Por Flávia Londres,
Aconteceu em Brasília, nos dias 18 e 19 de setembro de 2012, a Oficina “Sementes Crioulas e Políticas Públicas”, realizada pela ANA – Articulação Nacional de Agroecologia. Organizações de todas as regiões do país presentes ao encontro apresentaram suas experiências de resgate, conservação, multiplicação, uso, intercâmbio e comercialização de sementes crioulas, e debateram os potenciais, as dificuldades e os desafios para o desenvolvimento desse trabalho. Também foram identificados e discutidos os princípios e as motivações que orientam as dinâmicas de atuação dos agricultores familiares e suas organizações no tema das sementes e como elas são afetadas, positiva e negativamente, pelas políticas públicas de apoio à agricultura familiar.
Foram apresentadas 13 experiências, representando todas as regiões do País. Os trabalhos envolvem atividades como a implantação e gestão de bancos comunitários de sementes, processos coletivos de resgate, avaliação e multiplicação de variedades locais, ensaios de competição entre variedades locais e variedades comerciais “melhoradas” e a realização de feiras de sementes.
Algumas poucas entidades entre as que apresentaram suas experiências apostaram na produção em larga escala de sementes no circuito comercial. Por outro lado, a maioria das organizações tem realizado a comercialização institucional de sementes crioulas através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), gerido pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento / MAPA) – várias dessas experiências, inclusive, foram alavancadas e/ou ganharam escala a partir da parceria com a Conab. Um relato mais detalhado das apresentações das experiências está disponível no relatório da reunião.
Foi também apresentado um breve resgate sobre as políticas públicas voltadas para a promoção das sementes crioulas que foram implementadas no Brasil no passado recente – notadamente a partir da aprovação da nova Lei brasileira de Sementes e Mudas (10.711), em 2003.
Relembrou-se ainda a história de nascimento, vida e morte do Programa Nacional de Agrobiodiversidade aprovado no PPA (Plano Plurianual) 2004/2007. Seus principais problemas – falta de articulação entre os diferentes órgãos governamentais envolvidos; baixíssima execução orçamentária; ausência de mecanismos de controle social; e marco regulatório que dificulta o repasse de recursos do governo para a sociedade civil – foram discutidos, pois é preciso que os erros cometidos no passado não sejam repetidos no processo de elaboração e gestão do novo Programa de Agrobiodiversidade que se pretende construir no âmbito da PNAPO – Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
No debate que se seguiu às apresentações, ressaltaram-se a existência de alguns princípios fundamentais que são comuns ao conjunto das experiências, que motivam e orientam as dinâmicas entre as organizações. Constatou-se que as sementes são um tema fortemente mobilizador, a partir do qual muitas outras ações se desenvolvem. As feiras de sementes constituem espaços importantes de intercâmbio de material genético e de conhecimentos, mas também espaços de festa e de “energização” para se seguir adiante na luta em defesa da conservação da agrobiodiversidade e da promoção da agricultura familiar. Além disso, as feiras são oportunidades de geração de renda com a comercialização de sementes.
Ressaltou-se que a semente crioula é a semente local, na lógica da adaptação a ambientes específicos, práticas de manejo e costumes. Essa lógica se choca frontalmente com as políticas de distribuição de sementes baseadas na disseminação de uma ou poucas variedades comerciais .
O PAA foi citado numerosas vezes como exemplo de política pública que se afina com os princípios orientadores das experiências com sementes. Um exemplo é o que diz respeito à promoção da autonomia: enquanto a lógica que comanda as ações de distribuição de sementes no âmbito do Programa Brasil Sem Miséria acaba estimulando um processo de dependência por sementes vindas de fora, o PAA fortalece a produção local de sementes pelos próprios agricultores familiares, bem como o fortalecimento de seus estoques comunitários. Outro exemplo está relacionado à própria conservação da agrobiodiversidade: quando os programas “convencionais” de distribuição de sementes apostam na difusão de poucas sementes melhoradas, acabam por contribuir para o desaparecimento das diversas variedades locais existentes nas comunidades. Ao contrário, o PAA tem estimulado o resgate desses recursos genéticos conservados nas comunidades, que são avaliadas e multiplicadas, para então serem distribuídas em seus próprios territórios.
