Por trás do maço de cigarros escondem-se histórias de agricultores explorados. Se depender da Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de tabaco diminuirá consideravelmente nas próximas décadas. Daí, o mercado vai fatalmente se afunilar e os fumicultores brasileiros terão mais uma batata quente para administrar
Pernas quase paralisadas, Valdemar Santos bem que gostaria de usar aquele tipo de muleta que fica sob as axilas. Porém, os caroços que pipocam nessa região – e se espalham por todo o corpo – o obrigam a apelar para um modelo de bengala que sobrecarrega o antebraço. Depois de 12 longos anos inalando agrotóxicos na lavoura de fumo que cultivava em uma pequena propriedade no município de Imbituva (PR), Valdemar desenvolveu uma grave polineuropatia.
Em outras palavras, ele sofre de uma pane geral nas terminações nervosas de seu organismo, o que prejudica não apenas sua coordenação motora, mas também seu raciocínio. Hoje, do salário mínimo que recebe a título de aposentadoria por invalidez, Valdemar embolsa apenas R$ 389. O restante já é descontado na fonte para quitar as dívidas que vem acumulando por conta de seu tratamento. “Se sinto cheiro de tinta de parede, perco a vista, dá dor de cabeça, tremelique, tosse seca. Parece que aumentam o volume dentro de mim”, afirma Valdemar, simulando o giro de um botão de rádio.
Quem circula pelas rodovias da região centro-sul do Paraná entre os meses de dezembro e fevereiro, época em que a colheita do fumo está a pleno vapor, não tem dificuldades para encontrar trabalhadores pulverizando plantações, mas desprotegidos contra a ação dos agrotóxicos. Definitivamente, o verão não é lá muito saudável para as 186 mil famílias da região Sul do Brasil que cultivam em pequenas propriedades cerca de 830 mil toneladas por ano – número que faz do nosso país o segundo maior produtor e o principal exportador mundial da matéria-prima do cigarro.
“Se a empresa faz o agricultor usar um produto que o contamina, ela é responsável”
Durante o tempo em que fornecia fumo para a multinacional norte-americana Universal Leaf Tabacos (com um faturamento anual de US$ 2,5 bilhões), Valdemar, 47 anos, chegou a misturar com as mãos os agrotóxicos recomendados e vendidos pela própria empresa. Ele sustenta que os técnicos da Universal jamais o orientaram devidamente sobre os reais riscos à sua saúde. Por essa razão, entrou com uma ação na Justiça contra a companhia. O processo se arrasta há quase uma década. Se ele vencer, a conta pode chegar a sete dígitos.
Na realidade, o ex-fumicultor já ganhou tanto na primeira como na segunda instâncias. E a empresa ignorou durante meses uma ordem da Justiça que determina o pagamento de uma pensão mensal de R$ 1.200 para que Valdemar banque suas despesas médicas, enquanto o processo não tem desfecho. A multa pelo descumprimento da medida já bate na casa das centenas de milhares de reais. Mas a Universal acredita que os tribunais superiores de Brasília ainda irão virar o jogo. A advogada Vânia Santos, que representa Valdemar, corre contra o tempo: se ele morrer antes da decisão final, a indenização a que o ex-fumicultor teria direito também corre o risco de ir para o caixão. “Esse caso pode ser histórico. A Universal tem medo de que se abra um precedente e que mais fumicultores entrem na Justiça”, ela resume. Procurada, a companhia não respondeu aos questionamentos da Trip até o fechamento desta edição.
Na Lata
Valdemar e sua polineuropatia
Os agricultores que apostam no fumo para engordar o orçamento precisam assinar um contrato de “integração” com empresas apelidadas de “fumageiras”. São elas que processam as folhas de fumo e alimentam as indústrias que produzem o cigarro propriamente dito – como no caso da Universal Leaf Tabacos. Algumas fumageiras também fabricam cigarros – a mais conhecida é a Souza Cruz, líder absoluta de mercado no Brasil. Pelo sistema de integração, as empresas compram a produção e mandam um caminhão buscar o carregamento do fornecedor. Mas também vendem adubos, inseticidas e herbicidas, sem falar na prestação de assistência técnica e no financiamento da construção das estufas necessárias à secagem (ou “cura”) das folhas verdes. É por essa razão que o procurador de meio ambiente do Ministério Público do Paraná, Saint-Clair Santos, acredita que as fumageiras devam ser cobradas pela saúde de seus fornecedores. “A responsabilidade é solidária e é da empresa, é óbvio. Se ela está fazendo com que o agricultor use um produto que ao longo do tempo vai contaminá-lo, ela também é responsável”, afirma.
