Este mês, o Semiárido ocupa a Câmara dos Deputados, em Brasília. Lideranças comunitárias e representantes de organizações, articulações, movimentos sociais e sindicais vão ao encontro dos legisladores. Seguem em nome de 1,7 milhão de famílias agricultoras, povos indígenas, comunidades tradicionais e quilombolas. E vão dizer, com seus sotaques diversos vindos do campo, que não aceitam a exclusão da política de convivência com o Semiárido do orçamento público federal.
Receber uma fatia do bolo dos recursos públicos federais, através de políticas e programas direcionados para a necessidade da população rural, é uma realidade muito nova. Só há 14 anos é que as ações, como as de acesso à água para as comunidades dispersas do campo, entraram no orçamento público, passando a ser concretizadas em maior escala do que a atingida com financiamento proveniente de organizações não-governamentais e igrejas.
O Semiárido é uma região que concentra a maior parte das pessoas em situação de pobreza e de pobreza extrema no país, mas tem melhorado vários indicadores sociais nas últimas décadas, justamente por conta de políticas públicas adequadas às necessidades desta população. “Nós conquistamos muito desde a implementação da política de convivência com o Semiárido, mas existe uma demanda ainda muito grande. A sociedade brasileira tem uma dívida com os povos da região. Já passou da hora do parlamento incidir politicamente para que esta política pública de democratização do acesso à água, de fortalecimento da agricultura familiar, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, possa ser valorizada e mantida”, atesta Valquíria Lima, da coordenação nacional da ASA pelo estado de Minas Gerais.
A ida do Semiárido rural à Câmara dos Deputados acontece em um momento estratégico: quando o Congresso Federal está às voltas com a construção do Plano Plurianual (PPA), um instrumento obrigatório de planejamento das ações e orçamentos. O PPA orienta os investimentos estratégicos nos quatro anos do plano, que vigoram entre o segundo ano de um mandato presidencial até o primeiro ano do próximo mandato. Ou seja: de 2020 a 2023.
Frente Parlamentar
No dia 24 próximo, vai ser inaugurado um dos canais de diálogo entre quem vive, produz alimentos e protege a biodiversidade em biomas como a Caatinga e o Cerrado – ambos em estágio avançado de devastação – e os parlamentares: a Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido.
Segundo o deputado Carlos Veras (PT-PE), que a partir de diálogos com a sociedade civil organizada deu o ponta-pé inicial para a criação da Frente, a missão deste espaço é “fomentar dentro do Congresso Nacional a luta em defesa de um Semiárido vivo, forte e sustentável com a participação ativa da sociedade a fim de pressionar o governo para incluir a região no orçamento da União, não como um favor, mas como um dever para garantir o devido acesso ao direito à terra, à vida digna e à segurança alimentar”.
E continua: “Nosso objetivo é colocar a região do Semiárido no lugar de onde nunca deveria ter saído: na agenda do desenvolvimento social e econômico do país. Nós não queremos sair do Semiárido. No Semiárido, a vida pulsa. Nós queremos continuar vivendo e produzindo na região. A terra precisa ser cuidada por quem a ama, não por quem quer explorar a terra, quer envenená-la. Nós não podemos explorar a nossa mãe natureza, nós temos que amar e preservar a natureza, conviver com ela. A vida de todos nós depende da mãe natureza.”
Como parte do lançamento da Frente Parlamentar na Câmara, vai acontecer um seminário com participação ativa das organizações da sociedade civil. Os microfones estarão abertos para darem notícias de um Brasil rural que conhecem a fundo. “Quando se interrompe uma política desta magnitude, quando se interrompe processos de distribuição de renda, de valorização destas famílias, a fragilidade que as mesmas se encontram é tão grande que o retorno à fome é uma ameaça que está rondando a nossa realidade”, continua Valquíria.
Diálogo com o Executivo Federal
Ao mesmo tempo em que este movimento acontece no Poder Legislativo, a abertura de outro canal de diálogo, desta vez com o Executivo Federal, também está sendo pleiteado pela sociedade civil organizada. A ASA, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) e a Condeferação Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) vão oficializar um pedido de audiência com o ministro da Cidadania, Osmar Terra. “A ASA entende que política pública independe de governo e esse é o governo que temos e que vamos sentar para debater a continuidade desta política pública”, comenta Valquíria.
Em todos os espaços de diálogo, a intenção é mostrar os resultados que as políticas públicas de convivência com o Semiárido trouxeram para as famílias, assim como apresentar os riscos da interrupção desta política. “Vamos apresentar dados, qualificar como as vidas destas famílias melhoraram com políticas públicas adequadas, com acesso à água, produção de alimentos agroecológicos, comercialização. Esse é o ciclo da vida da agricultura familiar e os resultados são muito significativos. Inclusive, toda esta metodologia, toda esta ação construída da ASA junto aos governos dos estados e governo federal se tornou exemplo mundial de uma política pública de acesso à água para as famílias”, diz lembrando do prêmio Políticas para o Futuro, considerado a maior honraria da categoria, e que foi concedido em 2017 ao programa Cisternas – a política de acesso à água para as populações dispersas do Semiárido rural do governo Dilma.
