Amanhã pela manhã, quando você, caro leitor, abrir seu mamão para comer, antes de jogar fora as sementes, faça o seguinte: guarde-as num vidrinho. Mais tarde, quando tiver um tempo, espalhe-as sobre um pirex, leve ao forno baixo, deixe por alguns minutos. Elas vão tostar e se transformarão em pimenta do reino, para temperar qualquer prato que seja seu preferido.
Mas, caso você tenha preferência pelo melão, há outra sugestão. Em vez de jogar as cascas fora e comer só aquela parte molinha e docinha, junte-as e guarde-as na geladeira. À hora do almoço, prepare um refogado com alho, cebola, azeite, deite lá as cascas do melão e veja como, rapidamente, elas vão virar um prato gostoso, o melão se parece com chuchu. Se quiser sofisticar, quem sabe… ponha ali uns camarões?
Quem acompanha os programas de Bela Gil na televisão, já deve ter reconhecido que as dicas acima são da apresentadora e chef de cozinha, hoje militante ativa da causa que defende uma agricultura mais inclusiva, menos tóxica e, ao mesmo tempo, nutritiva. Ela esteve à mesa de debates ontem à noite, no lançamento do Atlas do Agronegócio, produção conjunta entre Fundação Heinrich Boll e da Fundação Rosa Luxemburgo, para a qual foram convidados também Gregório Duvivier, o representante da Articulação Nacional de Agroecologia Denis Monteiro e a coordenadora da Fundação Heinrich Böll Maureen Santos.
Foi um gol de placa terem convidado Bela Gil, e eu não estou falando só pelo fato de ela ser uma boa comunicadora que, como Duvivier, dá leveza aos debates. Falo também porque Bela Gil traz, em sua vivência, a resposta para muitas questões sobre o acesso aos alimentos e sobre a concentração do mercado de produção e distribuição deles nas mãos de um número cada vez menor de corporações. Já está mais do que na hora de fazer este tipo de informação ser alcançada por um número cada vez maior de pessoas, porque é um debate necessário.
Neste sentido, o Atlas que foi lançado e pode ser acessado gratuitamente nos sites das duas fundações, cumpre um papel importante. Embora tenha sido convidada, não pude comparecer ao evento do lançamento presencialmente, mas consegui acompanhar grande parte pelo computador, assistindo ao vídeo. Foi uma forma interessante também, porque li os comentários de quem estava online no momento, o que amplia a reflexão e nos tira do – até certo ponto cômodo – lugar de quem fala para iniciados.
Enquanto Bela Gil falava, alguém que estava acompanhando o evento lançou uma questão que, tenho certeza, é de muitos: “Afinal, estão aí falando sobre comidas orgânicas e sobre veganismo, quando o mundo tem ainda milhões de pessoas passando fome”. Por coincidência, naquele mesmo momento a chef de cozinha explicava como é possível democratizar os alimentos, aproveitá-los por inteiro – “Se você compra um melão por R$ 10 e não faz da casca um refogado, está jogando R$ 5 no lixo”, diz Bella Gil – e, desta forma, ampliar o acesso. Não há falta de alimentos, mas sim uma distribuição extremamente equivocada.
Ainda não tive tempo de ler o Atlas inteiro – ele foi apresentado também no ano passado, na Alemanha – mas já posso dar aqui alguns highlights sobre a pesquisa feita pelos autores. Há um interessante resumo sobre a história do sistema industrial agrícola no mundo, onde é possível identificar um dos pontos-chave da questão. Fomos nós mesmos, uma civilização já cansada e triste, depois de ter passado por uma guerra mundial que nos tirou muito, que nos deixamos vencer pelo conforto, comodidade e aparentemente inócua vantagem dos produtos fast food, dos lanches rápidos, das bebidas “nutritivas” que vinham embaladas a vácuo.