Iro Schünke, presidente do Sinditabaco, entidade que representa as companhias do setor, rebate as críticas: “Temos pesquisas feitas por entidades idôneas, inclusive universidades, que mostram que o tabaco é a cultura agrícola comercial que menos usa agrotóxicos”. Segundo ele, há anos as fumageiras disponibilizam equipamentos de proteção individual aos agricultores. Contudo, o procurador do MP desdenha da eficácia de máscaras e uniformes. “São um paliativo, nós sabemos que não protegem nada. Precisaria ser uma roupa de astronauta”, ironiza.
Assim como Valdemar Santos, Lídia Bandacheski do Prado é outra que, em função da exposição crônica aos agrotóxicos, também coleciona graves sequelas no sistema nervoso, que dificultam sua locomoção. Há cinco anos, ela e o marido trocaram a zona rural por uma casa simples na cidade de Rio Azul (PR). Desde então, o andador e a cadeira de rodas tornaram-se companheiros inseparáveis. “Quando tive a última crise por intoxicação, eu estava na lavoura usando equipamento de proteção”, recorda Lídia. Num raro momento de descontração, ela relembra que nos tempos de infância chegava até mesmo a disputar com as outras crianças da família “para ver quem dormia em cima da pilha de fumo e em cima da saca de BHC, um veneno que hoje está até proibido”.
Se para os representantes do setor tabagista as histórias de Valdemar e de Lídia são casos “extremos” ou “isolados”, a verdade é que os problemas de saúde que rondam os fumicultores não se restringem aos danos provocados no longo prazo pelos agrotóxicos. O simples contato da planta com a pele de uma pessoa pode causar a doença da folha verde. “A planta solta um ‘mélo’ na mão que é até complicado de lavar. Tem vezes que dá vômito, tontura, dor de cabeça. Tem gente que fica alérgica e que não pode nem sentir o cheiro das plantas na estufa”, explica Adélcio Semchechem, agricultor que vive no interior de Prudentópolis (PR). De acordo com Paulo Perna, professor de enfermagem e coordenador do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na manipulação das folhas durante a colheita “há uma absorção de nicotina pela pele quase que instantânea e que equivale a mais de um maço de cigarros por dia”.
Devo, não nego
Depois de sucessivas safras malfadadas, o fumicultor Adélcio Semchechem, 34 anos, acumula uma dívida de R$ 32 mil com uma fumageira cujo nome ele prefere não revelar. “Eles vendiam os insumos: adubo, veneno, semente. A gente pagava em produção, mas nunca baixava, sempre eu estava devendo para eles. Dava muito juro, uma coisa que a gente não entende muito bem”, ele tenta explicar. Adélcio não possui sequer uma cópia do contrato de integração que assinou com a fumageira. Mesmo assim, foi pressionado por um representante da empresa a assinar uma confissão de dívida. Não raro, esse documento está atrelado à hipoteca da propriedade. Traduzindo: se não pagar o que deve, o fumicultor perde a terra. Adélcio, então, resolveu questionar na Justiça o valor que supostamente precisa pagar. Agora, a empresa vai ser obrigada a explicar por que cobra tanto dinheiro. “Não quero judiar deles, mas não quero que eles judiem de mim. Eu quero é acertar”, explica. Ele ainda planta fumo, mas só vende a atravessadores chamados sugestivamente de “picaretas”.
No caso de Tarcísio Michalczuk, o rombo nas contas começou quando ele resolveu substituir a estufa a lenha por uma elétrica, por recomendação da Alliance One, outra peso-pesado do setor do fumo. Ele pegou quase R$ 20 mil com a empresa para construir o novo equipamento. “Mas, em vez de secar, as folhas apodreciam. Nem os técnicos sabiam por quê”, conta. Apesar de já ter pagado um valor que se aproxima do financiamento inicial, Tarcísio calcula que ainda deve cerca de R$ 40 mil. “Trabalhei mais do que cavalo emprestado para cumprir com meu compromisso”, afirma. Depois de romper o contrato com a Alliance One, a briga também foi parar na Justiça. Tarcísio não acha certo que o prejuízo recaia inteiramente sobre suas costas. “Até um ex-técnico da empresa testemunhou a meu favor, disse que a lavoura era boa”, sustenta. Enquanto aguarda a conclusão do processo, Tarcísio agora aposta em ervas medicinais. Desistiu do fumo e garante que não volta mais.
Na Lata
detalhe de placa sobre agrotóxicos
Em nota, a Alliance One afirma ter tentado negociar uma solução amigável com Tarcísio para que ele continuasse produzindo. Além disso, sustenta que as dívidas do agricultor não se devem apenas ao financiamento da estufa, mas também ao fato de ele não ter conseguido entregar o volume acordado ao longo das safras. “Quanto à alegação do não funcionamento da estufa, é importante salientar que centenas de produtores da Alliance One usam o modelo com eficiência.”