E por falar em referência para outras regiões semiáridas do planeta, o chefe das Organizações das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o brasileiro José Graziano da Silva, fez menção à experiência brasileira de captação de água das chuvas em uma carta enviada ao papa Francisco. Segundo texto publicado no portal das Nações Unidas (ONU), há dois dias, Graziano descreveu que as cisternas instaladas nas propriedades de agricultores pobres em regiões de seca permitiram aos pequenos produtores armazenar a água da chuva, ampliando o acesso a recursos hídricos. “Com base na experiência brasileira, a FAO e seus sócios estão implementando um projeto que visa construir 1 milhão de cisternas no Sahel, a faixa territorial do continente africano localizada logo abaixo do deserto do Saara”, informa o texto do portal.
Sobre a dimensão quantitativa da ação de democratização do acesso à água potável no Semiárido, dados colhidos do Boletim Informativo nº 19, publicado pelo Ministério da Cidadania, em fevereiro passado, anunciam a existência de 1.300.798 tecnologias de captação de água de chuva construídas no Semiárido, a maioria cisternas. Esse número equivale a 99,3% das tecnologias desta natureza implementadas em todo o Brasil.
A volta no espiral: retornamos ao mesmo lugar, mas não do mesmo jeito
Remete a 1993 este momento de ida à Brasília para defender a manutenção da política de convivência com o Semiárido no orçamento geral da união (OGU). Na época, o projeto neoliberal acabara de entrar em cena, com o Governo Collor. Hoje, estamos vivendo o retorno desta ideologia. “As medidas do governo Bolsonaro, que é uma continuidade do governo Temer, representam uma ameaça à convivência com o Semiárido com a retirada de importantes políticas que precisam ser recuperadas, a exemplo dos programas de aquisição de alimentos (PAA e PNAE) programa de cisternas, do crédito rural e o próprio MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário)”, anuncia o deputado Carlos Veras.
Há 26 anos, no dia 16 de março, cerca de 400 agricultores e agricultoras, vindos do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, se concentraram na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), no Recife. Uma comitiva de 50 integrantes ocupou o prédio por alguns dias. E, enquanto não se conseguia uma audiência em Brasília, de preferência com o primeiro escalão do presidente Itamar Franco, solicitaram que o superintendente do órgão federal, Cássio Cunha Lima, permanecesse junto aos manifestantes.
No artigo “Os antecedentes da convivência com o semiárido em cena: o Fórum Seca como projeto político”, assinado por Shana Sampaio Sieber e Ramonildes Alves Gomes, doutoras vinculadas ao programa de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, há relatos da histórica ocupação da Sudene que fermentou o paradigma da convivência com o Semiárido que começava a germinar, embora neste período, ainda não fosse chamado assim.
O depoimento a seguir trata-se de um trecho de uma entrevista realizada em fevereiro de 2015 com um dos coordenadores do Fórum Seca, sócio-fundador do Centro Sabiá e Professor da UFRPE, não idenificado no artigo.
“E entramos na Sudene, em torno de 50 trabalhadores além de alguns assessores do Fórum Seca. E nas discussões que a gente fazia dentro do auditório da Sudene nós decidimos ter uma audiência com Cassio Cunha Lima, que era Superintendente da Sudene. Nessa audiência, a gente colocou a situação, de desmando do governo, de desleixo, e aí ficou uma situação que Cassio não podia dar resposta, tava esperando resposta de Brasília pra ver o que é que podia fazer, o que não fazia, então nós convidamos…ele a ficar conosco na Sudene. E ele perguntou se ele estava sendo refém, né, se a gente tava tomando ele como refém nesse momento. Não, a ideia não é fazer você refém, a ideia é fazer você ficar solidário a nossa luta, com a gente aqui… Então aí ocupamos, ficamos lá, Cássio ficou com a gente e ficamos lá dormindo na Sudene, passamos o dia, Itamar Franco disse que queria negociar e convidou uma Comissão a ir a Brasília. (…) Quando chegamos lá em Brasília quem nos recebeu não foi Cassio, foi Fernando Henrique Cardoso, ele era Ministro da Fazenda de Itamar Franco e nós fizemos um trabalho de mobilização com os parlamentares, né, parlamentares de Pernambuco, da Bahia, pra estar na audiência.”
Nesta época, a sociedade civil, representada principalmente pelo Fórum Seca, tinha como missão abrir caminho para a construção da política de convivência com o Semiárido. Sua preciosa contribuição foi desmistificar o problema da seca no Nordeste, planejar uma discussão antecipada sobre a seca na direção de uma Política voltada para o Semiárido e trazer a questão da seca como um problema muito mais político do que climático.
Há 26 anos, o desafio era dialogar com o governo federal. Apesar disto, as bases da convivência com o Semiárido foram edificadas. Atualmente, a dificuldade de acesso ao Poder Executivo volta a ser realidade. Mas, com o DNA de um povo que sempre inventou formas criativas e organizadas para seguir existindo, há de se enfrentar o desafio da vez: o retrocesso. Os guerreiros e guerreiras do Semiárido estão de pé, firmes e pulsantes, assim como a vida na região.