Por Maria Emilia Pacheco, para o Atlas dos sistemas alimentares do Cone Sul*

O contexto da pandemia mobilizou-nos a pensar e atuar sobre os sentidos e os impactos dos sistemas agroalimentares na atualidade. Estudos e debates mostraram que o aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção alimentar do modelo industrial da agricultura com os monocultivos, os laboratórios de manipulação genética, desmatamento e a produção animal em confinamento. O alimento reduzido à mercadoria produz doença e não reduz a fome no mundo.

Vivemos o desafio contemporâneo de construir a transição para um sistema alimentar que fortaleça vínculos entre produção, consumo, saúde e conservação ambiental, na perspectiva da Soberania Alimentar e do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas. Mas tudo indica que estamos ainda distantes de sua realização em virtude dos processos de mercantilização, privatização da natureza, da artificialização e padronização dos alimentos pelo poder da indústria.

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O Relatório das Nações Unidas sobre O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo em 2023 (Sofi) estima que entre 691 e 783 milhões de pessoas no mundo enfrentaram a fome em 2022. Prevê-se também que quase 600 milhões de pessoas sofrerão de subnutrição crônica em 2030. E os dados mostram que a insegurança alimentar afeta mais as mulheres do que os homens em todas as regiões do mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que mais de 1 bilhão de pessoas são obesas, número que continua aumentando. O consumo crescente de produtos alimentícios ultraprocessados leva a uma série de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, hipertensão, acidente vascular cerebral e várias formas de câncer.

O sistema agroalimentar está sob o domínio de corporações. São tempos dos impérios alimentares, como nos diz Van der Ploeg (2009). Há um entrelaçamento dos processos de industrialização da agricultura; a introdução do mercado global como princípio ordenador da produção e comercialização agrícola e a reestruturação da indústria de processamento, de grandes empresas de comercialização e de cadeias de hipermercados. Junto com o mercado global neste contexto são geradas as várias crises alimentar, agrária, ambiental e climática.

Ascensão neoliberal

Esses processos têm como pano de fundo a ascensão neoliberal com as novas formas de apropriação e de valorização do capital, acompanhadas de mudanças de paradigmas e de conceitos, expressos na relação natureza, sociedade e economia.

Rememoremos um pouco a história. Em 1986, iniciou-se a negociação da chamada Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que deu origem à Organização Mundial do Comércio (OMC). Naquele momento, os Estados Unidos passaram a exigir a propriedade intelectual não só para as invenções industriais e para as obras intelectuais. Colocou-se em cena a afirmação do direito de monopólio, através de patentes, sobre seres vivos e sobre o conhecimento.

Como decorrência, um novo marco legal seria necessário para favorecer a apropriação de plantas e sementes. Vejamos: um microbiologista, então funcionário da empresa General Electric (G.E.), solicitou concessão de patente para um microrganismo geneticamente projetado para devorar derramamentos de óleo nos oceanos. Rejeitada inicialmente, a tese acabou por consumar-se por estreita margem de cinco a quatro dos votos entre os juízes. O juiz presidente argumentou que “a distinção relevante não era entre seres vivos e objetos inanimados, mas se o microorganismo de Chakrabarty (nome do microbiologista) era ou não uma invenção realizada pelo homem” (Rifkin, 1999).

Essa decisão começou a respaldar acordos para criar uma estrutura de proteção à propriedade intelectual apoiada por conjunto de empresas, dentre as quais, muitas do campo da biotecnologia, como a Merck, Pfizer, Monsanto e Dupont. Na primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992, conhecida como ECO 92, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), definiu a natureza como recurso. E sucedeu-se a adoção de normas como as leis de patentes que criam direitos de propriedade intelectual sobre variedades de plantas. Essa decisão cimentou a submissão dos recursos biológicos e genéticos à lógica do mercado, co locando em questão o sistema de valores, pois os bens como plantas e animais têm um sentido ontológico ou de valor de uso para o campesinato, povos e comunidades tradicionais.

A mudança do significado da natureza seguiu seu curso, com a transformação recorrente da natureza em fonte de lucro na chamada nova economia. As formas de destruição e exploração da natureza e os recursos naturais (desmatamento, exploração mineral, grandes projetos, expansão dos monocultivos) passaram a caminhar junto com o objetivo das atividades econômicas em nome da “conservação da natureza” subordinada aos negócios como ativos e riscos. Foram sendo criados novos cercamentos para os povos e comunidades tradicionais com os mecanismos financeiros como parte das negociações do Acordo sobre Clima como o sistema REDD – redução de emissões por desmatamento degradação florestal nos países em desenvolvimento. As empresas ou estados nos países industrializados poderiam alcançar suas metas de redução de CO 2 com a compra de certificados florestais como mecanismo de compensação e a continuidade de poluição no mundo industrializado seria assim atenuada.