Os transgênicos foram citados diversas vezes como grande ameaça à conservação dos recursos genéticos locais. Ações coletivas de monitoramento da contaminação estão sendo executadas em algumas regiões e servem de exemplo para muitas organizações. Campanhas do tipo “Plante Semente Crioula” também foram identificadas como importantes estratégias para a promoção das sementes locais e resistência à contaminação transgênica. A luta pela criação de zonas livres de transgênicos também foi citada como uma possibilidade a ser explorada.
Num esforço de síntese, foram identificados princípios fundamentais comuns que regem as dinâmicas das experiências da sociedade civil:
Identidade – As regiões têm suas próprias sementes, que são ao mesmo tempo meio de produção e meio de identificação cultural. Na medida em que os trabalhos com sementes são realizados, a própria identidade do agricultor familiar, indígena ou quilombola é resgatada. E a agroecologia necessita desse resgate de identidades.
Autonomia – as experiências buscam garantir a autonomia no que diz respeito ao acesso às próprias sementes, mas também a outros insumos, sistemas financeiros etc. A questão da autonomia se relaciona também com o reconhecimento do agricultor familiar como guardião e produtor de sementes.
Diversidade – nossos trabalhos buscam manter, alimentar e enriquecer a diversidade, o que se choca com a ideia “da boa semente” promovida por programas de distribuição de sementes baseados na difusão de uma ou poucas variedades melhoradas. Para nós a “boa semente” é o conjunto da diversidade.
Resistência – esse princípio está presente em dois sentidos: a resistência política em defesa da agricultura camponesa, da semente como expressão de que queremos exercer o direito de permanecer camponeses, indígenas e quilombolas contra uma força avassaladora de expropriação do patrimônio genético e da diversidade, mas também a resistência biológica que, em função da adaptação desenvolvida ao longo de gerações, as sementes locais apresentam às adversidades climáticas, ao solos pobres etc.
Semente como produto cultural – as sementes incorporam uma cultura e essa ideia remete à negação de que elas sejam reguladas por regime de propriedade intelectual. Embora o Estado reconheça a existência de sementes crioulas, elas são regulamentadas pela Lei de Sementes – e o fato de essa Lei ser regida por outros princípios cria uma série de tensões.
No segundo dia do encontro, gestores de diversos órgãos governamentais foram convidados a debater com as organizações a partir das questões por elas levantadas e apresentar não somente os programas e projetos já em curso relacionados às sementes para a agricultura familiar, mas também as políticas que planejam implementar, sobretudo no contexto da recém aprovação da PNAPO.
Os participantes da Oficina apresentaram aos representantes do MMA (Ministério do Meio Ambiente), MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) uma síntese dos debates realizados no dia anterior e ressaltaram a maneira como as políticas públicas têm incidido sobre essas experiências. Buscou-se extrair do grupo presente o compromisso no sentido da integração entre os órgãos, bem como a permanente articulação com as organizações da sociedade civil no sentido de aprimorar e ampliar as ações para a conservação da agrobiodiversidade, especialmente através do fortalecimento das experiências presentes nas diferentes regiões e de suas redes.
Entre as propostas discutidas esteve a realização de um mapeamento nacional das experiências de conservação e uso de sementes crioulas. Para as organizações, este trabalho deve ser conduzido de forma descentralizada, durante o processo de construção do III Encontro Nacional de Agroecologia, que será realizado em 2014. Essa experiência poderia também servir de subsídio para a elaboração do novo Programa Nacional de Agrobiodiversidade.
Ao final da reunião, os participantes da Oficina discutiram e propuseram alguns encaminhamentos para a continuidade da articulação da ANA em torno das sementes crioulas. Entre essas proposições, está a criação de uma subcomissão temática para tratar do tema das sementes crioulas no âmbito da PNAPO.
Leia o relatório completo da Oficina sobre Sementes Crioulas e Políticas Públicas.