Por Gilka Resende, para o FBSSAN
Após realizar seu 7º Encontro Nacional, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) lança hoje (17) uma Carta Política à sociedade. O documento reflete o acúmulo a partir dos debates, oficinas e de uma plenária, onde cerca de 130 participantes, de variadas áreas de conhecimento e regiões do país, estiveram reunidos em Porto Alegre.
O texto aponta que “é preciso enfrentar as contradições brasileiras no campo da soberania e segurança alimentar e nutricional”. Ressalta que a notoriedade do Brasil no campo alimentar e de enfrentamento à pobreza “não deve servir de instrumento para a difusão de modelos de produção e consumo que causem danos ambientais e culturais onde são implementados”.
Constata, ainda, que a “chamada crise alimentar” é, de fato, um sintoma de “um sistema alimentar em crise”. Na Carta, o Fórum se posiciona contra pilares desse modelo, tais como: as monoculturas de grandes escalas; o uso de venenos; o controle por grandes corporações, desde o plantio até o varejo das produções; os padrões de consumo de baixo valor nutricional estimulados por uma publicidade de alimentos dirigida, principalmente, ao público infanto-juvenil; dentre outros.
Diálogo entre Estado e sociedade civil
Como atividade de encerramento do Encontro, realizado entre 4 e 6 de junho, o FBSSAN organizou uma mesa de diálogo entre o governo federal e a sociedade civil organizada. Michele Lessa, da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), centrou sua fala nos “motivos para comemorar”. Ela citou o combate à fome, à desnutrição e a implementação dos programas Bolsa Família e Brasil Carinhoso. Mas, diante das críticas, admitiu que o governo precisa realizar ações de combate ao uso de agrotóxicos, que prejudica populações e o meio ambiente. E, sobre o fato do país não possuir políticas nacionais de abastecimento e agricultura urbana, se comprometeu a levar as reivindicações do Fórum aos 19 ministérios que formam a Caisan.
Maria Emília Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), reconheceu avanços no acesso ao alimento. Porém, acrescentou que que é preciso ver a alimentação como um ato político, entrando em disputa a qualidade desse alimento. Chama atenção, por exemplo, a epidemia de sobrepeso e obesidade que atinge, respectivamente, 30% e 15% das crianças brasileiras de 5 a 9 anos, conforme recentes dados do IBGE.
Diante da situação, ressaltou que “o grande desafio é aprofundarmos o que entendemos por público”, porque “na prática há sistemas de regulação privados que estão orientando as políticas dos governos”. Criticou, ainda, o “tom cínico” dos que dizem que a “atividade regulatória pressupõe comparar riscos e benefícios”, estando, portanto, em num campo que vai “implicar na aceitação de certos danos prováveis em troca de benefícios maiores”. “A questão então é saber que danos são esses e quem são os impactados. A proteção do direito humano à alimentação e da soberania alimentar deve estar acima dos interesses de mercado”, garantiu.
“Estamos vivendo um contexto de flexibilização de direitos, o que é uma situação bastante grave. É preciso não perder de vista que os impactos deste modelo hegemônico de produção e consumo de alimentos não afeta igualmente a todos os setores da população. Estamos vivendo uma acumulação de riquezas por despossessão”, afirmou Maria Emília lembrando o geógrafo britânico David Harvey.
O exemplo “mais gritante” dessa lógica, na opinião da antropóloga, é a situação de indígenas, quilombolas, entre outros povos tradicionais ao terem seus territórios usurpados em nome do desenvolvimento. “A situação no Brasil é tão complicada que o que os juristas costumam chamar de arcabouço infra-legal está ganhando um estatuto que se iguala ou até supera as próprias leis”, disse. A Carta do FBSSAN destaca que essa realidade compromete a “capacidade de produzir alimentos que expressem identidades étnica, social, cultural e religiosa”.
Nova agenda política: a defesa da comida como patrimônio cultural
As organizações, redes e movimentos sociais integrados ao FBSSAN defenderam o fim dos venenos e dos transgênicos. Em contraponto à lógica do agronegócio, manifestaram que é possível e necessário adotar o “resgate e a disseminação de práticas alimentares e da culinária que preservem a cultura e a autonomia” das diversas regiões do país.
A Carta aponta que as legislações sanitárias vigentes não garantem alimentos de qualidade, mas sim aprofundam a padronização da alimentação. O Fórum denuncia que, dessa maneira, o Estado favorece os modos de produção industriais. Defendendo a qualidade dos alimentos, ressalta que não se trata de flexibilizar as leis, mas de se construir urgentemente um novo marco regulatório para a adequação aos alimentos processados pela agricultura familiar, tradicional e camponesa. Essa regulação deve ser fundamentada “em conhecimentos, práticas, experiências e modos de vida dos produtores”.
Neste 7º Encontro, como forma de se organizar e construir constantemente análises e propostas em diferentes campos da segurança alimentar, o FBSSAN constituiu comissões temáticas. São elas: Povos e Comunidades Tradicionais; Abastecimentos e Construção dos Mercados; Qualidade dos Alimentos e Cultura Alimentar; Agricultura Urbana; Agrotóxicos e Transgênicos; Participação Social; Segurança Alimentar no Contexto Amazônico; e Segurança Alimentar no Semiárido.
O documento final do evento, que teve como tema “Que alimentos (não) estamos comendo?”, reforçou ainda que “a agroecologia tem se afirmado como o melhor meio de produção de alimentos” por hoje trazer “benefícios para toda a sociedade e para o planeta”, além de “garantir o acesso a esses alimentos a gerações futuras”. Por fim, aponta que são “igualmente importantes os direitos à água e à terra, instrumentos fundamentais para a realização do direito humano à alimentação”.
Leia e baixe o documento aqui.
Fotos: (1) Parte dos que estiveram no Encontro se reúnem para foto (Michelle Andrade/Consea); (2) FBSSAN repudia impactos do agronegócio (Reprodução); e (3) Sementes representam patrimônio genético e cultural (Consea).