“Assim como a agroecologia é mais que o cultivo de alimentos sem veneno, a cultura não se restringe apenas ao entretenimento e a comunicação não diz respeito apenas às ferramentas de divulgação. Quando a gente compreende a comunicação e a cultura como direitos e bens comuns, a democratização da comunicação e o respeito que fomenta a diversidade cultural passam a ser percebidas como centrais na efetivação da democracia.” – (Marcelo Almeida, jornalista e comunicador popular)
“Certa vez, desenhei uma uva em uma roça, uva é um desenho fácil, bonito e eu precisava finalizar o painel. Ao final do evento, a agricultora que havia feito a fala que eu havia registrado aproximou-se e me disse “Que liiindo! Mas não tem uva na minha roça…”. Pedi desculpas e perguntei: ‘O que tem na sua roça? Eu posso corrigir e desenhar exatamente o que tem lá’. ‘Lá tem mel, tem macaxeira, de fruta, tem abacaxi”.
O depoimento da facilitadora gráfica Muriel Duarte, que também é educadora e psicóloga, destaca um princípio dos mais caros à comunicação agroecológica: a necessária conexão com as diversas expressões dos povos dos campos, das florestas, das marés e das cidades. E que trazem na sua territorialidade cada maneira particular de “ser e estar” e que se manifesta nas comidas, poesias, rezas, danças, espiritualidades, sotaques e outras expressões do viver e de se relacionar com as pessoas e com os lugares.
É no campo dos processos e práticas comunicativas desenvolvidas pelos sujeitos coletivos mobilizados na luta por direitos e por justiça social que se realiza e se fortalece a comunicação popular e agroecológica. E não poderia ser diferente com a facilitação gráfica, uma metodologia de sistematização visual de ideias através de palavras e desenhos, utilizando ilustrações, ícones, conexões, fluxos, mapas, listas, sequências e gráficos, agrupando e hierarquizando as informações.
Orientada pelo pensamento visual (visual thinking), a facilitação gráfica é construída em paineis que podem ser feitos em papéis ou digitalmente, com o objetivo de apoiar em processos de planejamento, inovação, tomadas de decisão, resolução de problemas complexos, mediação de conflitos, registro e memória de diálogos, aprendizagem de conceitos, além de estimular o comprometimento de grupos e comunidades no alcance de objetivos, ao provocar inspiração e encantamento.
Projeto Memórias Gráficas
Há mais de 10 anos a facilitação gráfica vem colorindo a agroecologia no Brasil, apoiando o diálogo de saberes, a construção do conhecimento agroecológico e a comunicação popular do movimento agroecológico. É do desejo de reconstruir essa história que nasce o Projeto Memórias Gráficas da Agroecologia, que consiste na catalogação dos principais painéis elaborados em eventos, encontros e projetos das organizações vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e à Associação Brasileira de Agroecologia (ABA Agroecologia).
A iniciativa é animada pela equipe da plataforma Agroecologia em Rede (AeR) e pela Agenda de Saúde e Agroecologia vinculada à Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pela sua viabilização financeira.
Por meio dessa catalogação, foi possível evidenciar histórias e metodologias construídas pelas facilitadoras e pelos facilitadores e pesquisar a contribuição da facilitação gráfica para o fortalecimento da agroecologia no Brasil. “Os painéis são sínteses gráficas que contribuem para os processos coletivos de construção do conhecimento agroecológico, pois além de organizar as ideias, as reflexões e os depoimentos que surgem numa atividade, eles se tornam materiais de comunicação e de memória muito bonitos. E eu entendo que toda metodologia ou ferramenta que nos ajude a contar uma história sob a perspectiva dos sujeitos coletivos, dos povos da floresta, do campo e das águas, contribui para o fortalecimento da agroecologia”, destaca o jornalista Marcelo Almeida, que coordenou o processo de Relatoria do IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em maio de 2018 na cidade de Belo Horizonte (MG).
