Por Verônica Pragana – Asacom
Texto publicado originalmente no site da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
O que o campo tem a ver com a cidade e vice-versa? Em que medida a agroecologia se contrapõe à perda de direitos em curso no Brasil? O que as práticas agroecológicas dos agricultores e agricultoras têm para ensinar ao modo de vida da sociedade?
Para quem está desanimado com o curso da política nacional e chega até a duvidar da quantidade de agrotóxicos que cada brasileiro e brasileira ingerem por ano de tão alto que é (sete litros por pessoa), precisa conhecer a agroecologia, um movimento, ciência e prática que se contrapõem ao agronegócio.
“Num país onde cada vez mais a saúde é tratada como doença, a agroecologia trata a vida com vida, com saúde e não como doença. É saúde pra terra que não tem veneno. É saúde para água que não está contaminada. É saúde para os bichos que interagem no ecossistema daquela região. E é saúde, principalmente, para as pessoas”, destaca Marilene Alves de Souza (Leninha), representante de duas grandes redes que atuam no espaço rural, a Articulação Semiárido Brasileiro, a ASA, e a Articulação Nacional de Agroecologia, a ANA. Pela ANA, Leninha também faz parte da comissão organizadora em Minas Gerais do IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que acontecerá de 31 de maio a 3 de junho de 2018, em Belo Horizonte.
Principalmente por conta do IV ENA, até meados do ano que vem, o movimento agroecológico vai estar em plena ebulição em todas as regiões do Brasil devido ao processo preparatório do encontro. Com expectativa é reunir três mil pessoas, o movimento aporta na sexta maior cidade do país em número de habitantes e quarta em geração de renda com ânsia de dialogar com outras iniciativas de resistência urbana.
Esse encontro das forças que resistem ao modelo de desenvolvimento predatório do meio ambiente e das relações sociais ganha ainda mais pressão e apelo por acontecer no 30º ano da Constituição Federal, altamente fragilizada com as investidas de retirada de direitos por parte dos legisladores representantes da elite oligárquica que desde sempre dominou o país.
Na entrevista que segue abaixo, Leninha toca em pontos essenciais que nos ajudam a dimensionar o importante legado da agroecologia para a humanidade. Confira!
Asacom – Em que medida a vida no campo interfere na qualidade de vida da cidade e vice-versa?
Politicamente correto, que a gente considera que é fundamental, é que não deveria ter essa divisão entre os que vivem no campo e os que vivem na cidade. As pessoas vivem nos seus espaços e cada um faz o que é melhor pro mundo a partir de seu lugar. Os que vivem no campo, acho que tem três componentes importantes para nós, que vivemos na cidade, que é a questão do manejo e do cuidado com água, a produção de alimentos pra ir pra mesa de todas as pessoas e, por último, a questão da terra.
Estes três componentes, terra, água e alimento, estão muito relacionados à vida do campo do ponto de vista da produção que, de certa forma, abastece a cidade. A cidade tem uma vida saudável a partir do momento que o campo produz um alimento saudável. A cidade pode ter acesso à água na medida em que os agricultores e agricultoras também produzem água, captam, manejam, cuidam das nascentes que vão alimentar os rios, os seus afluentes, para manter a vida daqueles que vivem também na cidade.
Ao mesmo tempo, a cidade tem um papel fundamental no sentido de reconhecer todo o trabalho e esforços dos que vivem no campo fazem. Então, é uma relação que se completa. Não há divisão entre os que vivem no campo. Há uma divisão mais de moradia, mas essa relação entre esses dois espaços são fundamentais pra vida. Nenhum espaço é melhor do que o outro. Os que vivem no campo têm suas dificuldades, seus dilemas, mas também produzem vida para os que estão na cidade, que também têm seus problemas e seus dilemas.
E a cidade não pode ser só uma mera consumidora. A cidade precisa, cada vez mais, estreitar essa relação seja pela comida, seja pela cultura, seja pelas religiosidades, as várias formas de vida e expressões que existem na humanidade.
Há uma simbiose, uma interdependência, porque um ser não vive sem o outro. Campo e cidade representam uma força viva pra humanidade.
Asacom – O que acontece no campo que as pessoas das cidades precisam saber e, em geral, estão alheios a isso?
Muitas pessoas da cidade estão alheias ao debate da produção agroecológica, das manifestações culturais, da cultura gastronômica, das cores e sabores que existem no campo. Uma primeira coisa é que, em grande parte do Brasil, temos diversas experiências de agroecologia, produção orgânica e tal. A cidade precisa estar atenta e abrir os olhos para estas experiências.
O que a gente recomenda é que as pessoas procurem nas suas cidades, em seus territórios, as experiências agroecológicas para irem conhecer. Fundamental não é só conhecer, mas valorizar, apoiar, fortalecer estas iniciativas, já que com o poder público, às vezes, é mais difícil, mas o cidadão e a cidadã de um determinado local podem não só conhecer mas ajudar a propagar, prestigiar, apoiar estas iniciativas. Essa coisa da rede de consumidores, de fidelidade aos produtos que são consumidos de forma agroecológica é algo que vem acontecendo em várias partes do Brasil.
