Falta de participação dos atingidos nas resoluções e transparência sobre os reais impactos do rompimento da barragem da empresa Samarco/Vale foram as principais denúncias da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce. Após percorrer de Mariana até a foz o Rio Doce no litoral capixaba, as quatro rotas envolvendo cerca de 130 pessoas realizaram uma mesa de debate e um ato político em Governador Valadares (MG) na tarde do último sábado (16). Os pescadores, agricultores, indígenas, quilombolas e pesquisadores, dentre outros segmentos da sociedade, representando mais de 40 entidades, produziram uma carta política que será encaminhada a organizações internacionais para buscar a punição dos responsáveis e as devidas reparações aos afetados.
O evento contou com forte apoio da igreja local, que vem atuando nos últimos anos em relação à problemática da mineração em Minas Gerais e participou da criação do Fórum Permanente da Bacia do Rio Doce. O Conselho Episcopal criou também um departamento Igreja e Mineração na América Latina para acompanhar cerca de 300 projetos na região, e em 2013 o arcebispo de Mariana instalou uma comissão de meio ambiente para discutir a mineração no Rio Doce antes da tragédia acontecer. De acordo com Gabriel Riva, da coordenação do Fórum, as empresas e o governo têm o capital e a mídia mas os movimentos têm uns aos outros para lutar pelos seus direitos.
“A ideia do Fórum é criar uma política para a bacia e unir toda essa diversidade de movimentos. São pessoas que querem agir, mas suas vozes não chegam aonde se precisa. Chegar às autoridades responsáveis para reconquistarmos nossos direitos. Vemos o que falta no acordo entre os governos e as empresas, e o contraste de um papel frio feito às escondidas num escritório com esse movimento de debates, atividades culturais, rodas de conversas, oficinas, etc. Por isso, não reconhecemos esse acordo até que ele tenha o som, o cheiro e a cara de cada um de nós. Precisamos nos unir e comunicar para pressionar”, disse
Uma das comunidades visitadas pela caravana e atingida pelo rompimento da barragem foi a aldeia dos indígenas Krenak, que fica em Resplendor, no estado de Minas Gerais. Segundo sua jovem liderança, Douglas Krenak, as empresas e governos estão levando as riquezas dos territórios e deixando só a tragédia. Há muitos anos seu povo vem lutando em defesa do meio ambiente, mas até hoje o que ocorre é a exclusão e negação dos povos tradicionais nos espaços criados de participação e decisão, acrescentou.
“Estamos meio desesperados, porque o rio é uma fonte riquíssima de sustentação do nosso povo. O problema é essa criação de barragens descontrolada sem a opinião dos povos, gerando um genocídio de comunidades tradicionais no longo prazo. Não temos tratamento de esgoto, é tudo usado diretamente do rio. Mas não devemos esmorecer, e vamos lutar contra isso”, afirmou.
O número de mosquitos tem crescido com a morte dos sapos e são notados outros sinais de desequilíbrio no ecossistema da aldeia. Os moradores estão preocupados devido à vulnerabilidade e precariedade do local, além da falta de acesso a políticas públicas, relatou o jovem indígena. Para ele, nada vai adiantar se a empresa continuar suas atividades trazendo os mesmos malefícios e não houver uma conscientização ecológica das futuras gerações.
“A natureza é muito generosa, mas na hora de cobrar não faz distinção de pobre, índio, rico, preto, branco, por isso temos que cobrar desses caras. Querem tirar as pessoas da beira do rio e reflorestar, mas a empresa continua lá causando a mesma desgraça. Enquanto o câncer não for destruído no coração do Rio Doce, isso vai continuar: é uma luta árdua e constante. Enquanto continuarem minerando sem fiscalização será praticamente em vão. Tudo que ela faz é mínimo para compensar sua devastação ao meio ambiente”, desabafou.
A ciência em questionamento
É preciso questionar para quem e para quê a ciência tem contribuído nesse processo, segundo Marcelo Firpo, da Fiocruz. Se as pesquisas têm atendido ao capital, violência e lucro, ou à união, preservação do meio ambiente e busca pela vida e dignidade, complementou. Em sua opinião, os estudos têm compactuado para tragédia e para o crime pois, embora apresentados como objetivos e neutros, são alienados e alienadores.
“Essa ciência está totalmente embebida de conflitos de interesses. É um absurdo, por exemplo, que exista um prêmio Capes/Vale para projetos científicos. A forma promíscua entre público e privado, que investe recursos públicos para projetos que violam direitos e não contextualizam as vidas envolvidas. Dialogam com os financiadores, mas não com as comunidades atingidas. Formam padrões que se repetem de relatórios de avaliação de impactos ambientais e licenciamentos, com o estado fragilizado sem técnicos e financiado pelas grandes corporações”, criticou.
A Vale é uma das principais financiadoras a políticos, tanto do governo quanto opositores, daí as críticas quanto à isenção e capacidade dessa ciência que legitima esses projetos. “Por isso a importância de contra relatórios para mostrar as mentiras das soluções preventivas, e como essa tragédia foi anunciada e podia ser prevenida se não fosse o boom das commodities com o aumento da produção e diminuição da segurança dessas empresas. Precisamos de uma ciência de diálogo com as demandas e saberes locais para contribuir nos processos de luta e respeitar os direitos humanos”, concluiu.
Intervenção do Ministério Público
Partindo do princípio que não foi um desastre natural, porque teve a mão do homem no desenvolvimento tecnológico da barragem, o Ministério Público Federal entrou com ações contra a empresa Samarco em defesa dos direitos dos atingidos. De acordo com Edmundo Antônio Dias, da Procuradoria da República em Minas Gerais, o crime deveria ser evitado pela empresa e os entes federativos que assinaram o acordo e têm o dever de fiscalizar tais instalações.
“Os 20 mortos continuam aguardando a punição criminal e investigações. As medidas reparatórias, mitigatórias e compensadoras devem ser melhor analisadas. O acordo padece de um vício essencial, que é não realizar um processo de oitiva escutando as demandas das comunidades afetadas por essas empresas e entes federativos. Assim foram violados diversos direitos dos atingidos. Viola o devido processo do direito legal coletivo, pois não ocorreram pesquisas de opinião, audiências públicas e outros métodos modernos para aferição dos danos e reparações”, explicou.
Para o procurador, o drama da barragem se desenvolve em várias dimensões porque além da questão ambiental, que causou a mortandade da fauna e peixes do rio e danos irreparáveis a vidas humanas, há também uma relação espiritual dos indígenas e comunidades tradicionais que não são mensuráveis. Ele também criticou a criação da Fundação, que será responsável pela gestão desse acordo realizado entre a empresa e os órgãos do governo junto ao Ministério Público. “Mais uma vez não aconteceu consulta prévia. Apesar da falta de avaliação técnica adequada está em vias de ser constituída uma fundação, e o acordo tem limitações em relação ao valor estipulado porque não está vinculado à reparação do dano e sim ao conceito de faturamento e lucro das empresas”, concluiu.