Sem saída?
Depois que o tabaco é colhido e curado em estufas no verão, tem início a fase de classificação das folhas secas, a partir de março. Elas são divididas em ramos chamados de “bonecas”. Essa etapa leva mais de três meses e tem importância fundamental: o preço a ser pago pela empresa varia de acordo com a cor, o tamanho e a textura de cada fardo. Para dar conta do ritmo alucinante da classificação, muitos agricultores recorrem à ajuda dos filhos pequenos. Em 2007, o Ministério Público do Trabalho estimava em 75 mil o número de crianças envolvidas na fumicultura, apenas no Paraná e Santa Catarina. “Somos contrários a que o produtor use crianças e adolescentes até 18 anos nas atividades relacionadas ao tabaco”, garante Iro Schünke, do Sinditabaco. Desde o ano passado, as fumageiras vêm inclusive ameaçando quebrar o contrato dos produtores que recorrem ao trabalho infantil. Mas, na avaliação do procurador do MP do Paraná, essa pressão transfere toda a culpa para o lado mais fraco e desvia a atenção do real problema. “Por causa do contrato a que se submetem, os fumicultores acabam entrando nessa roda-viva. Certamente, se pudessem escolher, fariam todo o serviço sozinhos, mas eles não conseguem”, ressalva Saint-Clair Santos.
Por fim, vem a época da comercialização da safra, lá para o mês de junho. Existem 41 categorias definidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para determinar a qualidade e o preço de uma folha de fumo. O problema é que o agricultor faz uma classificação prévia e espera determinada remuneração por ela. Porém, quando chega ao pátio da fábrica, o valor da sua produção é invariavelmente rebaixado. Em média, o quilo não passa dos R$ 6. E comprar briga nem sempre é a melhor solução. “Tem indústria que fica a 400, 500 quilômetros da propriedade do agricultor. Se não concordarem com o valor pago pela empresa, ele faz o quê? Volta para casa com uma safra inteira?”, revolta-se Anderson Sviech, 29 anos, fumicultor do município de Palmeira (PR).
“Vou parar de plantar tabaco e não vai morrer mais ninguém da minha mão”
“Os agricultores têm consciência de que a fumicultura é degradante”, afirma Paulo Perna, da UFPR. O núcleo coordenado pelo professor está concluindo uma pesquisa com produtores de Rio Azul. Os resultados preliminares apontam que mais de 70% das famílias abandonariam a atividade se tivessem uma alternativa econômica viável. Mas é exatamente esse o problema. Apesar dos pesares, o sistema de integração das fumageiras ainda responde aos principais entraves enfrentados por qualquer agricultor familiar: garantia de renda e de escoamento da produção.
Por essa razão, a cadeia do tabaco é defendida com unhas e dentes pelo presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), Benício Werner. Apesar de em tese representar os agricultores, a entidade é tida como muito próxima às fumageiras. Não à toa, os argumentos utilizados pelo seu presidente são bastante similares aos do Sinditabaco. Para Benício, os produtores endividados representam uma “minoria” e o dinheiro gerado pelo tabaco literalmente salva a lavoura das pequenas propriedades no Sul do país. “Para obter a mesma receita de 1 hectare de fumo, são necessários 7 hectares de milho”, compara.
Se depender da Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de tabaco diminuirá consideravelmente nas próximas décadas. Daí, o mercado vai fatalmente se afunilar e os fumicultores brasileiros terão mais uma batata quente para administrar. De olho nessa bomba-relógio, o governo federal até criou um programa, em 2005, para estimular a diversificação nas lavouras. Mas os recursos não passaram de tímidos R$ 26 milhões nos últimos seis anos. Apesar do horizonte nebuloso, muitos agricultores vêm se mexendo. É o caso de Adélcio Semchechem. Desde que entrou para um projeto do Instituto Os Guardiões da Natureza, organização sediada em Prudentópolis (PR) que promove a agroecologia, ele passou a fornecer hortaliças orgânicas a escolas e hospitais da região. Por ano, ele tira até R$ 4.500.Além disso, está apostando suas fichas na lavoura de morango. No futuro mais breve possível, Adélcio pretende deixar de vez o fumo – planta que ele lamenta cultivar. “É como cometer um crime e se arrepender depois. Vou parar de plantar tabaco e não vai morrer mais ninguém da minha mão”, conclui.
* O jornalista Carlos Juliano Barros e a ONG Repórter Brasil estão produzindo um documentário sobre os problemas da cadeia produtiva do tabaco
(*) Reportagem da revista Trip.