É essa perspectiva de financeirização da natureza, de mercantilização da vida, da terra como ativo financeiro, especialmente desde a crise alimentar de 2008, que pavimentou os caminhos da Cúpula dos Sistemas Alimentares em 2021. São tempos do mercado e novas tecnologia buscando comandar a vida na relação da natureza com a economia a serviço do capital na agora chamada economia verde.

Acumulação primitiva

Sob o domínio das grandes corporações da cadeia industrial de alimentos, foi favorecida a agenda de grandes financiadores como a Fundação Bill e Melinda Gates, Fundação Rockefeller; gigantes da agroindústria e da indústria de alimentação como Nestlé, Unilever; das empresas que controlam o mercado de sementes, agroquímicos como – Bayer-Monsanto, Dow Dupont que formaram a Coterva, ChemChina-Syngenta. E novos agentes que representam transferência de poder e novas formas de acumulação e expropriação entraram em cena: empresas de dados como Google, Amazon e Microsoft, com as tecnologias digitais de controle de informações da agricultura e alimentação.

É uma nova fase de acumulação primitiva do capital sobre diversos componentes da natureza, até então fora do mercado e vem acompanhada das plataformas digitais. Os fabricantes de máquinas e plataforma de dados fazem uma convergência para a chamada “agricultura de precisão”, ou “agricultura digital”, ou “agricultura baseada em dados”, nas tecnologias digitais e o tratamento algorítmico de grande volume de dados (big data) A concepção de produção de alimentos é reduzida a um “problema de otimização”, com registros sobre clima, umidade do solo, pragas, histórico das culturas transformadas em dados.

Há também um processo de artificialização e desmaterialização do alimento. Os significados socioculturais imateriais dos alimentos como identidade, cultura, tradição, memória são abandonados em favor dos alimentos como bens de mercado, privados e comercializáveis. Há tecnologias com o objetivo de obter informações sobre as escolhas da população consumidora, em um contexto em que cresce o consumo dos produtos alimentícios ultraprocessados. São novos cercamentos.

Esses produtos não são propriamente alimentos, mas formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), derivados de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratórios com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes realçadores de sabor e vários tipos de ativos). Buscam dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes, com impactos na saúde, na cultura alimentar e na vida social, como analisa criticamente, por exemplo, o Guia alimentar da população brasileira.

Resistências

Mas há sujeitos coletivos da resistência neste contexto de crescente comoditização dos alimentos. Relembremos a história de defesa dos bens comuns. Há muitos séculos, em 1215, a Carta do Bosque na Idade Média protegia os comuns. A subsistência da população dependia da madeira e do direito ao pasto comum. Essa carta foi um documento jurídico contrário aos cercamentos, às privatizações e apropriação em detrimento do uso comum do povo para o seu sustento. As mulheres exerceram um papel primordial nessa defesa.

No longo tempo que nos separa daquela época, em 2009, a cientista Elinor Ostrom, Nobel da Economia, retomou a tese que reconhece o significado das regras comunitárias que regulam o uso comum de recursos como lagos e rios, florestas, pastos. Sabemos hoje que milhões de pessoas em todo o mundo dependem dos bens comuns para suas necessidades alimentares e constituem sistemas de coexistência com os bens da natureza baseados em formas de organização social coletiva, e não em mecanismos de mercado ou baseados em regulação estatal.

A gestão dos bens comuns, baseada em tradições e experiências históricas baseados nos princípios de solidariedade, reciprocidade face aos outros e responsabilidade face ao planeta continua impulsionando a luta dos sujeitos de direitos contra os cercamentos. A defesa da “natureza como mãe terra”, especialmente nos países da América Latina, as propostas sobre os Direitos da Natureza reconhecidos nas Constituições da Bolívia e Equador alimentam os debates na atualidade.

A mobilização internacional pela soberania alimentar, expressa na Declaração de Nyeleni, rejeita a mercantilização dos recursos alimentares, reconhecendo que os direitos coletivos e o acesso aos bens comuns são pilares fundamentais da construção da soberania dos povos. Reafirmam a agroecologia e sua perspectiva emancipatória com o objetivo da transformação dos sistemas alimentares em conexão com a natureza.

Na sua dimensão social, a agroecologia defende as relações de igualdade, reconhecendo que as mulheres historicamente são as guardiãs da biodiversidade e dos bens comuns. Posiciona-se contra o racismo e reconhece que uma sociedade pluriétnica com diferentes formas de apropriação e uso da terra e dos bens da natureza é um componente fundamental da democracia e do enfrentamento dos grandes desafios na relação entre sociedade e natureza.

Por isso, reafirmamos o papel chave dos sistemas alimentares territoriais construídos por quem produz alimentos diversificados, protege a biodiversidade, a saúde e a natureza. E defendemos que estejam no centro dessa luta os princípios do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas, da soberania alimentar, da agroecologia e os valores de justiça social, alimentar e da democracia.

*Maria Emilia Pacheco é assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).