É importante que a cidade também saiba que o agricultor familiar, o camponês, a camponesa, quando produz seus alimentos, produzem para sua família também se alimentar. Ele põe na mesa dele aquilo que é bom e aquilo que é bom ele busca também levar para a mesa do outro. Diferente das grandes produções com muito veneno, com um manejo totalmente inadequado, que as pessoas não sabem a origem dos alimentos, de onde vieram e como foram produzidos.
Então, quando se consome os alimentos da agricultura camponesa estão sabendo que consomem um produto que quem produziu tem coragem de por na mesa de seus filhos e da sua família. Isso é uma vantagem em relação aos produtos do agronegócio produzidos em alta escala, mas com alto grau de contaminação e isso, com certeza, interfere na saúde e na qualidade de vida das pessoas.
Asacom – O que o movimento agroecológico traz de bom, belo e verdadeiro para o mundo que vivemos?
A gente fala do movimento, mas a gente fala da agroecologia como ciência, como prática, e o mais importante pra nós é a prática agroecológica feita pelos agricultores e agricultoras. O movimento é no sentido de realmente ganhar força e mostrar para a sociedade que há outras formas de produzir alimentos, outras formas de manejar com a natureza de forma ambientalmente saudável, economicamente sustentável.
Então o que o movimento agroecológico traz? Traz pra sociedade o debate e os produtos de outra comida, carregada não só dos nutrientes necessários, mas carregada da cultura, carregada das energias e dos sentimentos das pessoas que produzem. E isso é bom e belo porque, de fato, atrás de cada marca da agricultura familiar ou camponesa há sempre um grupo, alguém que produziu com muito carinho. Por além da simbologia do alimento que alimenta o corpo, traz uma energia que alimenta a alma, que alimenta as pessoas.
E o que é bom é que o movimento agroecológico é capaz de dar respostas ao ambiente neste tempo de mudanças climáticas. É a agroecologia que pode diminuir a temperatura da Terra. Através das práticas agroecológicas, nós podemos alterar o sistema da água no meio ambiente. É através da agroecologia que nós podemos garantir
a riqueza da biodiversidade, seja de plantas, insetos, animais que existem.
A agroecologia, de certa forma, sinaliza não só uma alternativa, mas uma perspectiva de que podemos alterar o curso de um desenvolvimento desenfreado, calçado nos grandes projetos e nos grandes prejuízos para as questões ambientais e das comunidades.
Estamos colocando a agroecologia como uma proposta concreta de transformação nos aspectos mais gerais, ambientais, sociais e econômicos, mas também nas relações entre as pessoas. Quando o agricultor e a agricultora se relacionam com a terra como algo sagrado, a água como um bem que é comum a todos e deve ser garantido a todos, nós vamos também ensinando à humanidade a ter relações mais solidárias, menos exploratória dos recursos que a gente tem no ambiente.
Asacom – Qual o significado de um encontro nacional de agroecologia justamente num período de tantos retrocessos na garantia de direitos básicos para toda a população brasileira?
O Encontro Nacional de Agroecologia em 2018, neste contexto de ameaças que estamos vivendo, vai acontecer no 30º ano da Constituição Federal. É um ano importante, num contexto difícil que estamos vivendo, mas é um ano em que a gente reafirma a necessidade de lutar pelos direitos conquistados, a necessidade de não ter nenhum direito a menos neste contexto brasileiro.
É lógico que é um momento, do ponto de vista do financiamento para as experiências de agroecologia, muito ruim depois de anos conquistando uma assistência técnica e extensão rural voltada para as práticas agroecológicas. Há um desmonte que o atual governo vem fazendo com o Ater Agroecologia afeta diretamente muitas comunidades.
A ideia é que a gente possa, nesse Encontro, em Minas Gerais, dialogar com a sociedade e com todos os movimentos de resistência da cidade. É um momento de colocarmos o nosso projeto de desenvolvimento rural, de produção de alimentos para que a cidade conheça o que estamos fazendo, todas as experiências que têm no Brasil, pequenas, grandes, mas que quando a gente faz o somatório geral faz diferença no contexto brasileiro.
A gente tem a expectativa de ser um ENA internacional, trazendo outras articulações que estão na América Latina, no Caribe e até mesmo em outros espaços do mundo fazendo o que a gente vem fazendo.
O que queremos no ano que vem, não só no ano que vem porque estamos num processo de preparação tão importante quanto o evento em si, é dialogar com a sociedade, com o gestor público e diversas iniciativas e organizações de Minas Gerais e do país.
Asacom – Está em curso uma grande preparação para o evento em todas as regiões do país. O que está gestado?
Nós temos um processo de preparação que é fundamental e foi já deflagrado. Nem todos os agricultores e agricultoras que adotam práticas de manejo agroecológico vão estar no encontro mas, com certeza, onde estão deve acontecer alguma atividade para eles verem a importância do trabalho que realizam para todos nós.
