado dessas políticas é que 68% do território está hoje em processo de desertificação”, observou. Entretanto, a população da região vem protestando contra essa visão e desenvolvendo uma nova forma de convivência com o bioma local. Ele relata que no final da década de 90 um agricultor desenvolveu uma técnica que mudaria a história do semi-árido. A partir do que aprendeu como migrante em São Paulo trabalhando em uma fábrica de piscinas, o camponês Néo construiu uma cisterna de placas de cimento para acumular água da chuva. A tecnologia foi sendo ampliada e a Articulação do Semi Árido Brasileiro (ASA), uma organização da sociedade civil, conseguiu aprovar junto ao governo federal, em 2003, um programa para implementação em escala do projeto que levou o nome 1 milhão de cisternas.
De acordo com Luciano, há hoje 452.879 cisternas construídas com esta tecnologia pelos camponeses, que possibilitaram um empoderamento e uma tomada de consciência da população local sobre a convivência com o semiárido. “Isso estabeleceu um novo paradigma, as cisternas conseguiram mexer com o sistema para afirmar que existe sim uma alternativa”, disse. O pesquisador acrescenta que o programa das cisternas teve outros desdobramentos por conta da mobilização e organização dos camponeses como a criação de bancos de sementes comunitários, de uma rede de viveiros e acesso a mercados locais.
No entanto, a experiência exitosa e as conquistas da população organizada do semiárido quase sofreu um duro retrocesso em 2011, quando o governo federal resolveu suspender a parceria do programa 1 milhão de cisternas e substituir a tecnologia construída pela população com placas de cimento por outras estruturas de plástico, desenvolvidas por uma empresa. A intenção também era que o repasse dos recursos do projeto não fosse feito mais à sociedade civil, mas sim aos estados. Luciano ressaltou que as cisternas de plástico custam o dobro do preço e que, além disso, geram poluição e, sobretudo acabam com a autodeterminação dos camponeses na escolha das suas próprias soluções. “Mas novamente a população se mobilizou, mais de 15 mil pessoas fecharam a ponte entre Juazeiro [na Bahia] e Petrolina [em Pernambuco] e o governo voltou atrás. Um novo termo de parceria foi firmado inclusive com a presença da ministra Tereza Campelo, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome”, contou.
Soluções dos Povos
Na segunda parte do debate, dois representantes de movimentos sociais foram responsáveis por fazer uma síntese da discussão. Para Moisés Quispe, da Intercontinental Network of Organic Farmers Organizations (IFOAM) no Peru, que atua na organização dos produtores orgânicos a nível mundial, é clara a contribuição que os povos tradicionais e suas formas de cultivo têm a dar na solução da crise ambiental e da fome mundial. “Só no Peru, eu conheço agricultores que cultivam 250 variedades de batatas e 85 variedades de pimentas”, disse. “Com um pouquinho mais de recursos, a pequena agricultura melhoria a alimentação do mundo. Primeiro é preciso alimentar a população interna com produtos agroecológicos e depois pensar na exportação. Só no Peru, 39% da população está pobreza”, protestou.
Fredy Congo, da Confederación Nacional de Organizaciones campesinas, indígenas y negras do Equador e também da Via Campesina, reforçou que são os camponeses que vão alimentar o mundo e esfriar o planeta. Ele lembrou que grande parte da comida que está na mesa das pessoas são produzidas pelos pequenos agricultores, embora 85% das terras mundiais estejam nas mãos do agronegócio e reforçou a urgência da reforma agrária. Fredy comentou também sobre a campanha de sementes impulsionada pela Via Campesina a nível mundial. “Nosso lema é sementes patrimônio da humanidade. As sementes não têm que estar cauteladas, têm que ser liberadas para alimentar o mundo”. Para Fredy, só a mobilização das pessoas provocará mudanças significativas. “Os estados não respondem as nossas demandas, não haverá mudança radical sem mobilização, só assim alteraremos a correlação de forças”, convocou.
(*) Reportagem publicada originalmente na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)