O projeto Memórias Gráficas foi protagonizado pela facilitadora gráfica Muriel Duarte e pela arquiteta Patricia Nardini, e conta com a colaboração da ANA, por meio da Coletiva de Comunicação, e da ABA-Agroecologia, por meio do GT de Construção do Conhecimento Agroecológico. “Esse projeto é fruto de um grande sonho coletivo. Sonhei e realizei uma parte desse sonho. Meu papel foi rememorar nossa caminhada desde o III ENA em Juazeiro (BA) e convidar as pessoas que participaram dessa caminhada a colaborarem com o projeto. Toda a organização da catalogação dos painéis, um trabalho minucioso e que exigiu muita paciência, foi da Patrícia Nardini, que é uma super ilustradora, facilitadora gráfica, arquiteta e militante pela agroecologia”, destacou Muriel.
Diálogo de saberes
A linguagem pictórica, expressada através de desenhos, símbolos, ícones e outros signos, são capazes de expressar significados inesgotáveis em seus contornos de forma quase imediata. Não por acaso, a humanidade registra seu cotidiano em imagens desde o tempo das cavernas, através de pinturas rupestres que revelam as relações históricas com o sagrado e muitas estratégias de caça e proteção. Também compõem a memória política da vida de um povo, a exemplo dos cartazes produzidos por povos latinoamericanos, principalmente no enfrentamento aos regimes ditatoriais implantados entre as décadas de 1960-70. São narrativas visuais construídas de forma alternativa e popular e que se configuram como importantes instrumentos de comunicação, opondo-se à hegemônica mídia de massas. No Brasil, a resistência ao regime militar também produziu cartazes icônicos que comunicavam as violências da ditadura.
Entre os movimentos sociais, a linguagem gráfica é utilizada há tempos para comunicar suas lutas, a exemplo das trabalhadoras e dos trabalhadores sem terra e movimentos feministas. Na trajetória de construção do movimento agroecológico, a facilitação gráfica se mostra fundamental para potencializar o diálogo de saberes entre pessoas com diferentes repertórios, como educadores e estudantes, pesquisadoras/es e agricultoras/es e, especialmente, entre as linguagens acadêmica e popular.
“Em sua prática, a facilitação gráfica é protagonizada por facilitadoras e facilitadores também ligados ao movimento agroecológico, ou a outras causas sociais e ambientais, e vêm registrando diálogos em todo o Brasil. Com a influência da educação e comunicação popular, das cores características dos movimentos sociais, dos desenhos sempre presentes nas cartilhas agroecológicas, a facilitação enquanto metodologia de construção do conhecimento agroecológico mistura-se com a linguagem popular ganhando assim, uma nova estética genuinamente brasileira”, destaca a facilitadora Muriel Duarte.
Os painéis são importantes instrumentos de comunicação da agroecologia enquanto ciência, prática e movimento social e podem ser utilizados para múltiplos fins, como por exemplo em aulas, na sistematização de experiências e metodologias, em processos de reivindicação de direitos e de defesa e argumentação em tomadas de decisão ou na resolução coletiva de problemas, assim como na comunicação de ações para a sociedade, compondo publicações, relatórios e redes sociais.
Ao trabalhar com com imagens e ícones, a facilitação gráfica potencializa a compreensão de conceitos, ideias e situações de forma direta e sintética e permite uma expressão compartilhada de ideias, potencializando o diálogo de saberes, a escuta e participação ativa de uma maior diversidade de sujeitos e a democratização de acesso à informação. Além disso, os painéis estimulam o pensamento sistêmico, a partir do qual os grupos conseguem memorizar e pensar globalmente de forma a permitir comparações, localização de padrões e mapeamento de ideias.