O que sendo pensado nas regiões do país são atividades, temos desde jornadas agroecológicas, caravanas, oficinas, eventos de formação, intercâmbio, várias modalidades de atividades. Em todos estes processos, a gente quer na prática conhecer a experiência, fazer com que outros conheçam, sistematizar essas experiências e, acima de tudo, neste contexto, fortalecer quem está fazendo, pra pessoa saber que não está sozinha num canto, mas são milhares de agricultores e agricultoras que estão fazendo esse Brasil agroecológico de uma forma bem descapitalizado a depender do poder público local, mas na crença de que a prática que estamos fazendo ajuda, de fato, a sociedade.
Asacom – E o que a força gerada nestes momentos é capaz de provocar?
A gente espera que a força gerada no momento de preparação do ENA possa gerar no próprio local uma visibilidade e reconhecimento daquele grupo que está fazendo agroecologia ali. A gente espera que esse processo fortaleça as iniciativas ou de feiras agroecológicas ou de práticas de manejo, sistema agroflorestal, convivência com o Semiárido. Principalmente, quando a gente está precisando se encontrar pra revigorar as forças e as energias e repactuar os laços pela cultura do bem viver.
A gente acredita que as práticas agroecológicas, pra além da produção, trabalha com as relações de gênero, a questão da juventude, das mulheres, que este seja um momento de fortalecimento destas bandeiras. Essa é a primeira força que esse processo pode gerar.
A segunda força vai acontecer no momento de grande encontro dos processos de preparação. Para o estado de Minas Gerais, a gente espera fortalecer a nossa articulação no estado. Mas, pensando no país e fora dele, a gente quer dar visibilidade a essas diversas práticas e experiências. A gente quer comprovar, de fato, que a agroecologia pra além de movimento, prática e ciência, é acima de tudo uma possibilidade de transformação no campo da produção a partir do que as pessoas vêm fazendo.
O que queremos gerar com isso? Que a sociedade brasileira seja motivada, sensibilizada a conhecer as experiências que estão próximas dela. A gente quer dialogar com a cidade, mas também com os movimentos de resistência, de luta por moradia urbana, agricultura urbana e periurbana, como no meu quintal eu possa produzir pouca coisa para meu consumo. Um dos grandes desafios que temos é de como não falar para nós mesmos que já fazemos a agroecologia. Mas como sensibilizar e trazer outros sujeitos da sociedade pra conhecer, gostar e depois se comprometer com este movimento que a gente faz no Brasil.
Asacom – Como as pessoas que não participam do movimento agroecológico podem apoiar esta iniciativa que precisa, cada vez mais, expandir a sua sustentação na sociedade brasileira?
As pessoas que não participam do movimento podem ter atitudes que podem ajudar. A primeira coisa é essa que a gente já falou, que possam conhecer as experiências que existem nos seus territórios e nas suas cidades, e que possam dar prioridade ao consumo de alimentos produzidos de forma agroecológica.
A questão da qualidade dos alimentos está relacionada à qualidade de vida e à saúde. E, num país onde cada vez mais a saúde é tratada como doença, a agroecologia trata a vida com vida. É saúde pra terra que não tem veneno. É saúde para água que não está contaminada. É saúde para os bichos que interagem no ecossistema daquela região. E é saúde, principalmente, para as pessoas.
Então, como podemos expandir isso para a sociedade brasileira? É através da mídia, a comunicação entra como componente importante, não é uma ferramenta, mas é uma estratégia pra gente chegar onde a gente precisa chegar pra que as pessoas conheçam essas experiências e conheçam as nossas propostas…
Asacom – Mas que tipo de mídia?
Redes sociais, mídia alternativa, popular, não estou falando das grandes mídias associadas ao agronegócio. Não estou falando da Globo, agro é pop, agro é num sei o quê. As nossas mídias são as alternativas construídas pelo povo e pelas redes não só a ASA, a ANA, mas outras iniciativas que existem aí.
Asacom – Em Minas, na semana passada, o governador assinou um decreto instituindo um grupo intersetorial para a redução do uso de agrotóxicos e apoio à agroecologia e à produção orgânica. Como foi a construção deste processo?
Desde o ano de 2016, no início, o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural vem tratando de dois projetos de lei, um é esse de redução do uso de agrotóxico e outro é a lei de sementes do Estado de Minas Gerais. Um dos legados que a gente pensou que o ENA poderia deixar é que a gente pudesse ter estas duas PLs aprovadas, que tivesse orçamento e a política pra redução de agrotóxicos e preservação e multiplicação das sementes crioulas. Não avançamos muito neste último, mas há duas semanas, já estávamos com o processo todo pronto, discutido no Conselho Estadual sobre a redução de agrotóxicos. E, na semana passada, a gente recebeu a notícia de que o governador assinou o decreto.
A nossa expectativa é que a gente consiga construir no Estado – e isto vale para todos os estados, já que no governo federal não conseguimos avançar com a redução dos agrotóxicos – um plano de trabalho e um debate que reduza o uso de agrotóxicos. A gente quer aparecer como um estado que vai menos consumir agrotóxicos. Segundo dados de uns anos atrás, Minas Gerais aparece entre os cinco maiores consumidores de agrotóxicos no Brasil.