“O crescimento econômico pós-guerra e o aumento da renda levaram a uma mudança nas dietas. As opções de alimentos expandiram-se. De acordo com a Lei de Engel, à medida que a renda aumenta, a proporção de renda gasta em alimentos cai. As empresas responderam a essa potencial perda de faturamento lançando produtos novos e mais caros e intensificando o seu marketing. As mercearias foram substituídas pelos supermercados, e os imensos revendedores exerceram sua influência tanto no início da cadeia agroalimentar – nos produtores e processadores – como no final – nos consumidores. As preocupações com a saúde e o bem-estar físico criaram demandas por produtos frescos, como vegetais, frutas e peixes, que passaram a ser estruturados sob o controle direto dos varejistas. Na década de 1980, as transnacionais agrícolas foram crescentemente se transformando em global players, com interesses no mundo inteiro”.
E foi com o objetivo de atender as necessidades das novas classes médias que o setor alimentício cresceu, enxergando aí uma excelente oportunidade de enriquecer. A família não se encontrava mais na cozinha, conversando enquanto a comida estava sendo preparada no fogão. O ponto de encontro foi para a sala, e o centro da atração passou a ser a televisão. Com isso, ampliaram-se, sem dúvida, as opções de lazer. E foi-se deixando a cargo de corporações gigantes que aumentaram seu poder gradativamente, a função de buscar, processar e nos oferecer alimentos, tornando imenso o caminho entre o produtor agrícola e a nossa mesa.
O debate de ontem, que está disponível também nos sites das duas fundações, foi bem rico porque ofereceu alternativas a este processo. Em vez de só identificar o problema, soluções foram apresentadas para quem, democraticamente, pensa em trilhar um caminho mais curto entre a terra e o prato de comida.
Denis Monteiro trouxe em números a realidade da expansão do agronegócio: nos anos 70 havia 5 milhões de hectares de soja plantados, e hoje são 34 milhões. Um projeto de desenvolvimento, segundo ele, que “está nas mãos de um setor que não paga ou paga menos impostos do que os produtores pequenos”. Mas é possível, ainda seguindo a reflexão de Monteiro, apostar em outro tipo de desenvolvimento, um que incentive os outros diversos tipos de alimentos, que estimule outras riquezas. Neste sentido, de novo Bela Gil trouxe informação para aliar discurso à prática: “Quando se fala em alimentos verde escuro, por exemplo, a maioria vai citar a couve. Mas há muitos outros, como ora pro nobis, a rúcula, taioba…” Ou seja, a população também precisa ampliar suas escolhas para que a produção não fique concentrada.
Sem falar que, para uma plantação diversificada, não se precisa usar agrotóxicos. Quando o tema tocou a questão dos herbicidas ou defensivos agrícolas (como querem os que apostam nesta solução para acabar com pragas) alguém da plateia lembrou que no dia anterior (3), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na figura do desembargador Kássio Nunes, derrubou a liminar que suspendia o uso de produtos à base das substâncias glifosato, tiram e abamectina.
Só para lembrar, a Monsanto nos Estados Unidos acaba de ser condenada a pagar mais de R$ 1 bilhão a um jardineiro que diz ter contraído câncer por ter trabalhado muitos anos aplicando glifosato em plantas. Assim mesmo, o desembargador entendeu que “nada justifica a suspensão dos registros dos produtos que contenham como ingredientes ativos abamectina e glifosato”.
Isso demonstra que há, de fato, uma guerra de opiniões onde aqueles que defendem o desenvolvimentismo sem muitos embargos causados por questões ecológicas ou agroecológicas estão no poder. O bom é saber, como muito bem ensina Bela Gil e os agroecologistas, que as pessoas que entendem de outra forma e querem se preservar, têm a seu dispor vários caminhos para escolher.
E vou dizer de novo: o importante é que a informação seja democratizada, para que todos possam exercer o sagrado direito de optar. Neste sentido, valeu a pergunta para Maureen Santos, sobre a possibilidade de este Atlas chegar aos bancos escolares. “É este o desejo dos autores”, respondeu ela.
Vou ler mais atentamente o Atlas e volto a falar sobre ele aqui neste espaço.