Perspectivas como essas, associadas à importância da facilitação gráfica para a agroecologia, se evidenciam em diferentes experiências realizadas pelo Brasil. No “Carrossel da Cultura e da Comunicação: as juventudes colorindo suas lutas”, realizado em 2015 no Rio de Janeiro, por exemplo, a facilitação gráfica se destacou a partir das possibilidades de uso nos estudos, na organização e sistematização das lutas vivenciadas pelas juventudes em seus territórios e até como uma potencial fonte de renda. Mais recentemente em 2018, a realização do IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) intensificou a compreensão coletiva dos processos de comunicação e cultura como formas de construção de conhecimento e, portanto, eixos de luta. Na ocasião, a formação ampliada de facilitadoras e facilitadores gráficos, conduzida por Patrícia e Muriel, foi fundamental para fortalecer a garantia da memória coletiva desses processos.
“Para atuar com facilitação gráfica, não precisa necessariamente saber desenhar. É possível criar desenhos a partir de formas geométricas simples, como quadrados, círculos e triângulos. O desenho precisa apenas comunicar, mais do que ser belo, claro que quanto mais bonito, maior é o encantamento que os painéis provocam. Porém, enquanto uma metodologia de sistematização de ideias, o mais importante é comunicar. Saber escutar e saber organizar a informação são habilidades importantes para atuar com facilitação gráfica. Compreender de forma política e empática as interlocutoras e os interlocutores também é fundamental para uma boa síntese gráfica. Como os encontros da agroecologia têm entre os seus propósitos fortalecer o movimento agroecológico nas diferentes partes do país, cada pessoa chega com o coração aberto para os aprendizados e trocas daquilo que mais toca. Então, vieram muitas pessoas dispostas a mergulhar no universo da facilitação gráfica e foi uma etapa muito importante para a construção da memória e das narrativas do IV ENA”, destaca Muriel.
Colheita e partilha
Ao todo, foram coletados e catalogados 167 painéis gráficos de 36 eventos do movimento agroecológico, produzidos por 53 facilitadoras e facilitadores gráficos e que podem ser encontrados por tema, evento ou pelos nomes das pessoas que compõem a rede de facilitadoras e facilitadores gráficos do movimento agroecológico. Para que esse acervo inicial fosse construído, foram realizadas oficinas com representantes da ABA-Agroecologia e da ANA, que organizaram um processo de consulta e colheita junto a uma rede ampla de facilitadoras e facilitadores gráficos a partir de 2020. Patrícia Nardini conduziu a catalogação e o tratamento de cada uma das imagens dos painéis e a Cooperativa Eita organizou a primeira partilha no site do Agroecologia em Rede (AeR).
É importante ressaltar que a cuidadosa catalogação desses painéis e a partilha mediada pela plataforma do AeR também só foi possível devido ao empenho das facilitadoras e dos facilitadores gráficos espalhados por diversos estados do país em contribuir com o acervo. Na página do Projeto Memórias Gráficas, é possível encontrar os painéis de cada facilitadora e facilitador que contribuíram diretamente com o projeto, buscando seus respectivos nomes na ferramenta de consulta. Por acreditar no potencial criativo do conhecimento compartilhado e entendê-lo com bem comum, o AeR buscou partilhar os painéis gráficos para consulta e uso não comercial por organizações e grupos que partilham os princípios e lutas políticas da agroecologia. A disponibilização destes painéis busca fortalecer a resistência dos povos, comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares que lutam por seus direitos nos territórios, devendo ser utilizados para fins de uso público, não privado e em concordância com os princípios político-pedagógicos expressos no AeR, disponíveis aqui.
Sabemos que há inúmeros painéis espalhados pelo Brasil e pelos quatro cantos do mundo, mas que ainda não estão aqui. Seguimos com esse esforço de criar condições de realizar uma nova etapa desse projeto de organização coletiva da nossa memória em rede. Você é facilitador/a gráfico e possui painéis relacionados à eventos do movimento agroecológico que gostaria de disponibilizar neste acervo? Entre em contato em [email protected] e dialogaremos sobre a inclusão dos painéis.
Texto: Priscila Viana/AeR
Artes Gráficas: Bibi Cancian/AeR
Foto de destaque: Mídia Ninja
Fotos utilizadas nas artes gráficas: Eduardo de Oliveira